domingo, 31 de outubro de 2010

QUATRO POEMAS DO RETARDADOR (2)

Neva na hora parada
Em que penso que pensar
É uma espécie de luar
Numa paisagem lembrada;

Neva, lenta, retratada,
A minha tristeza disto,
-- Como o luar entrevisto
Duma janela fechada;

E neva, mais sonolenta
Nessa longínqua lembrança,
O luar de ser criança
A vê-la tombar, tão lenta...

Carlos Queirós

A AMADA

Ela é uma frágil gazela:
Olhares de narciso
Acenos de açucena
Sorriso de margarida.

E se seus brincos se agitam
Quedam-se os braceletes na escuta
Da música do requebro da cintura.

Ibn 'Ammar

(Adalberto Alves)

DEIXA

À tua mãe o marfim crucificado
ao teu pai o vício mais ronceiro
e a quem quiser
os lindos pentes da virtude

Frases célebres
todas
e não esqueças aquela
que diz assim
                              PAIS
                          que fazeis?
                  OS VOSSOS FILHOS
                       não são tostões
                GASTAI-OS DEPRESSA!

Deixa também a ilusão de que te amaram
àquelas duas que ali não vês

Só no tempo em que os suicidas
como os animais falavam
valia a pena desiludir

Deixa ainda
o que a álgebra mais secreta
decidiu a teu favor

A sombra que projectaste
talvez alguém a resolva
num diamante cruel

Alexandre O'Neill

sábado, 30 de outubro de 2010

PROPOSIÇÃO

Dias turvos e inconsequentes sucedem
a dias inconsequentes e turvos.
Um apito estridente anuncia
o encerramento das portas do Metro;
a cintilação de uma chapa de zinco
cria a ilusão de sol que brilha no rio,
ao fundo. A lama enrola-se
nas veias, que o álcool nocturno
espessa -- nenhuma notícia
confirma que a dívida tem de ser
paga e é prudente desconhecer
quem a contraiu ou porquê.
O prazo caducou e é bem-vindo
todo o adiamento, confiando
que possa ser o último.

José Alberto Oliveira

INFÂNCIA II



Tão pequenas
a infância, a terra.
Com tão pouco
mistério.

Chamo às estrelas
rosas.

E a terra, a infância,
crescem
no seu jardim
aéreo.

Carlos de Oliveira

QUATRO POEMAS DO RETARDADOR (1)

Lento, no lago, naufraga
Um lírio, liricamente...
-- E lento se torna algente
O luar que o lago alaga.

Lento, ao luar liquescente,
As lentilhas se afastaram...
Mas logo, lento, voltaram
A juntar-se, novamente.

(E um leve ondular dolente
Foi o que fátuo ficou,
Do lírio que se afundou
Lento, lenta, lentamente...)

Carlos Queirós
Tens que fazer, meu rapaz?
Não tardes que o tempo foge.
O trabalho a dois se faz?
Aqui me tens para hoje.

Manda por mim, que eu hei-de ir.
Por mim chama, que ouvirei.
Usa-me antes de eu partir
Pra onde não prestarei.

Antes que a carne envelheça,
E morta seja a vontade,
E o lábio já nem estremeça
Dizendo: -- Rapaz, é tarde.

A. E. Housman

(Jorge de Sena)

sexta-feira, 29 de outubro de 2010

A nossa linguagem é
mecânica,
atomística
ou dinâmica.
A linguagem poética autêntica
será orgânica, viva.
É tão grande a pobreza das palavras
para dizer de um só golpe
a ideia plural!

Novalis

(João Barrento)

Poetas do Século XVIII

título: Poetas do Século XVIII
antologiador: M. Rodrigues Lapa (Anadia, 20.4.1897 - 28.3.1989)
edição: 3.ª
os poetas: Correia Garção, Cruz e Silva, Domingos dos Reis Quita, Filinto Elísio, Tomás António Gonzaga, João Xavier de Matos, José Anastácio da Cunha, Marquesa de Alorna, José Agostinho de Macedo
colecção: «Textos Literários»
editora: Seara Nova
local: Lisboa
ano: 1967
capa: Guilherme Lopes Alves
págs.: VIII+111
dimensões: 19,3x12,4x1,2 cm. (brochado)
impressão: Emp. Jornal do Comércio, Lisboa
Assumamos o corpo e o
prazer, bebamos no elmo
de bronze o vinho e os
cheiros de fogo.

Orlando Neves
Rosa, em teu trono, pra os da Antiguidade
era um cálice com um bordo simples.
Mas para nós és a flor plena, inumerável,
o objecto inesgotável.

Pareces na opulência trajo sobre trajo
a envolver um corpo de nada mais que brilho;
mas cada pétala tua é a um tempo só
fuga e negação de toda a roupagem.

De há séculos teu perfume nos proclama
os seus nomes de maior doçura;
de súbito, paira no ar como uma glória.

No entanto, não sabemos nomear, adivinhamos...
E para ele passa a lembrança
que pedimos às horas invocáveis.

Rainer Maria Rilke

(Paulo Quintela)

INTERFERÊNCIA

                                                                                                                                                                                                               A CECÍLIA MEIRELES

Quem veio bater à minha porta? quem?
Quem me fez abrir a janela e a noite morta?

O caminho estava deserto e o seu silêncio tinha horas.
Vento? Esta noite tem a paz e o sossego da morte.
Só eu e as estrelas sentíamos a solidão fantástica...

Nos ouvidos e na ansiedade guardei o rumor que me chamou,
As minhas mãos tiveram a carícia doutras mãos perdidas,
E uma companhia invisível acendeu uma luz na minha alma...

Alguém terá pensado em mim, longe?

Alberto de Serpa

quinta-feira, 28 de outubro de 2010

SONETO

Dizem mil sabichões que, nesta vida,
Só pode quem tem ouro ser ditoso;
Que é pretender, sem ele, achar o gozo,
Ambição a que o senso não convida!

Assim julga quem vê na humana lida,
Cercado de galões, em trem custoso,
Qualquer nobre lapuz, louco vaidoso,
Que entre gente de bem não tem guarida:

Que esses fazem figura, eu não desminto:
A toda a parte vão, com seu cortejo,
Porque o mundo lhes dá lugar distinto:

Outras glórias têm mais, que eu não invejo;
Mas nunca sentirão prazer que eu sinto
Na risada que dou, se um deles vejo!

Faustino Xavier de Novais

A ESCADA DA VIDA

Encontrou-se a Caridade
Com o Orgulho, certo dia:
Subia o orgulho uma escada,
E a Caridade descia.

Ela humilde, ele arrogante,
No patamar dessa escada
Os dois, cruzando-se, viram
Uma rosinha pisada.

Emproado, o Orgulho, vendo-a,
Deu-lhe nova pisadela;
De joelhos, a Caridade
Deitou-se aos beijos a ela.

Mas nobres passos se ouviram
De som divino e tremendo:
O Orgulho seguiu subindo,
E a Caridade descendo...

E a voz de Deus, entretanto,
Disse, bramindo e sorrindo,
-- «Tu, que sobes, vais descendo!»
-- «Tu, que desces, vais subindo!»

Eugénio de Castro

A RECUSA DAS IMAGENS EVIDENTES

IV

Há noites que são feitas dos meus braços
E um silêncio comum às violetas.
E há sete luas que são sete traços
De sete noites que nunca foram feitas.

Há noites que levamos à cintura
Como um cinto de grandes borboletas.
E um risco a sangue na nossa carne escura
Duma espada à bainha dum cometa.

Há noites que nos deixam para trás
Enrolados no nosso desencanto
E cisnes brancos que só são iguais
À mais longínqua onda do seu canto.

Há noites que nos levam para onde
O fantasma de nós fica mais perto;
E é sempre a nossa voz que nos responde
E só o nosso nome estava certo.

Há noites que são lírios e são feras
E a nossa exactidão de rosa vil
Reconcilia no frio das esferas
O astros que se olham de perfil.

Natália Correia
Monk compositor
não só para o jazz
de todas as Músicas
Monk na História da Música
em que páginas?

José Duarte

PERDIÇÃO

                                                                                                                                                                                                        A MANUELA PORTO

Prazer de caminhar assim anónimo, sem rumo,
Sob a chuva miúda que põe reflexos na calçada,
Sentindo cair a noite outonal sobre a cidade...

As luzes dos carros que passam velozes,
As luzes das montras por que passam os vultos,
Fazem sombras secretas em quem vai e em quem vem...
É-se apenas um vulto que passa na noite que desce...
A nossa vida esquece e vai
Como uma folha dessas que o vento leva... -- para onde?...

Alberto de Serpa

quarta-feira, 27 de outubro de 2010

FIGUEIRA COM PÁSSAROS

Nas traseiras da minha graça há uma
figueira      Ainda os figos não são figos
e já os pássaros
os pássaros entram nas verdes polpas com os seus
bicos
espetam as almas no doce amargo dos frutos
e depois queixam-se    A toutinegra não se cala    o melro
passa por cima    a pardalada prefere o arbusto do telhado
e as migalhas da vizinha velha que sabe o que fazer para
manter os diálogos
Porque há presença do Tejo no hálito dos pássaros
os figos hão-de ser melhores que os concorrentes orientais
os talvez de Alexandria    ou de qualquer oriente
Boa graça     bons figos

PIRÂMIDE INVERTIDA

Na individualidade triangular do ápice
Sujaremos com terra a púrpura pegajosa

Do lado branco pobre e básico
O índio e a febre amarela
O negro e a festa trágica

Em breve trajetória dialética
Mudará o artista paralelas intocáveis
Empurrando as linhas-retas-pontilhadas
Tingindo a santa trindade mística

Pois o triângulo é pedra e lápide
Do tumulto do sustento insuportável
Desses faraós reclassificados

Ricardo G. Ramos

GUINCHO

O Sol põe-se
sobre o lento bater das ondas,
e despede-se
do meu corpo de areia.

O VELHO PALÁCIO

Houve outrora um palácio, hoje em ruínas,
Fundado numa rocha, à beira-mar...
Donde se avistavam lívidas colinas,
E se ouve o vento nos pinheirais pregar.
Houve outrora um palácio, hoje em ruínas...

Nesse triste palácio inabitável,
As janelas sem vidros, contra os ventos,
Batem, de noite, em coro miserável,
Lembrando gritos, uivos e lamentos.
Nesse triste palácio inabitável...

Só resta uma varanda solitária,
Onde medra uma flor que bate o norte,
Sacudida de chuva funerária,
Lavada de um luar branco de morte.
Só resta uma varanda solitária...

Como nessa varanda apodrecida
Em minha alma uma flor também vegeta...
Toda a noite dos ventos sacudida,
Íntima, humilde, lírica, secreta,
Como nessa varanda apodrecida...

Gomes Leal

LES POÊTES SONT DES POÈMIERS

                                                                                                                                                                                                            A João Carlos de Azevedo

Entre os poetas e as árvores, os elos
São tais, há tão estreitas alianças,
Que revelam, nas verosimilhanças,
O sentimentos líricos mais belos.

A cumprirem destinos paralelos,
Em confraternidade, sem mudanças,
Na primavera se enchem de esperanças
E no outono de pomos amarelos.

Ambos, continuamente, fazem versos.
Na aparência mostrando-se diversos,
São seus pontos discordes diminutos.

Em colaboração, inspiradores,
Tendo a mesma pureza nos dão flores,
Tendo a mesma bondade nos dão frutos.

Martins Fontes

PENUMBRA

Na penumbra dos ombros é que tudo começa
quando subitamente só a noite nos vê
E nos abre uma porta      nos aponta uma seta

para sermos de novo quem deixámos de ser

David Mourão-Ferreira

terça-feira, 26 de outubro de 2010

Nos invernos viris os ganchos prendem

3

Rapazes enfezados no ventre da tarde
destroçam os pássaros no riso

lavrados descalços a ronda das casas

fogem dentro da noite escondidos
urinam nos cantos a fome a abrir

apoiam as mãos nos homens sentados
procuram as tetas das mães,

os olhos pardos a chupar moscas.

Alexandre Nave

EPÍGRAFE

Eu perdi minha frauta selvagem
entre os caniços do lago de vidro.

Juncos inquietos da margem;
peixes de prata e de cobre brunido
que viveis na vida móvel das águas;

cigarras das árvores altas;
folhas mortas que acordais ao passo alípede das ninfas;
algas,
lindas algas limpas:
-- se encontrardes
a frauta que eu perdi, vinde, todas as tardes,
debruçar-vos sobre ela! E ouvireis os segredos
sonoros, que os meus lábios e os meus dedos
deixaram esquecidos entre
os silêncios ariscos do seu ventre.

Guilherme de Almeida
Quand'ora for a mha senhor veer,
que me non quer leixar d'amor viver,
ai, Deus Senhor, se lh'ousarei dizer:
     -- «Senhor fremosa, non poss' eu guarir!»
     Eu, se ousar, direi, quando a vir:
     -- «Senhor fremosa, non poss' eu guarir!»

Por quantas vezes m'ela fez chorar
con seus desejos, cuitan[do] d'andar,
quando a vir, direi-lhi, se ousar:
     -- «Senhor fremosa, non poss' eu guarir!»
     Eu, se ousar, direi, quando a vir:
     -- «Senhor fremosa, non poss' eu guarir!»

Por quanta coita por ela levei
e quant'afam sofri e endurei,
quando a vir, se ousar, lhi direi:
     -- «Senhor fremosa, non poss' eu guarir!»
     Eu, se ousar, direi, quando a vir:
     -- «Senhor fremosa, non poss' eu guarir!»

Pero Velho de Taveirós

A NOITE DAS CIDADES

Repousa nas mãos o sangue pronto
a libertar o cântico exigente,
aqui nada é tão de aço como o ódio
e o homem crucificado
mente.

Repousa o sangue
alongando a cor
ao choro que unicamente
a noite abraçada à lua
consente.

E dentro desta noite igual a tantas outras
existem bocas tristes que não cantam
e alongam, amigas,
a lição das aves suicidas
que à gaiola preferem a morte
revoltada.

Aves diariamente insignificantes
(diárias como tudo o que é simples)
que repousam na mão o sangue pronto
a correr,
vermelho pelas ruas da cidade.

António Augusto Menano

OUTONAL

Caem dos ramos folhas amarelas,
que se perdem na rua sem ninguém,
algumas voam, batem nas janelas
ao jeito inquieto de quem chama alguém.

Velhas folhas desgarradas,
andam de todo perdidas:
vivem de coisas passadas,
de lembranças esquecidas.

Mas guardam lindas histórias,
segredos de enternecer:
-- as venturas ilusórias
são mais fáceis de entender.

Folhas despertas do sono,
guardam também um tesoiro:
quando, à tarde, o sol do Outono
lhes empresta brilhos de oiro.

Augusto Ricardo

segunda-feira, 25 de outubro de 2010

O GAIO E O PAPAGAIO

Não sei quem teve a ideia
de contar a um velho gaio
que outra ave papagueia
e se chama papagaio.

Disse o gaio: «Papa-quê?»
Disse o outro: «Papa-gaio!»
Disse o gaio: «Pois você
diga lá a esse bicho
que, se não muda de nome,
não me escapa, ainda o lixo;

que um gaio tem muita fome,
que sou um papão de um raio,
que este velho gaio o papa,
que sou papa-papagaio.»

Quando isto contaram a
um medroso papagaio,
gaguejou: «Eu... sou... pa... pa...»
e depois teve um desmaio.

Engasgou-se a rir, o gaio,
do desmaio do papagaio.

Leonel Neves

ANESTESIA

Palpo o pó da terra
e em meus dedos
só sinto
o receio de pisar
terrenos proibidos.

Aspiro o aroma das flores
e só me figuro
o desespero
e a vala comum.

Entoo canções alegres
e o eco
responde-me em gritos amargurados.

Quero sonhar dias felizes
futuros cor de rosa
mas só vejo
meus dias escuros
carregados de tristeza.

Agostinho Neto

A EUGÉNIO DE ANDRADE, DEPOIS DE LER OS LUGARES DO LUME

Entre os lugares do lume acontecia
que a tua voz as músicas movia

e era outra paisagem de repente
a levantar-se como sarça ardente,

como se os prisioneiros da linguagem
se tornassem só lume, só passagem

e na terra que foi melancolia
ardesse a voz inteira da poesia.

(Mas nos lugares do lume que disseste
um pur si muove brilha e aparece.)



OS PASSOS NA NOITE

Ouve, querida, na noite angustiada,
sem portas mas perfeita como um ovo,
como soa e ressoa a martelada
de cada passo do povo.

Ouve, na noite descarnada e enxuta,
o som que sobe, vertical e inteiro.
Ouve, querida, até às lágrimas, escuta
o oceano prisioneiro.

Noite implacável, arrepiada de vultos
como versos que mordem o papel
em que crianças, com gestos de adultos,
enchem de grãos de areia a nossa pele.

Noite aos quadrados, grades de gaiola,
cada quadrado fecha uma canção,
era aos quadrados no tempo da escola,
continua aos quadrados desde então.

Mas para lá dos barrancos, das ciladas,
para lá do engano e o desengano
cada pancada assobia madrugadas
cada pancada tem um som humano.

Compassados os passos, contra o vento,
escalam a noite descarnada e enxuta.
Viris, soam, ressoam no cimento,
ouve, querida, até às lágrimas, escuta.

Sidónio Muralha

POENTE

Morre a luz sobre o ar leve e macio,
É tarde, passa o vento devagar,
E o povo dos pinheiros, junto ao rio,
Em filas põe-se a vê-lo ir para o mar.

Sofregamente, as coisas, já com frio,
Guardam restos da luz, inda no ar,
E a sombra, pelo solo ermo e bravio,
Sonolenta, começa-se a deitar.

No ocaso, um rude monte, com cuidado,
Que o Sol não fique nele ensaguentado,
Parece agora mais redondo e mole;

E, no nome da Terra, em frente ao espaço,
Um castanheiro, ao longe, ergue o seu braço,
Comovido a dizer adeus ao Sol!

Nunes Claro

domingo, 24 de outubro de 2010

A SOMBRA (tradução de um poema de uma língua desconhecida)

     Foi ali que um dia sentiu desejos de partir também. Que ficava fazendo sozinha? Quem leva uma lança, leva a mulher também.

     O seu xale negro tem um segredo, e o seu mal de morte vem do mesmo dia.

     Os anos correram sem novas algumas, e as moças finaram-se velhas, velhas de tanto esperar.

     E todas as noites, na margem sombria, uma silhueta franzina de trágica sonâmbula vai seguindo, como um braço murcho de cipreste a boiar ao de cima da corrente que o vai levando -- mansamente.

Almada Negreiros

POUSIO

Faz-me bem deixar
os poemas na secretária
por uns meses,
só família e corpo
e relatórios, projectos,
notas para a imprensa.

O ar do tempo revigora.
A linguagem faz-se rogada
e agarra-se aos objectos,
retira-lhe adjectivos.

O tempo vai transformando
os versos em mais coisas
que não reconheço,
meses depois, quando me sento
à secretária e volto a escrever
o poema de sempre.

José Ricardo Nunes

COMEÇO POR INVOCAR WALT WHITMAN

É por acção de amor ao meu país
que te reclamo, ó necessário irmão,
velho Whitman da cinzenta mão,

para que, com teu apoio extraordinário,
verso a verso, matemos de raiz
Nixon, o presidente sanguinário.

Sobre a terra não há homem feliz,
ninguém trabalha bem no planeta
se em Washington respira o seu nariz.

Pedindo ao velho bardo que me invista,
os meus deveres assumo de poeta
armado do soneto terrorista,

porque devo ditar sem pena alguma
a sentença até agora nunca vista
de fuzilar um criminoso ingente

que apesar das suas viagens para a lua
já matou na terra tanta gente,
que até foge o papel e a pena se alevanta

ao escrever o nome do maldito,
do genocida, o da Casa Branca.

Pablo Neruda



(Alexandre O'Neill)

A CONCHA

A minha casa é concha. Como os bichos,
Segreguei-a de mim com paciência:
Fachada de marés, a sonho e lixos;
O horto e os muros -- só areia e ausência.

Minha casa sou eu e os meus caprichos.
O orgulho carregado de inocência
Se às vezes dá uma varanda, vence-a
O sal que os santos esboroou nos nichos.

E telhados de vidro, e escadarias
Frágeis, cobertas de hera -- oh bronze falso! --
Lareira aberta ao vento, as salas frias.

A minha casa... Mas é outra a história:
Sou eu ao vento e à chuva, aqui descalço,
Sentado numa pedra de memória.

Vitorino Nemésio

sábado, 23 de outubro de 2010

LUNALVA

Se quiserem saber quem sou
-- Não sei quem sou
Só sei que em mim
A sombra e a luz
São vultos
Que se buscam e amam
Loucamente

Se quiserem saber do meu destino
-- Não sei do meu destino
-- Não sei do meu nome
Só sei daquela sede
Imensa sede
Que ainda não foi saciada

Se quiserem saber donde venho
-- Não sei donde venho.
Talvez venha do vento
Do deserto
Do mar
Ou do fundo das madrugadas

Não
Não me amem tão depressa
Não me compreendam tão depressa
Não me julguem tão fácil
Por favor
Não me julguem tão mesquinho
Tão quotidiano

O pão que trago comigo
-- Não é pão
É fogo
O vinho que trago comigo
-- Não é vinho
É sangue

E eu vos afirmo
-- Todos hão-de beber
Do Fogo e do Sangue

Carlos Nejar

VERDE

O verde tenro e vivo de folhagem,
presépio dos meus sonhos em menino,
pôs-se de luto a par com o meu destino,
cego-me a vê-lo imagem de miragem...

Quando iludido o busco na ramagem,
já com seus tons mais brandos não atino,
e nesta escuridão só me ilumino
vendo-o compor-me interior paisagem:

-- Paisagem doutro verde que de mim
sai alongada em foco para a terra
a procurar vencer-lhe a cerração,

E aonde num crepúsculo sem fim,
tonta, a Esperança esvoaçando, erra
sobre torres de encanto e de traição!

Edmundo de Bettencourt

UM EPITÁFIO

Que tu morreste, Heráclito, me dizem.
Amargas novas de que choro amargo.
Chorava, e relembrava quantas vezes,
falando nós, o Sol se pôs exausto.

E agora que tu és, meu velho amigo,
de cinzas um punhado há muito frias,
ainda a tua voz, o rouxinol, não dorme:
omnipotente a Morte, contra a voz não pode.

Calímaco

(Jorge de Sena)

sexta-feira, 22 de outubro de 2010

RICTOS

          Houve uma cidade erguida sob o elã das amazonas, mulheres à desfilada pela madrugada ecúlea.
          O sol ainda esbatido cintilava por seus corpos nodosos, atléticos, enquanto os homens dóceis, serviçais, fitavam o silêncio, ou mordiam areia com a nuca em brasa.

José de Matos-Cruz

Obra Poética

autor: José Carlos Ary dos Santos (Lisboa, 7.12.1936 - 18.1.1984)
título: Obra Poética
organização e notas: Francisco Melo
editora: Edições «Avante!»
local: Lisboa
ano: 2002
edição: 6.ª (1.ª, 1994)
capa: Colectivo das Edições «Avante!»
págs.: 451
dimensões: 21,8x15,3x2,9 cm. (cart.+sobrecapa)
impressão: SIG - Sociedade Industrial Gráfica
obs.: inclui juvenília (Asas, de 1952)

FELICIDADE

As pálpebras do dia
fecham-se no horizonte.

Na ávida transparência
dos nossos corpos
abre-se o amor
que sabe a mar,
sal e terra lavrada.

Unidos,
ardendo na mesma fogueira,
bebemos na vigília
a noite inteira.

Lá fora,
sem aviso,
rompe a aurora.

Telo de Morais

IDEIAS

Honra: Brio: Dignidade:
Onde estais? Quem vos preza?
-- Não posso viver pobre. A frialdade
Que me dá toda a pobreza!

Lembram-me bichos, carochas, centopeias,
Musgo, paredes húmidas, bolores,
Ao pensar na pobreza! -- Ideias.
E causam-me suores.

Afonso Duarte

SALMO

Ninguém nos moldará de novo em terra e barro,
ninguém animará pela palavra o nosso pó.
Ninguém.

Louvado sejas, Ninguém.
Por amor de ti queremos
florir.
Em direcção a ti.

Um Nada
fomos, somos continuaremos
a ser, florescendo:
a rosa do Nada, a
de Ninguém.

Com
o estilete claro-de-alma,
o estame ermo-de-céu,
a corola vermelha
da purpúrea palavra que cantámos
sobre, oh sobre
o espinho.

Paul Celan

(Yvette Centeno e João Barrento)

DESDICHADA

Sozinha e ao desamparo ela vivia
Nesse pobre casebre abandonado;
Não conhecera pai nem mãe; doía
Fitar aquele rosto macerado.

Nenhum rapaz esbelto a convidava
Para os descantes da festiva aldeia;
E consigo a mesquinha suspirava:
«Doce Jesus, por que nasci tão feia?»

Quando a Lua no céu azul surgia,
De alvo banhando a múrmura devesa,
No postigo do albergue a sós gemia,
Triste mulher sem viço nem beleza.

Chamou-a Deus enfim! Quando passava
O singelo caixão na triste aldeia,
Melancólico o povo murmurada:
«Vai tão bonita, olhai!, e era tão feia!...»

Gonçalves Crespo

O SONHO SEM DESTINO

Se os caminhos são breves
e os dias tão compridos,
e as tuas mãos mais leves
que a espuma dos vestidos;

se é de ti que me ondeia
uma brisa subtil...
E a vaga diz: -- Sereia!
E o sonho diz: -- Abril!

Se cresces e dominas
os campos que acalento,
e inundas as colinas
de fontes que eu invento;

se tens na luz dos olhos
o misterioso apelo
das cidades de fogo,
das cidades de gelo;

se podes bem guardar
na tua mão fechada
o meu altivo Tudo
e o meu imenso Nada;

se cabe nos meus braços
a bruma que tu és,
e em algas e sargaços
te abraço nas marés;

se, puro, na presença
da nossa grande Casa,
pões na voz de horizonte
um lume de asa e brasa.

Não sei porque te sonho
na sombra matinal,
e ao meu lado te vejo,
real e irreal.

Sabeis -- adaga fria,
que ao meu peito cintilas --
onde se oculta o dia
das aragens tranquilas?

Se tudo sabes, mata
com dedos de oiro fino,
ou com gume de prata,
o sonho sem destino!

Natércia Freire
Pela estrada que vai, erma e comprida,
Entre montanhas duras a trepar,
Duma olaia, do vento sacudida
Morre uma folha triste, devagar.

Cantam à roda dela, em despedida,
A névoa, a brisa, o pó, mais o luar,
Porque a folha vai dar a volta à Vida
E mais verde e mais linda há-de tornar.

Mas a olaia que sabe quantas penas
Custa à raiz fazer um ramo apenas,
Um tronco, quanto, ao Sol custou de passos;

Como uma mãe, transida de receio,
Abraça as outras filhas, junto ao seio,
Aperta as folhas entre os braços!

Nunes Claro

quinta-feira, 21 de outubro de 2010

NASCE O HOMEM NASCE O AMOR

Tenho os olhos limitados
pelas grades da minha cela,
são vinte e quatro quadrados
não corre a vida por ela

e a minha liberdade
feita sombra peregrina
sai de manhã, entra à noite
nem a prisão domina

não quero cama nem mesa
nem chave de qualquer porta,
a mim basta-me a certeza
que a minha voz vos conforta

nasce o homem, nasce o amor,
nasce a força, morre o medo,
morre o homem, nasce a dor,
morre a voz fica o segredo.

Amadeu Teles Marques

HESITAÇÃO

De que serve a tão límpida balada
Que, na rua, cantemos? Pobre dela
Se há tanta gente a ouvi-la, disfarçada
Por detrás das cortinas da janela!

Pedem-me versos de tema triste.
-- Pagam? -- pergunto.
-- Sim.
-- Viva o talento!

E como a voz do mercador insiste,
Hesito entre um enterro e um casamento...

Pedro Homem de Melo

POETA E REALIDADE (DIDÁTICA)

A poesia é a lógica mais simples.
Isso surpreende
aos que esperam ser um gato
drama maior que o  meu sapato
aos que esperam ser o meu sapato
drama tanto mais duro que andar descalço
e ainda aos que pensam não ser meu andar descalço
um modo calmo.

(Maior surpresa terão passado
os que julgam que me engano:
ah não sabem quanto quero o sapato
não sabem quanto trago de humano
nesse desespero escasso.
Não sabem mesmo o que falo
em teorema tão claro.

José Carlos Capinan
Se um dia a sede
de uns lábios desarmados
ou o veneno alastrar

e as crianças, amando o pão,
respirarem

Talvez o declinar da sombra
na face amada
ou um gesto
desenhado contra o vento

ensinem

o esquecido ofício
da alegria.

Fernando Jorge Fabião

AO DESCONCERTO DO MUNDO

Os bons vi sempre passar
No mundo graves tormentos
E para mais me espantar
Os maus vi sempre nadar
Em mar de contentamentos.
Cuidando alcançar assim
O bem tão mal ordenado
Fui mau mas fui castigado.
Assim que, só para mim,
Anda o mundo concertado.

Camões

POEMA CONFIADO À MEMÓRIA DE NORA MITRANI

Se eu pudesse dizer-te: -- Senta aqui
nos meus joelhos, deixa-me alisar-te,
ó amável bichinho, o pêlo fino;
depois, a contra-pêlo, provocar-te!
Se eu pudesse juntar o mesmo fio
(infinito colar!) cada arrepio
que aos viajeiros comprazidos dedos
fizesse descobrir novos enredos!
Se eu pudesse fechar-te nesta mão,
tecedeira fiel de tantas linhas,
de tanto enredo imaginário, vão,
e incitar alguém: -- Vê se adivinhas...
      Então um fértil jogo amor seria.
      Não este descerrar a mão vazia!

Alexandre O'Neill
Vi eu donas, senhor, en cas d'el-rei,
fremosas e que parecian ben
e vi donzelas muitas u andei
e, mha senhor, direi-vos ua ren:
    a mais fremosa de quantas eu vi
    long' estava de parecer assi

Come vós; e muitas vezes provei
se veeria de tal parecer
algua dona, senhor, u andei
e, mha senhor, quero-vos al dizer:
    a mais fremosa de quantas eu vi
    long' estava de parecer assi

Come vós; e, mha senhor, preguntei
por donas muitas, que oí loar
de parecer, nas terras u andei,
e, mha senhor, pois mh'as foron mostrar,
    a mais fremosas de quantas eu vi
    long' estava de parecer assi.

João Airas de Santiago
Sabemos que o tempo passou
Que alguma coisa deveria ter sido dita
(talvez depois, talvez mais tarde)
Deixamos atrás de nós
Uma sequência desconexa de gestos irreparáveis
E, feridos,
Por todas as coisas
que poderíamos ter evitado a nós próprios
Caminhamos para o silêncio
E para a escuridão indefinível dos bosques.

Luís Falcão

quarta-feira, 20 de outubro de 2010

recitativo VII

a necessidade
é a mãe de toda a cultura:

vi os do porto,
visível multidão de almas,
irados,
invadindo;

diziam a cidade
minguada de bom vereamento e o único
precisamente o único sítio que tinham
era onde cair mortos
e nem sequer dentro das casas: estas
têm quinze famílias diferentes
e pela sua
dilatada extensão se chamam ilhas

Vasco Graça Moura

SETEMBRO

                ...quanto mais envelheço, mais pueril é a luz
                mas essa vai comigo.

Nesses dias distantes eu vagueava pelas matas
enchia a espigarda de chumbo e disparava
contra o silêncio das árvores altas
só para assistir ao espectáculo dos pássaros em debandada
experimentava uma exaltação -- de que tenho hoje pudor
perante imagens que partem:
fragmentos rápidos, passagens, segredos que se apagam
nesses dias distantes nem suspeitava
a vida pode ser interminável

o que deixaste abandonado regressa aprende-se depois
quando, por exemplo, a esquecida infância se parece
com certos cães deixados de propósito a muitos quilómetros
que ladram não se percebe como
à porta da velha casa

José Tolentino Mendonça

ATÉ SE REVOLTAREM OS ESCRAVOS

Até se revoltarem os escravos.
Até se rebentarem as comportas.
Até sismos divinos, roncos cavos
Da terra inquieta sob as pedras mortas
Sacudirem a nossa quietação.
Até que luas doidas sobre o mar
Sejam sinal da Alucinação.
Até se extinguir a gentileza
Que mais que nos liberta, nos corrompe.
Até sermos capazes de amar,
Até sermos capazes de morrer.

M. António

DÚVIDA

Este -- o soneto da Saudade inquieta
Em que, lembrando as horas de paixão,
Pergunta à Musa o sonho do Poeta
Se ela é fiel à sua adoração...

Este -- o ritmo de amor em que, discreta
E oculta e desejosa de ilusão,
Minh'alma balbucia a dor secreta
De nunca dominar teu coração...

Este -- o soneto do viver profundo,
Em que a frase mais pobre é todo um mundo
De incerteza, de mágoa e puro ardor...

Vai para ti meu coração veemente...
-- Mas tu, Amor, se existes realmente,
Nem mesmo sabes que és o meu Amor!

João de Barros

PERENIDADE

Tombam as folhas, segundo a Natureza;
a Árvore, essa, permanece no chão que a justifica.

Assim nos Outonos da Humanidade:
morrem os homens,
mas aquela -- fica.

E se a Árvore de novo floresce,
mais verde em cada renovo,
também a Humanidade cresce, cresce,
e a seiva corre mais rica
no génio de cada Povo.

André Varga

terça-feira, 19 de outubro de 2010

Arco na noite
Gato preto dispara lentamente
O cinzento colorido
Das suas estrelas de nervos.
O teu corpo de mulher
Dispara o sal puro
E a maciez da espuma
Do arco branco da areia da praia.

Joaquim Gomes Mota
Esta noite a tua boca é a mais bela rosa do universo
Bebo para afogar este pesadelo
Que o vinho seja rubro como as maçãs do teu rosto
E os meus versos tão leves como os anéis dos teus cabelos

Omar Khayam

(J. Sousa Braga)

SOLEMNIA VERBA

Disse ao meu coração: Olha por quantos
Caminhos vãos andámos! Considera
Agora, desta altura fria e austera,
Os ermos que regaram os nossos prantos...

Pó e cinzas, onde houve flor e encantos!
E noite, onde foi luz de Primavera!
Olha a teus pés o mundo e desespera,
Semeador de sombras e quebrantos!

Porém o coração, feito valente
Na escola da tortura repetida,
E no uso do penar tornado crente,

Respondeu: Desta altura vejo o Amor!
Viver não foi em vão, se é isto a vida,
Nem foi de mais o desengano e a dor.

Antero de Quental

DE UM NOVO CONTINENTE

As árvores são sombras das raízes
E os homens são sombras de outras raízes
Mais fundas. Assim, dentro de mim,
Uma sombra cobre todas as luzes e todos os sons
Velando a minha alegria intacta e longínqua
E prometendo o paraíso perdido mas não esquecido.
Imagino o meu céu nos meus limites
E o céu dos outros ainda nos meus limites.
As minhas mãos atravessam o universo misterioso
E tocam as ignotas fontes da poesia e da vida.
O meu olhar, porém, fica comigo e chora
Esse amor de lágrimas e tristezas
Onde, como solitária ilha de coral,
A minha existência espera o nascimento de um novo continente.

António Quadros

JARDIM DE INVERNO

Na noite violenta os homens fingem que passeiam
e os senhores olham do alto de uma torre de marfim
-- são os pássaros ou são as árvores que chilreiam? --
Deixem dormir os homens nos bancos de jardim.

Deixem dormir os homens sossegados,
enrolados no frio como se tivessem cobertores,
-- os jardins parecem lares civilizados
com tapetes verdes e com flores.

Desfilam os sonhos macios e amáveis
e no sono dos homens adormece o desespero.
Ninguém mais diz que os bancos são inconfortáveis,
o que seria exagero.

E é evidente que eles são exagerados
quando estampam no rosto o sofrimento,
hipócritas que de braços cruzados
dormem felizes ao relento.

Parecem procurar, quando passeiam,
quem tem culpa que o mundo seja assim,
-- são os pássaros ou são as árvores que chilreiam? --
Deixem dormir os homens nos bancos de jardim.

Sidónio Muralha
As árvores são lugares imensos, como pálios
dobrados sobre o tempo. Creio que existem
como mutação da realidade, como o movimento
imperceptível de Deus sobre as águas. Existem
expostas à erosão, na curvatura quebrada
da superfície, no sacrário de uma natureza ferida.

Existem como uma porção infinitesimal da alegria
do mundo. Depois morrem sem que ninguém perceba
e a sua sombra perdura à morte, à decomposição lenta
das suas estruturas silenciosas como abismos,
indecifráveis como mistérios antigos, extensíveis
como os braços de Deus em combustão.

José Rui Teixeira

segunda-feira, 18 de outubro de 2010

O reino da estupidez -- Ciência Administrativa e Policial

aquele que critica
deve ser chamado à razão
questão de método ou bem talvez de hermenêutica
cite a melhor bibliografia autorizada
pp. 652-679 e passim
sorria muito use gestos largos dicção irrepreensível.
aquele que duvida
pode ser esclarecido
com um mínimo dispêndio de chá e dan cake
ou com um bom pontapé nos tomates
ingratus unus omnibus nocet.
mas aquele lá que interroga com
o olhar fixo
e um desenho equívoco nos lábios
sem mercê sem quartel --
esse deve perecer.

João Paulo Monteiro (Ângelo Novo)

CAMPANHA ELEITORAL

O candidato funga:
flácida e fofa
figura inflada
se inflama -- fala:

feixe de frases
feitas: fraseado
falaz se forma
na furna da voz;

na boca da urna,
língua de trapo
tropeça na areia
da arenga: arena.

Ensebado embusteiro
balança o bestunto
besuntado -- bestia
lógico lesa o povo:

no rádio o rugido
no cinema o aceno
no jornal o jargão
no comício o vício

no vídeo o vírus
da fraude invade
o veludo da voz
e envolve a fala;

ramerrão reumático
ruminante -- retrato
três por quatro na
televisão: de-pu-ta-do.

Armando Freitas Filho

SANTOS

Nasci junto do porto, ouvindo o barulho dos embarques.
Os pesados carretões de café
Sacudiam as ruas, faziam trepidar o meu berço.

Cresci junto do porto, vendo a azáfama dos embarques.
O apito triste dos cargueiros que partiam
Deixava longas ressonâncias na minha rua.

Brinquei de pegador entre os vagões das docas.
Os grãos de café, perdidos no lajedo,
Eram pedrinhas que eu atirava noutros meninos.

As grades de ferro dos armazéns, fechados à noite,
Faziam sonhar (tantas mercadorias!)
E me ensinavam a poesia do comércio.

Sou bem teu filho, ó cidade marítima,
Tenho no sangue o instinto da partida,
O amor dos estrangeiros e das nações.

Ah, não me esqueças nunca, ó cidade marítima,
Que eu te trago comigo, por todos os climas
E o cheiro do café me dá tua presença.

Ribeiro Couto

ERÓTICA

A noite descia,
Como um cortinado,
Sobre a erva fria
Do campo orvalhado.

E eu, (fauno em vertigem
A rondar em torno
Do teu corpo virgem,
Sonolento e morno),

Pensava no lasso
Tombar do desejo;
Em breve, o cansaço
Do último beijo...

E no modo como
Sentir menos fácil
O maduro pomo
Do teu corpo grácil.

Ou sem lhe tocar
-- De tanto o querer! --
Ficar a olhar,
Até o esquecer,

Ou como, por entre
Reflexos de lago,
Roçar-lhe no ventre
Luarento afago;

Perpassando os meus
No teus lábios húmidos,
Meu peito nos teus
Brancos
               seios
                         túmidos...

Carlos Queirós
O voss' amig', amiga, vi andar
tan coitado que nunca lhi vi par,
que adur mi podia já falar;
pero, quando me viu, disse-mi assi:
         «Ai, senhor, id' a mha senhor rogar,
         por Deus, que haja mercee de mi.»

El andava trist' e mui sen sabor,
come quen é tan coitado d'amor,
e perdud' á o sen e a color;
pero, quando me viu, disse-mi assi:
         «Ai, senhor, ide rogar mha senhor,
          por Deus, que aja mercee de mi.»

El, amiga, achei eu andar tal
come morto, ca é descomunal
o mal que sofr' e a coita mortal;
pero, quando me viu, disse-mi assi:
         «Senhor, rogad' a senhor do meu mal,
          por Deus, que aja mercee de mi.»

D. Dinis

NOITE

Pergunto à noite
sombria
o que é que sobra
do dia?

Claramente de dia
a sombra
é mais negra
que a noite.

Armando Taborda
Árvores de outono
fechadas sobre mim
folhas de outono
enterradas nos meus olhos
terra de outono
donde tu surgirás
como um jovem pássaro
livremente

Isabel Meyrelles

domingo, 17 de outubro de 2010

DUAS DAS FESTAS DA MORTE

Recepções de cerimônia que dá a morte:
o morto, vestido para um ato inaugural;
e ambiguamente: com a roupa do orador
e a da estátua que se vai inaugurar.
No caixão, meio caixão meio pedestal,
o morto mais se inaugura do que morre;
e duplamente: ora sua própria estátua
ora seu próprio vivo, em dia de posse.

                            *

Piqueniques infantis que dá a morte:
os enterros de criança no Nordeste:
reservados a menores de treze anos,
impróprios a adultos (nem o seguem).
Festa meio excursão meio piquenique,
ao ar livre, boa para dia sem classe;
nela, as crianças brincam de boneca,
e aliás com uma boneca de verdade.

João Cabral de Melo Neto

BRISE MARINE

La chair est triste, hélas! et j'ai lu tous les livres.
Fuir! là-bas fuir! Je sens que des oiseaux sont ivres
D'etre parmi l'écume inconnue et les cieux!
Rien, ni les vieux jardins reflétés par les yeaux
Ne retiendra ce coeur qui dans la mer se trempe
O nuits! ni la clarté déserte de ma lampe
Sur le vide papier que la blancheur défend
Et ni la jeune femme allaitant son enfant.
Je partirai! Steamer balançant ta mâture,
Lèvre l'ancre pour une exotique nature!
Un Ennui, désolé par les cruels espoirs,
Croit encore à l'adieu suprême des mouchoirs!
Et, peut-être, les mâts, invitant les orages
Sont-ils de ceux qu'un vent penche sur les naufrages
Perdus, sans mâts, sans mâts, ni fertiles îlots...
Mais, ô mon coeur, entends le chant des matelots!

Stéphane Mallarmé

BURGGARTEN (Rothenburg ob der Tauber)

Mozart na flauta que mendiga
As cores estouvadas de um cachorro
ofegando na relva recortada
Do Japão chegam os olhos e as lentes fotográficas
Calam-se os sinos -- de St. Jakob? --
enquanto a americana intranquila
folheia um guia turístico
e tece o seu fumo de cigarro
Todos fingem ignorar a melodia
Nem um marco tilinta no chapéu

João Pedro Mésseder

sábado, 16 de outubro de 2010

A UMA FREIRA QUE, SATIRIZANDO A DELGADA FISIONOMIA DO POETA, LHE CHAMOU PICA-FLOR

Se pica-flor me chamais,
Pica-flor aceito ser,
Mas resta agora saber
Se no nome que me dais
Meteis a flor que guardais
No passarinho melhor!
Se me dais este favor,
Sendo só de mim o pica
E o mais vosso, claro fica
Que fico então pica-flor.

Gregório de Matos
Tantos livros tenho lido,
Eu não sei o que este tem,
Leio-o sempre comovido
Faz-me mal e sabe bem.

                      Tires, Out. 1989


Celestino Costa
A memória das palavras morrerá no dia em que eu morrer.
É muito mais do que a minha morte.

Marcello Duarte Mathias

GÉNESIS OU OS PAINÉIS DE AVELINO ROCHA NO COLÉGIO DE GAIA

Eis como grávidas,
voláteis as formas
se organizam. E a matéria
se faz seiva. E sangue.
E sal. E sol. É outra vez
manhã, primeira
infância e arca
e harpa genesíacas. O homem
tirou de si as águas,
as sementes. E ao ar e ao fogo
as lançou. Terminada
a obra, assinou
seu nome com as tintas
do arco-íris.
Oitavo dia
da criação.

Albano Martins

sexta-feira, 15 de outubro de 2010

INSCRIÇÃO SOBRE AS ONDAS

Mal fora iniciada a secreta viagem,
um deus me segredou que eu não iria só.

Por isso a cada vulto os sentidos reagem,
supondo ser a luz que o deus me segredou.

David Mourão-Ferreira

Poesia da Noite


título: Poesia da Noite
antologiador: Urbano Tavares Rodrigues (Lisboa, 6.XII.1923)
apresentação: «Acerca da noite e dos seus aspectos na poesia portuguesa» (U.T.R.)
poetas antologiados: Luís de Camões, Bocage, Antero de Quental, Almeida Garrett, Gomes Leal, António Nobre, Eugénio de Castro, Cesário Verde, Teixeira de Pascoais, José Duro, Florbela Espanca, Afonso Duarte, António Patrício, Fernando Pessoa, Álvaro de Campos, Mário de Sá-Carneiro, José Régio.
edição: UCB - Divisão Farmacêutica /Neo-Farmacêutica, Lda.
local: Bruxelas
ano: 1970
capa: Henrique Ruivo
págs.: 64
dimensões: 18,8x13x0,7 cm. (brochado)
impressão: Cromotipo, Lisboa
obs.: editado pela farmacêutica belga, por ocasião da apresentação em Portugal do produto Isonox

JÁ NÃO É FÁCIL, EUGÉNIO, UM POEMA

Outrora várias vezes versos esperei
onde ficava fechada a amizade e vinham
num jogo de acalmia os instrumentos
de desenhar esse grão de penumbra. Enquanto
a casa e o corpo me protegiam.

Hoje tenho esta certeza de dizer-lhe
que nem a poesia é uma casa,
nem faz senão expor-nos ao banal
num corpo já entregue a bisturis,
apenas o espera cada cinza.

A claridade a que tento escrever-lhe
é tumefacta como um órgão ferido,
está sujeita numa cortina suja
e é à salgação da morte
que na janela adormecem os contornos.

Passámos na vida pelas nossas vidas
e, sabe que é raro, tudo esteve certo.
Agora é esperar o canto enfermo,
o banimento,
nem um abraço ficará
de nenhum de nada de nós.

Talvez nessa altura fogos presos
nos acendam em barcos as palavras,
estrondos surdos de luz cruzem a água
diante da qual por algum tempo
a mão de alguém fará lembrar
esses focos da noite, esquivos,
impossíveis de tocar.

E nessas brasas de tanta cor
outros escutam o desaparecimento.

Joaquim Manuel Magalhães

A DOR DAS PEDRAS

Ó pedras a sofrer, em ânsias, nas calçadas,
Ninguém vos sabe amar, ninguém de vós tem dó,
Ninguém sabe entender, ó pedras desgraçadas,
Que há lágrimas também dentro do vosso pó!

Passam, por sobre vós, tanta dor e alegria,
Olhos em que há prazer, olhos em que há tormento,
E ninguém vos consola e queima-vos o dia
E, quase sempre a rir, insulta-vos o vento!

E ninguém sabe ver que pode o infinito
Duma dor existir numa pedra do chão;
Que pode acontecer que um palmo de granito
Sofra, por vezes, mais que um grande coração.

E vós continuais sofrendo a vossa cruz,
E eu vejo-vos lançar um clarão para os Céus,
Como um grande protesto: ó pedras, essa luz
O que é que vai dizer ao ouvido de Deus?

Eu sei que vós falais a Deus dessa maneira:
Vossa palavra é luz, só Deus pode entendê-la:
Há dentro em vós, talvez, uma via-láctea inteira,
Porque, em sentindo dor, sai de vós uma estrela...

Ó pedras, esperai, que talvez um vulcão
Vos lance para o Céu, num abalo violento,
E lá pode falar o vosso coração
E alguém compreender o vosso sofrimento!

João Lúcio

A ÚNICA ROSA

Todas as rosas são a mesma rosa,
Amor, a única rosa.
E tudo está contido nela,
Breve imagem do mundo,
Amor! a única rosa.

Juan Ramón Jiménez

(Manuel Bandeira)

NOITE

Noite profunda e negra
Céu sem estrelas nem lua
Mar imenso bramando longe
Gritos de gente esperando em vão
Barco pesqueiro perdido além
Ondas furiosas que o não trarão mais

Mas nem todas as noites hão-de ser
Negras e profundas
Nem sempre o mar rugirá de raiva
Esmagará furioso
Os homens temerários
Que se atrevem a sondar-lhe o seu infinito Mistério

Hão-de vir noites suaves e amenas
Noites de céu com estrelas
E luar brilhante
Em que o mar há-de ser sereno e azul
De um azul de calma e mansidão
Aberto e franco a receber os homens temerários

Em que os homens
Hão-de poder enfim descansar sobre as ondas calmas
Em que os homens hão-de poder cantar
E em que hão-de poder viver
A plenitude da Vida
De olhar ridente e corações ao alto
Num amor alegre
Em quietude e Paz
Para sempre e eternamente

Eduardo Teófilo

O MEU LÁPIS

É impossível pintar
a canção do vento
ou o choro das árvores
quando são abatidas.
É possível, diz o meu lápis
habituado a tantas vidas.

Teresa Guedes

quinta-feira, 14 de outubro de 2010

A UMA MULHER

Quando a madrugada entrou eu estendi o meu peito nu sôbre o
[teu peito
Estavas trêmula e teu rosto pálido e tuas mãos frias
E a angústia do regresso morava já nos teus olhos.
Tive piedade do teu destino que era morrer no meu destino
Quis afastar por um segundo de ti o fardo da carne
Quis beijar-te num vago carinho agradecido.
Mas quando meus lábios tocaram teus lábios
Eu compreendi que a morte já estava no teu corpo
E que era preciso fugir para não perder o único instante
Em que fôste realmente a ausência de sofrimento
Em que realmente fôste a serenidade.

Vinicius de Moraes

SONETO DITADO NA AGONIA

Já Bocage não sou!... À cova escura
Meu estro vai parar desfeito em vento...
Eu aos Céus ultrajei! O meu tormento
Leve me torna sempre a terra dura.

Conheço agora já quão vã figura
Em prosa e verso fez meu louco intento.
Musa!... Tivera algum merecimento,
Se um raio da razão seguisse pura!

Eu me arrependo. A língua quase fria
Brade em alto pregão à mocidade
Que atrás do som fantástico corria:

-- «Outro Aretino fui... A santidade
Manchei!... Oh! se me creste, gente ímpia,
Rasga meus versos, crê na eternidade!»

Bocage
Ouve!
Suspende timidamente a âncora perdida:
Debruça-te ao de leve na trémula paisagem,
E depois suspira.

Ouve!
Efémeros são os sorrisos do orvalho:
As formas veladas espreitam, fugitivas,
O fluido das estrelas.

Ouve!
Prendeu-se o coração de alguém enamorado,
Lamentam as árvores nuas o herói adormecido,
E o instante pára.

Mas tu não ouves...
Só tu sobrevives e rasgas no abismo
Os véus castos do sonho!

Ruy Cinatti

BICHO-GENTE

Numa lamela de sol
uma larva de fome
na fome da hora
uma hora de bicho

(homem ou larva
bicho ou gente?)

Na fome da hora
uma larva estremece
na hora de bicho
um verme apodrece.

Arménio Vieira

sonata urbana

a flauta mesmo em silêncio
fabrica seu mel de fábula
o míssil mamom e a massa
carvão diurno de praga

modula a flauta no asfalto
onde um bêbado declama
seu lirismo contra a lama
e esse luar contra o salto

ou se achas mais sensato
e tua raiva reclama
cospe o lirismo na lama
atira a flauta no asfalto

José Falcón

PASSOS DE VELUDO (título póstumo)

                                                                                                                                                                                                 Do not go gently into that good night
                                                                                                                                                                                                                                    Dylan Thomas

Não permitas que a noite se desabe,
habituada e negra. Antes confunde
as regras e as sombras que lhe obedecem,
cegas. Não descanses olhar sobre
o vazio, nem no silêncio seduzindo
em nada. Aqui: címbalo, pífaro, assobio,
ou tampas de barulho avesso à almofada.
Grita, blasfema, geme em timbre agudo,
mas não deixes a lua, com passos de veludo
entrar pela ombreira, sentar-se e conversar.
Nem lhe ofereças um lar de cabeceira
e penumbra doente. Argumenta-a de frente
e à seda roçagante dos seus passos;
numa filosofia de algibeira,
resiste-lhe o abraço cultivado. E rasga
a sua máscara ausente de suor. Não entres
docemente nessa noite. Não entres
tão depressa.

Ana Luísa Amaral

a viagem

as pálpebras eram incolores. vinham anónimas.
transfiguradas em cada árvore. em cada ramo.
procurando a humanidade em tons de inverno.
porque era nesses tons que nós vivíamos. incrédula e
intemporal era a viagem. os apeadeiros eram curtos e
sem-cerimónia. pelas janelas ainda víamos as cerejeiras
que renasciam pelo natal. ou seriam as amendoeiras
que brotavam. amenas, deliciosas. com o nevoeiro os
olhos ficavam indecisos. talvez sombrios. nós agora
vemos apenas o que sentimos. e como é bom ainda
sentirmos neste inverno meu amor.

Joaquim Manuel Pinto Serra

quarta-feira, 13 de outubro de 2010

ALFORRECA E FANECA

Pobre de mim, tão Faneca,
Alforreca me fascina.
Sigo atrás da sua coroa,
dos seus terríveis cabelos
de gelatina e de prata:
só o vê-los me atordoa,
só o tocá-los me mata.

Violeta Figueiredo

POEMAS DA AMIGA

1

A tarde se deitava nos meus olhos
e a fuga da hora me entregava Abril.
Um sabor familiar de até-logo criava
um ar, e, não sei por que, te percebi.

Voltei-me em flor. Mas era apenas tua lembrança.
Estavas longe, doce amiga; e só vi no perfil da cidade
o arcanjo forte do arranha-céu cor-de-rosa
mexendo asas azuis dentro da tarde.

Mário de Andrade

LER ESCREVER

Quatro fragmentos

1
Não escrevo para me ler,
Leio para me escrever.

2
Não vivo o que escrevo
Não escrevo o que vivo.
Escrever é outra
Vida viver.

3
Entre a página escrita
E a página a escrever,
Que leitura nos separa,
Que escrita nos aproxima?

4
Pela Vida é que vamos,
Não pela escrita que temos.

Lisboa, 1993

Liberto Cruz
Revimos a grosseira superfície do
amor
Ninguém pudera corrompê-la tanto
por actos e palavras. Estivemos
novamente deitados na aspereza
do seu leito
Um ramo na mão tinhas e quiseste
medi-lo com os lábios e metê-lo

no centro doloroso do teu corpo
Eu via as tuas mãos que procuravam
inseri-lo e guardavam
nas linhas ávidas o seu limite grosso
Interrompeste o
sono magoado do meu corpo
e comigo
dormiste sobre as manchas depois

Gastão Cruz 

NAMORO DE ALDEIA

Duas horas e meia da manhã:
o trabalho que espera sossegado,
o cansaço do fogo na lareira,
a caneta riscando e o cantar do galo
estremunhado

Deve pensar que são seis horas, este galo,
e o meu trabalho em sono, o fogo que me fala,
uma unha roída,
um cigarro fumado,
o café a fazer e o poema desfeito
em só cadência

Que tema é este sério a esta hora
breve da manhã, com o trabalho à espera
e o fascínio do fogo?

Deve pensar que possui tema, este poema
que não me evita e me namora ousadamente
a desoras na aldeia

O fogo estala e outro galo canta
e o meu trabalho enjoa sossegado
No romance parado do meu poema e eu,
o café já saiu, começou a chover

Escorrem gotas macias no telhado,
o fogo morre, o trabalho desperta
abrindo um olho lento

e o meu namorado parvo e tonto
carregado de imagens (e de outras coisas leve)
sai furtivo a desoras

Só deixou por roer
a unha do polegar
da minha mão direita

Ana Luísa Amaral

terça-feira, 12 de outubro de 2010

POETA

Poeta: uma criança em face do papel.
Poema: os jogos inocentes,
invenções de menino aborrecido e só.
A pena joga com palavras ocas,
atira-as ao ar a ver se ganha ao jogo.
Os dados caem: são o poema. Ganhou.

Adolfo Casais Monteiro

DESAPARECIMENTO

Tudo caminha para o desaparecimento:
o homem que no seu tempo de vida
padece da árdua pergunta do corpo;
os indefesos animais devorados
em clausura pela sombra;
as nuvens no vórtice insano do vento;
a luz arrebatada à sombra e para ela
voltando no final;
o amor diante do rio do esquecimento.

Apenas o que carece de forma,
por de todas ser o molde,
é fonte de onde mana o conhecimento
misterioso do mundo:
em horas difíceis o que amamos
nele procura instantes de trégua,
refúgio de tenebrosa tempestade.

A esse, mais desconhecido do que a morte,
me dirijo, na inútil liturgia do poema,
para que te possa ungir as feridas do corpo
e te proteja na última morada da alma.

Jorge Gomes Miranda
Quisera vosco falar de grado,
ai meu amigu' e meu namorado;
mais non ous' oj' eu con vosc' a falar,
ca ei mui gran medo do irado;
irad' aja Deus quen me lhi foi dar.

En cuidados de mil guisas travo
por vos dizer o con que m'agravo;
mais non ous' oj' eu con vosc' a falar,
ca ei mui gran medo do mal-bravo;
mal-brav' aja Deus quen me lhi foi dar.

Gran pesar ei, amigo, sofrudo,
por vos dizer meu mal ascondudo;
mais non ous' oj' eu con vosc' a falar,
ca ei mui gran medo do sanhudo;
sanhud' aja Deus quen me lhi foi dar.

Senhor do meu coraçon, cativo
sodes en eu viver con quen vivo;
mais non' ouso oj' eu con vosc' a falar,
ca ei mui gran medo do esquivo;
esquiv' aja Deus quen me lhi foi dar.

D. Dinis

EUGÉNIO

Trouxe para as névoas da cidade
o ouro dos trigais, a brancura
da cal que os mouros deixaram
por herança, como a nora
que sempre deu água ao seu moinho.
Percorreu as ilhas da história para
britar a pedra, esmiuçar os alicerces,
começando a amar as maresias,
a areia suave, as luzes das arribas,
e quando o coração se lhe partia
escrevia um poema onde o sol
entrava pelos ossos, dourava a saudade
e punha as aves negras a voarem
para longe, estrelas do desgosto
que as nuvens arrastavam para fora
do horizonte. As cintilações
de Setembro reverdecem
o que a memória decantou, o mar
a que a errância da memória
sempre volta. Folhas secas
aparentes, que formam um tornado
luminoso que bate à sua porta.
E a porta abre-se... o mar está ali.

1999

Egito Gonçalves

AS ETERNAS MARGENS

                                                                                                                                                                                          À Margarida Losa

Um cedro te pensava.
Nunca faia,
ou sobretudo junco de ternura.
Mas de cedro: sempre sementes foram
a dar seiva aos amigos
e ao mundo.

Um cedro te pensava. Feito de força
e vento
-- ou vendaval.
Nunca faia de espanto
ou junco horizontal
onde horizonte: nada.

Um cedro. Uma pequena ponte alada,
força feita de tanto
e luz de solidez, onde a seiva
se faz de frente ao mundo,
a ela se ligando
a tua imagem.

Um cedro te pensava.
Se faia fores também,
ou frágil junco,
igual o coração.
E a sua eterna margem.

Ana Luísa Amaral

segunda-feira, 11 de outubro de 2010

OS VERSOS

Os versos assemelham-se a um corpo
quando cai
ao tentar de escuridão a escuridão
a sua sorte

nenhum poder ordena
em papel de prata essa dança inquieta

José Tolentino Mendonça

NOITES DE MACAU (1)


Da boca da noite soltam-se as sombras,
encostam-se aos muros,
deitam-se no asfalto.
Por vezes atravessam as ruas
a correr.
Junto ao Lou Lim Leoc
eu vi duas mulheres
saírem de uma casa
cor de rosa.
Gritavam aos deuses tailandeses,
traziam os cabelos soltos,
e choravam.

António Augusto Menano

(FALA DO MAR)

-- Arte de Amar, eu fui antigamente
E sou, seu Mestre antigo e venerável.

No princípio do mundo, tempo incerto,
E quando a terra apenas aflorava
Num ar entorpecido, torvo e inútil,
Pois não surgira ainda vida viva
Que o respirasse em folha de verdura
Ou ave acasalada ou fera uivante;

No princípio do mundo (na incerteza,
no Tudo e Nada do começo) arfando
Em meus ondados, espraiados ritmos,
Eu fui o que ensinei primeiramente
A Terra inconsciente, agreste e rude,
Artes de Amor divino;  quer erguido
Em aluado espasmo; quer beijando
Morna nudez de fragas; quer cingindo,
Com meus longos abraços de volúpia,
Indecisos contornos de montanhas,
Puberdade de curvas amorosas.

E depois que ensinei minha arte antiga
É que a Terra foi Mãe e foi mais bela:

As duras fragas conceberam fontes.

As fontes conceberam as verduras.

As aves construíram os seus ninhos.

E as feras monstruosas, ternamente,
Caros filhos do Amor amamentaram...

António Correia de Oliveira

O ACENDEDOR DE LAMPIÕES

De tanto bater à porta
Da noite que à noite cai,
Ninguém com ele se importa
Nas ruas por onde vai.

De volta a casa, não diz
Como aprendeu a acender
Estrelas que o fazem feliz
Porque não querem morrer.

Vergílio Alberto Vieira

PAZ

Quem se zangou com as oliveiras?
Porque as abanam tanto?
Pronto, já caíram as azeitonas.
As pessoas apanham-nas como jóias.
Mas uma ficou esquecida:
na árvore, exausta e feliz,
ela adormece suavemente.

Teresa Guedes

domingo, 10 de outubro de 2010

MOTIVO

Eu canto porque o instante existe
e a minha vida está completa.
Não sou alegre nem sou triste:
sou poeta.

Irmão das coisas fugidias,
não sinto gozo nem tormento.
Atravesso noites e dias
no vento.

Se desmorono ou se edifico,
se permaneço ou me desfaço
-- não sei, não sei. Não sei se fico
ou passo.

Sei que canto. E a canção é tudo.
Tem sangue eterno a asa ritmada.
E um dia sei que estarei mudo:
-- mais nada.

Cecília Meireles
façam-no feliz e não
o culpem de nada, digam-lhe
a verdade, que esta
dura morte é ainda o
resto da minha alegria

valter hugo mãe
A meio do caminho
a mais de meia vida já vivida
reencontrei-me só na selva escura
da vida indecifrada
e não sei de que lado está a morte
e não sei se é o amor quem a sustenta
no tempo
que chegou
de destruir
para ver o que seja o que me sobra
no certo entendimento
de que as vidas são feitas
no perdê-las
ou nisso só existem
porque há vida somente quando há morte
e porque toda a selva
por mais cerrada e escura
contém o tempo já do seu deserto
na fértil luz difusa que a penetra
para nela executar o seu amor.

Helder  Macedo  

MARINHA

Ditosos a quem acena
Um lenço de despedida!
São felizes: têm pena...
Eu sofro sem pena a vida.

Doo-me até onde penso,
E a dor é já de pensar,
Órfão de um sonho suspenso
Pela maré a vazar...

E sobe até mim, já farto
De improfíquas agonias,
No cais de onde nunca parto,
A maresia dos dias.

Fernando Pessoa
Eram todos os seres mansos e amáveis para o homem,
feras e aves, e a amizade eclodia em toda a parte.

Empédocles

(Maria Helena da Rocha Pereira)

sábado, 9 de outubro de 2010

O ELEITO DO CAPITAL

6. Porque faço dele o meu eleito, o capitalista incarna a virtude, a beleza, o génio. Os homens consideram espirituosa a sua estupidez, afirmam que o seu génio está acima da ciência dos pedantes. Os poetas pedem-lhe a inspiração e os artistas recebem de joelhos as suas críticas. As mulheres juram que ele é o Don Juan ideal. Os filósofos erigem os seus vícios em virtudes. Os economistas descobrem que a sua ociosidade é a força motriz do mundo social.

Paul Lafargue

(J. Mega)

a escrita mais ténue (a noite)

um trilo de obsidiana agita
a poalha de leite
limalha de voos
que aguardava no adágio extinto

uma nova escrita mais ténue
nasce coalha agita
a centelha ausente
E os céus prepara p'ra um verão

se regressam as melodias
se a nata do poema
treme de evidente
no esperanto de uma erupção

se o tempo pára na estação

Pedro Ludgero

SONHO

Durante a noite
A Luísa sonhou
Que um Caracol
Assim lhe falou:
-- Vem Luisinha
Vem passear.
-- E se chover
Para me abrigar?
-- Não tenhas medo, Luisinha
Podes entrar
Na minha casinha.
-- Senhor Caracol
Eu sou muito alta
É outra casinha
Que me faz falta.
O Caracol estremeceu
E um belo palácio
Apareceu!
A Luisinha
Não pode crer
No que os seus olhos
Estão a ver.
O Caracol
foi transformado
Num belo príncipe ali a seu lado
Que à Lusinha fala de amor

Mas nisto... Toca o despertador!

Isabel Lamas

Obra Poética I

autor: José Craveirinha (Lourenço Marques [Maputo], 28.5.1922 -- 6.2.2003)
título: Obra Poética I
editora: Editorial Caminho
local: Lisboa
ano: 1999
págs: 223
dimensões: 21x14,8x1,3 cm. (brochado)
impressão: Tipografia Lousanense
tiragem: 3000
capa: José Serrão
obs.: inclui os livros Xigubo (1964) e Karingana ua Karingana (1974)

sexta-feira, 8 de outubro de 2010

Escrever é que nos deixem rir e chorar sozinhos.

Ramón Gómez de la Serna

(Jorge Silva Melo)

ERGO UMA ROSA...

Ergo uma rosa, e tudo se ilumina
Como a lua não faz nem o sol pode:
Cobra de luz ardente e enroscada
Ou vento de cabelos que sacode.

Ergo uma rosa, e grito a quantas aves
O céu pontuam de ninhos e de cantos,
Bato no chão a ordem que decide
A união dos demos e dos santos.

Ergo uma rosa, um corpo e um destino
Contra o frio da noite que se atreve,
E da seiva da rosa e do meu sangue
Construo perenidade em vida breve.

Ergo uma rosa, e deixo, e abandono
Quanto me dói de mágoas e assombros.
Ergo uma rosa, sim, e ouço a vida
Neste cantar das aves nos meus ombros.

José Saramago

CANTIGA

Antes que o Sol se levante
Vai Vilante a ver o gado,
Mas não vê Sol levantado
Quem vê primeiro a Vilante.

                       VOLTAS

É tanta a graça que tem
Com uma touca mal envolta,
Manga de camisa solta,
Faixa pregada ao desdém,
Que se o Sol a vir diante
Quando vai mungir o gado,
Ficará como enleado
Ante os olhos de Vilante.

Descalça às vezes se atreve
Ir em mangas de camisa,
Se entre as ervas neve pisa
Não se julga qual é neve;
Duvida o que está diante
Quando a vê mungir o gado,
Se é tudo leite amassado,
Se tudo as mãos de Vilante.

Se acaso o braço levanta
Porque a beatilha encolhe,
De qualquer pastor que a olhe
Leva a alma na garganta;
E inda que o Sol se alevante
A dar graça e luz ao prado,
Já Vilante lha tem dado,
Que o Sol tomou de Vilante.

Francisco Rodrigues Lobo

E O SONO: SÓ MOMENTO

                                                                                                                                                                                                         Death thou shalt (not) die

A morte e nunca mais cheiros violentos
ou doces de algodão: gasolina ou o chão
de cera fresca, a terra de manhã,
a pele -- aquela, ou de pasta de escola.
A morte e nunca mais o sol feroz
da primavera em fim. O verde tão fecundo
e desabitual todos os anos. O gesto
humano e brando do amor. Carta de luz.
Olhar que se pendura por varanda
de pássaro minúsculo ou passeios
criando a arte em pedras reduzidas.
E nunca mais os poliedros lisos
dos teus olhos centrando-se nos meus.
A morte e nunca mais -- que está morta.
Só momentaneamente adormeceu.

Ana Luísa Amaral

A CORRENTE

Lá vão as folhas secas na corrente...
Lá vão as folhas soltas das ramadas...
Hastes envelhecidas e quebradas
galgando as asperezas da vertente.

A cheia arrasa os frutos e a semente,
a terra inculta, as várzeas fecundadas,
e vai perder-se, ao longe, nas quebradas,
numa fúria cruel e inconsciente.

Em nós ainda é mais funda, ainda é mais vasta,
esta ansiedade enorme e sem perdão,
que nos fere, nos tolhe e nos devasta...

As árvores desprendem-se e lá vão...
Mas nós ficamos porque nada arrasta
as raízes fiéis dum coração.

Fernanda de Castro

quinta-feira, 7 de outubro de 2010

Há certas coisas que, sendo medíocres, se tornam insuportáveis: a poesia, a música, a pintura e os discursos públicos.

La Bruyère

(João de Barros)

AS MÃOS

Tenho para te dar as mãos vazias
e pouco mais, mas olha como são
as minhas mãos, que outrora foram frias
e hoje ardem ao calor da emoção
de sentir como espantam as sombrias
noites em que o negrume e a solidão
eram a manta com que te cobrias.

Torquato da Luz
Donde vem o luar?!
Do sol
que tomba?

Da luz sombria do meu olhar!

A luz foi sempre um girassol
de sombra.

António de Navarro

CÂNTICO

Limarás tua esperança
até que a mó se desgaste;
mesmo sem mó, limarás
contra a sorte e o desespero.

Até que tudo te seja
mais doloroso e profundo.
Limarás sem mãos ou braços,
com o coração resoluto.

Conhecerás a esperança,
após a morte de tudo.

Carlos Nejar

HORA CREPUSCULAR

Só, na noite. O vazio do intrincado espaço
da memória, teia quase perfeita de finos
nervos. Como num bastidor, quebrou-se agulha,
rompeu-se o fio de seda, ou lã macia.
Ou foi só o crepúsculo que, dissonante, entrou?

Só, na noite, no vazio intrincado do pensar.
Mas, se brilho na teia? Se segundo qualquer crepuscular
à cabeceira, onde medicamentos
e pequenas flores? Que olhar nos é negado?
Alguém em limiar ou tempo ausente?

De encontro aos cobertores, que frio maior?
O frio nos fios da teia em desconserto. E rotos.
Mas, se alguma candeia de século passado,
o azeite a manchar o bastidor? Só, na noite.
Sem deuses, nem demónios. A teia a oscilar,

sem som.

Ana Luísa Amaral