terça-feira, 30 de novembro de 2010

VIRGEM

Sobe, suave, solene coluna de fumo branco...

És vulto que se evapora,
És toda a alma que chora
Sem lágrimas, sem motivo,
Sem uma queixa
Aparente.
           Vivo!
           Em mim
           Existe
           Sòmente
           Uma tristeza
           Sem fim
           Que nem me deixa
           Ser triste
           Aos olhos da outra gente.

           Imagem
           Sempre em viagem,
           Minha impalpável riqueza.

Sobe, suave, solene coluna de fumo branco...

Lisboa,
1927


Gil-Vaz

ASTROLÁBIO

Guardei o recibo, que não serve para nada.
Dados impessoais: o nosso subtotal foi de 6,35
-- pediste uma água mineral, um café
e uma sandes de ovo (em que não tocaste);
pagámos caro por estarmos ali os dois,
na cafetaria do aeroporto com uma hora inteira
só para dizer uma palavra. Tudo
processado por computador, IVA incluído.
Uma operação que teve início precisamente
às 04.55 da madrugada. Agora
temos muito tempo para nos contentarmos
por já não termos que disputar as contas,
tu pagas os teus cafés, e eu sem ti
passo bem sem café.

Diogo Vaz Pinto

RECREIO

Na claridade da manhã primaveril,
Ao lado da brancura lavada da escola,
As crianças confraternizam com a alegria das aves...

A mão doce do vento afaga-lhes os cabelos,
E o sol abre-lhes rosas nas faces saudáveis
-- Um sol discreto que se esconde às vezes entre nuvens brancas...

As meninas dançam de roda e cantam
As suas cantigas simples, de sentido obscuro e incerto,
Acompanhadas de gestos senhoris e graves.

Os rapazes correm sem tino e travam lutas,
Gritam entusiasmados o amor espontâneo à vida,
A vida que vai chegando despercebida e breve...

E a jovem mestra olha todos enlevadamente,
Com um sorriso misterioso nos lábios tristes...

Alberto de Serpa
Fica o passar do tempo na paisagem
-- fica numa folha que passa
e seca
tomba...

Fica numa sombra
a completar a imagem
da eternidade.

António de Navarro

JANGADA

Vai o marinheiro pôr no mar
a mala grande de herói
que embarca todos os dias
e segue na derrota sem velas
nem casa de navegação.

Vai fechando os olhos aos anos desertos
esmigalhando nas mãos
as horas que lhe envelhecem a vigília
e como criança no encantamento de uma fantasia
dá a direcção de mar largo
ao pauzinho que põe na água.

Olhos postos na hora grande
duma partida que inventa mastros cabos,
companheiros de viagem de várias falas,
qual virgem que espera até às rugas
o momento do amor...
ou figura antiga na contemplação mística
dum sonho sonhado
(o mar porta aberta dum fruto quase proibido)
inclina-se com a brisa e sonha
que não está sonhando!

Teobaldo Virgínio

FLASH DE JOHN COLTRANE

para Rão Kyao

a ouvir Stardust de John Coltrane
o meu destino é este debruçado na
pirâmide com o coração aberto em quatro
de maneira esfíngica no deserto sempre
que outro lugar não há à mercê de ser
livre dono da deriva do barco

7-10-77

António Barahona

segunda-feira, 29 de novembro de 2010

O GATO

O meu não come ratos, não gosta. Se apanha algum, é para brincar com ele.
Quando brincou tudo, poupa-lhe a vida, e vai sonhar noutra parte, o inocente,
          [sentado no caracol do seu rabo, a cabeça fechada como um punho.
Mas, por causa das garras, o rato morreu.

Jules Renard 

(Jorge de Sena)

O MENINO DE SUA MÃE

No plaino abandonado
Que a morna brisa aquece,
De balas trespassado
-- Duas, de lado a lado --,
Jaz morto, e arrefece.

Raia-lhe a farda o sangue.
De braços estendidos,
Alvo, louro, exangue,
Fita com olhar langue
E cego os céus perdidos.

Tão jovem! que jovem era!
(Agora que idade tem?)
Filho único, a mãe lhe dera
Um nome e o mantivera:
"O menino da sua mãe".

Caiu-lhe da algibeira
A cigarreira breve.
Dera-lhe a mãe. Está inteira
E boa a cigarreira.
Ele é que já não serve.

De outra algibeira, alada
Ponta a roçar o solo,
A brancura embainhada
De um lenço... Deu-lho a criada
Velha que o trouxe ao colo.

Lá longe, em casa, há a prece:
"Que volte cedo, e bem!"
(Malhas que o Império tece!)
Jaz morto, e apodrece,
O menino da sua mãe.

Fernando Pessoa

ALARIDO

E veio a noite do alarido.

A noite clara, a noite fria,
com perfurados calafrios.

A noite com punhais erguidos
e olhos devassando perigos.

A noite cava, com ladridos
de cães atiçados. E espias.

A noite com tremores lívidos
e com membros estarrecidos
diante das ovelhas suicidas.

A noite de mármore e níquel
despedaçando-se em tinidos
no cristal violento das criptas.

Montanhas de ferro em vigília,
longas árvores comprimidas
e astros de fogo em carne viva

pasmaram de tanto alarido.

Henriqueta Lisboa

BUGANVÍLIA

Branca a buganvília explode
no odiado muro em frente

à volta a vida berra crente
e o negro sangue estanca

vermelha a buganvília
rompe o muro da frente

José Luandino Vieira

MAR INCERTO

Que triste o som acorda à minha voz!
Como é pálida a luz do meu espelho
E a desse rio azul que não tem foz:
O tempo, em que me vou fazendo velho...

Dias loucos da infância, onde estais vós?
E a alegria -- esse cântico vermelho
Do sangue virgem que não tem avós?
Como se chama a sombra em que ajoelho?

Arfa, cansado, no meu peito um mar:
O mar remoto da remota Ilha
Onde as sereias cantam ao luar...

À esteira dos navios, as gaivotas
Gritam no céu, e o céu, lânguido, brilha
Sem ecos de vitórias ou derrotas.

António de Sousa

domingo, 28 de novembro de 2010

No silêncio das tapeçarias
há a memória
das terríveis batalhas
do imaginário.
Mas são ternas
as cartas que trocam entre si
os seus heróis.
É certo que as árvores cantam por toda a parte
a sua música
e que há enfim leões e elefantes
no centro de Londres ou de New York.
Agora a tua face está cravejada de ponteiros
e a manhã que acaba de nascer
regressa ao ventre materno.
Lisboa cobre-se de gaivotas.
Um gravíssimo excesso de grandeza
anuncia o Nada.

Áfricas 69

Artur do Cruzeiro Seixas

ALEGRIA DE VIVER

Quando eu era menina,
Já minha mãe me dizia:
-- Mesmo que sejas velhinha,
Não percas essa alegria!

Com as agruras da vida,
Não há que desanimar,
A vida é melhor vivida
Se for levada a cantar.

No rosto duma criança,
Na flor a desabrochar,
Nós vimos sempre a esperança
Que nos ajuda a lutar.

Toda a minha poesia
É feita com simplicidade
Não tem hipocrisia
Tem apenas amizade.

Agradeço ao Senhor
Os dons que me concedeu.
Não tenho grande valor
Mas o pensamento é meu.

                         8-10-1987


Isolina Alves Santos

sábado, 27 de novembro de 2010

THE SNOWMAN

One must have a mind of winter
To regard the frost and the boughs
On the pine-trees crusted with snow;

And have been cold a long time
To behold the junipers shagged with ice,
The spruces rough in the distant glitter

Of the January sun; and not to think
Of any misery in the sound of the wind,
In the sound of a few leaves,

Wich is the sound of the land
Full of the same wind
That is blowing in the same bare place

For the listener, who listens in the snow,
And, nothing himself, beholds
Nothing that is not there and the nothing that is.

Wallace Stevens

SALÃO DE BELEZA (2ª Impressão)

Dorida visão esta pobre velha
à saída do salão de beleza.
Apesar dos muitos e pesados passos
que deixou na terra, do lastro insuportável
de seus anos movediços,
ainda encontra forças para arrastar a alma
até ao reverso de um espelho e desenhar,
de memória, o sanguíneo traço dos lábios,
armar o cabelo para mais uma ilusão.
Admirável a tenacidade das ervas
que à enxurrada opõem a verdura de um grito
e resistem à lição de Marco Aurélio,
ao prolongado cerco da realidade.
Admiráveis porque vestem de gala
para mais uma dança, já solitária,
num baile de fantasmas, todo mental,
sem dar crédito à melancolia nem ouvidos
ao tirânico juízo da crua, da falsa
da estúpida carreta fúnebre.

José Miguel Silva

DÍSTICO

O viver que grita muito não diz nada.
A morte ao dizer tudo é bem calada.

8/7/38


Jorge de Sena

sexta-feira, 26 de novembro de 2010

Eros de Passagem

título: Eros de Passagem
subtítulo: Poesia Erótica Contemporânea
antologiador: Eugénio de Andrade
autores: Camilo Pessanha, António Patrício, Afonso Duarte, Fernando Pessoa, Fernando Pessoa / Álvaro de Campos, Mário de Sá-Carneiro, Florbela Espanca, António Botto, António de Sousa, Edmundo de Bettencourt, José Régio, Vitorino Nemésio, José Gomes Ferreira, Pedro Homem de Melo, Miguel Torga, Carlos Queirós, Adolfo Casais Monteiro, Ruy Cinatti, Jorge de Sena, Sophia de Mello Breyner Andresen, Raul de Carvalho, Carlos de Oliveira, Egito Gonçalves, Eugénio de Andrade, Mário Cesariny, Natália Correia, Alexandre O'Neill, António Ramos Rosa, David Mourão-Ferreira, Fernando Guimarães, João Rui de Sousa, Alberto de Lacerda, Fernando Echevarría, Ana Hatherly, Herberto Helder, José Bento, António Osório, Pedro Tamen, Fernando Assis Pacheco, Maria Teresa Horta, Armando Silva Carvalho, Luiza Neto Jorge, Vasco Graça Moura, Gastão Cruz, João Miguel Fernandes Jorge, António Franco Alexandre, Joaquim Manuel Magalhães.
desenhos: José Rodrigues
colecção: «Os Olhos e a Memória» #20
direcção literária: Egito Gonçalves
direcção gráfica: Armando Alves
edição: Limiar
local: omisso
ano: 1982
págs.: 72
dimensões: 20,5x12,5x0,6 cm. (brochado)
impressão: COOPAG, Porto
ob.: nas badanas, textos de Nuno Teixeira Neves e Joaquim Manuel Magalhães; foto de Eugénio de Andrade na contracapa, autor não-identificado

RUA ADAMCZEWSKI

Na distante memória, a estreita Rua Adamczewski
contorna o olhar até se abrir em direcção ao cemitério
que fica no cimo da colina, onde as crianças brincam
aos castelos numa árvore sem pássaros.

Aqui a sombra da morte é tão presente quanto a do fim da tarde;
felizmente ainda mal passámos do meio-dia e os velhos
bebem aguardente de ervas no café à espera de quase tudo,
menos do grito de uma flor que aguarda um destino.

Mas eis que ele soa e o nosso tempo altera-se,
como se de ouvido encostado ao chão pudéssemos
associar o triunfo das formigas ao dos nossos antepassados
a caminhar lado a lado pela Rua Adamczewski acima
em direcção ao cemitério, de braços dados, enquanto cantam
Se não são os mortos que nos guardam,
porque é que os deitamos aqui em cima?

David Teles Pereira
Quando o amor morrer dentro de ti
Caminha para o alto onde haja espaço,
E com o silêncio outrora pressentido
Molda em duas colunas os teus braços.
Relembra a confusão dos pensamentos,
E neles ateia o fogo adormecido
Que uma vez, sonho de amor, teu peito ferido
Espalhou generoso aos quatro ventos.
Aos que passarem dá-lhes abrigo
E o nocturno calor que se debruça
Sobre as faces brilhantes de soluços.
E se ninguém vier, ergue o sudário
Que mil saudosas lágrimas velaram;
Desfralda na tua alma o inventário
Do templo onde a vida ora de bruços
A Deus e aos sonhos que gelaram.

Ruy Cinatti
Roland Kirk dixit: 'piano é um instrumento racista
tem mais teclas brancas do que pretas'
Roland tocava sopros, claro
todos ao mesmo tempo

José Duarte

HÁ UMA GOTA DE SANGUE NO CARTÃO-POSTAL

eu sou manhoso eu sou brasileiro
finjo que vou mas não vou minha janela é
a moldura do luar do sertão
a verde mata nos olhos verdes da mulata

sou brasileiro e manhoso por isso dentro
da noite e de meu quarto fico cismando na beira de um rio
na imensa solidão de latidos e araras
                                                 lívido
de medo e de amor

Antônio Carlos de Brito

CANÇÃO

Pus o meu sonho num navio
e o navio em cima do mar;
-- depois, abri o mar com as mãos,
para o meu sonho naufragar.

Minhas mãos ainda estão molhadas
do azul das ondas entreabertas,
e a cor que escorre dos meus dedos
colore as veias desertas.

O vento vem vindo de longe,
a noite se curva de frio;
debaixo da água vai morrendo
meu sonho, dentro de um navio...

Chorarei quanto for preciso
para fazer com que o mar cresça,
e o meu navio chegue ao fundo
e o meu sonho desapareça.

Depois, tudo estará perfeito:
praia lisa, águas ordenadas,
meus olhos secos como pedras
e as minhas duas mãos quebradas.

Cecília Meireles

quinta-feira, 25 de novembro de 2010

Poemas escritos por abismos sem fim, na
Minha alma, através da luz das minhas
Lágrimas, buscando a infância velha
Por naves desmedidas e finais, sangrando
Para sempre a sombra.

Fernando Botto Semedo

APONTAMENTO

curvada ao peso
ao peso brutal
dos blocos de pedra
e os olhos no chão
os olhos na terra
anda na obra
levando o cimento
a pedra e a cal
ao mestre pedreiro
e curvada ao peso
ao peso da vida
de lágrimas secas
e sangue sem vida
traz o seu filho
preso nos panos
dobrados nas costas
nas costas curvadas
ao peso brutal
do cimento e da areia
que leva cantando
ao mestre pedreiro

João Abel

SACRIFÍCIO

Foi na tarde morena da conquista.
Guisos, pendões, tinir de luz, corcéis.
Relâmpagos doirados pela vista...
Processional, El-Rei caminha -- e o cortejo é de painéis!

Tatuagens de alarido a incrustar a tarde. Palmas!
Cheiro álacre de febre... E as lanças a crescer...
Os corpos deixam transbordar as almas,
Tit'res, que a mão de Deus, apenas, faz mover...

Rola a hora de Deus pela campina rasa.
Hora de Sacrifício! A pira está em brasa.
A pedra de ara é branca e o fumo sobe a esmo.

Ergo a mão constelada de triunfos idos.
Súbito, a voz de Deus retine aos meus ouvidos:
Quebra o teu cetro e a lança, entrega-te a ti mesmo
Américo Cortês Pinto

A JOÃO RUI DE SOUSA

no aparecimento do seu Respirar pela água

Não só gravar no tempo o azul do mundo
em versos de cristal e claridade
ardendo entre vocábulos profundos
mas ouvir pela noite -- rocha densa --
a vida em seu fermento de raízes
quando a fonte respira e as águas pensam

Joaquim-Francisco Coelho
felizes aqueles que
a terra toda por alimento
toda a fome por caminho

Bénédicte Houart

quarta-feira, 24 de novembro de 2010

INTRÓITO

Das tuas mãos de vidro, carregadas
De jóias tilintantes e doentes,
Das palavras que trazes afogadas,
Das coisas que não dizes mas entendes.

Do teu olhar virado às madrugadas
De fantásticos e exóticos orientes,
Do teu andar de tule, das estocadas
Dos gestos que não fazes mas sentes.

Dos teus dedos sinistros, de tão brancos,
Dos teus cabelos lisos, de tão brandos,
Dos teus lábios azuis, de tanta cor,

É que me vem a fúria de bater-te,
É que me vem a raiva de morder-te,
Meu amor! Meu amor! Meu amor!

José Carlos Ary dos Santos
Amo-te porque os teus lábios dizem: ama-me.
Beijo-te porque a tua boca suplica que te beije.
Trago-te no sangue,
nas lágrimas,
nos noivados das albas,
nos véus de tule dos crepúsculos.
Continuaria a amar-te
mesmo que as ausências não fossem (como são)
o calendário solar das memórias que me cabem.
As memórias e o jeito de interrogá-las.
Pergunto quanto ousaria se estivesses presente:
a harmonia dos gemidos,
a insurreição dos rios,
o incêndio das palavras.
Toco o meu corpo e converso com as tuas mãos.
Decifro um a um (serenamente) enternecidamente
os insubornáveis caracteres do desejo.
«Ama-me como se hoje fosse o primeiro
ou o último dia do mundo», dizes.
E eu deito-me sobre a tua pele
e cavalgo contigo até ao cansaço final.

Hugo Santos

EXPERIÊNCIA

Nas noites negras para roubos, chuvas, ventos,
E nas noites quentes em que o luar abafava as estrelas,
À hora de os sonhos baixarem vagarosos do céu,
Alguém dobrava com uma ordem doce os meus joelhos,
Juntava as minhas mãos inocentes e fracas,
E eu rezava como se repetisse uma canção.
E o meu sono era sempre sob a guarda de estrelas...

É a vida, agora, quem dobra os meus joelhos cansados
Que guardam a marca das pedras mais rugosas,
É a angústia da vida quem junta as minhas mãos,
As minhas mãos mais fracas e incertas.
Soltam-se da minha alma orações desesperadas,
Orações que as tristezas e os dias compõem.
Se no céu há estrelas, estão lá em cima e só brilham...

Alberto de Serpa

terça-feira, 23 de novembro de 2010

VEGETALMENTE SÓ

É outono, desprende-te de mim.

Solta-me os cabelos, potros indomáveis
sem nenhuma melancolia,
sem encontros marcados,
sem cartas a responder.

Deixa-me o braço direito
o mais ardente dos meus braços,
o mais azul,
o mais feito para voar.

Devolve-me o meu rosto antigo,
sem lágrimas sepultadas nos lábios,
sem nenhuma criança acordada
nas pálpebras pesadas.

Deixa-me só, vegetalmente só,
correndo como um rio de folhas
para a noite onde a mais bela aventura
se escreve exactamente sem nenhuma letra.

Eugénio de Andrade

PARA A AVÓ ZÉ

Lembro-me de como gostava de estar
debruçado sobre a mesa da cozinha,
vendo a Avó a ferver as seringas
numa velha panela redonda de esmalte.
A mesa era grande, de mármore,
e ali fazia os deveres da escola,
num caderno quadriculado, sujo de enganos
da aritmética, com um n.º 2 mal aparado.
Hoje a Avó já não ferve as seringas,
mas desfaz os morangos em compota,
cujo aroma nos anuncia
as escuras tardes de Outono.

Estoril, 23-VI-1985

ROMANCE DE TOMASINHO-CARA-FEIA

Farto de sol e de areia,
que é o mais que a terra dá.
Tomasinho-Cara-Feia,
Vai prà pesca da baleia.
Quem sabe se tornará?

Torne ou não torne, que tem?
Vai cumprir o seu destino.
Só nha Fortuna, a mãe,
que é velha e não tem ninguém,
chora pelo seu menino.

Torne ou não torne, que importa?
Vai ser igual ao avô.
Não volta a bater-me à porta;
deixou para sempre a horta,
que a longa seca matou.

Tomasinho-Cara-Feia,
(outro nome, quem lho dá?)
farto de sal e de areia,
foi prà pesca da baleia.

-- E nunca mais voltará.

Daniel Filipe
Esta noite soprou vento
Com pontinhas de suão:
Abriram-se as rosas todas,
Dentro do meu coração.

Anónimo

VERMEER DE DELFT

É a manhã no copo:
Tempo de decifrar o mapa
Com seus amarelos e azuis
De abrir as cortinas (o sol frio nasce
Nos ladrilhos silenciosos),
Que veio pela galera da China:
Através dos seus cristais
Restitui a inocência.

Murilo Mendes

segunda-feira, 22 de novembro de 2010

A nada imploram tuas mãos já coisas,
Nem convencem teus lábios já parados,
        No abafo subterrâneo
        Da húmida imposta terra.
Só talvez o sorriso com que amavas
Te embalsama remota, e nas memórias
        Te ergue qual eras, hoje
        Cortiço apodrecido.
E o nome inútil que teu corpo morto
Usou, vivo, na terra, como uma alma,
        Não lembra. A ode grava,
        Anónimo, um sorriso.

Ricardo Reis

A MAIOR DOR HUMANA

Que imensas agonias se formaram
Sob os olhos de Deus! Sinistra hora
Em que o homem surgiu! Que negra aurora,
Que amargas condições o escravizaram!

As mãos, que um filho amado amortalharam,
Erguidas buscam Deus! A Fé implora.
E o céu que respondeu? As mãos baixaram
Para abraçar a filha morta agora.

Depois, um pai que em trevas vai sonhando,
E apalpa as sombras deles onde os viu
Nascer, florir, morrer!... Desastre infando!

Ao teu abismo, pai, não vão confortos.
És coração que a dor empederniu,
Sepulcro vivo de dois filhos mortos.

Camilo Castelo Branco
Estes meus olhos nunca perderán,
senhor, gran coita, mentr' eu vivo for;
e direi-vos, fremosa mha senhor,
destes meus olhos a coita que han:
     choran e cegan, quand' alguen non veen,
     e ora cegan por alguen que veen.

Guisado teen de nunca perder
meus olhos coita e meu coraçon,
e estas coitas, senhor, mias son:
mais os meus olhos, por alguen veer,
     choran e cegan, quand' alguen non veen,
     e ora cegan por alguen que veen.

E nunca já poderei haver ben,
pois que Amor já non quer nen quer Deus;
mais os cativos destes olhos meus
morrerán sempre por ver alguen:
     choran e cegan, quand' alguen non veen,
     e ora cegan por alguen que veen.

João Garcia de Guilhade

TARDE

Na tarde quieta
parece provável
que a inquietude desperte
com a brisa
que há-de soprar.

Armando Taborda

ENTARDECER

Um barco que passa uma ave que voa
Um azul que fica na retina
Um rosto que sonha numa canoa

Um barco que passa uma ave que voa
Um desejo que fica pelo ar
Azul e penetrante como o mar

Passa o barco lentamente
Passa a tarde passa a vida
E um vulto que ao passar canta baixinho

Existe ao longe um ar tranquilo
Sossegado como buda de marfim
Quem disse que ali era a cidade!

Há um barco que passa uma ave que voa
Um azul que fica na retina
Um rosto que sonha numa canoa.

Henrique Guerra

ALMA PERDIDA

Toda esta noite o rouxinol chorou,
Gemeu, rezou, gritou perdidamente!
Alma de rouxinol, alma da gente,
Tu és, talvez, alguém que se finou!

Tu és, talvez, um sonho que passou,
Que se fundiu na Dor, suavemente...
Talvez sejas a alma, alma doente
De alguém que quis amar e nunca amou!

Toda a noite choraste... e eu chorei
Talvez porque, ao ouvir-te, adivinhei
Que ninguém é mais triste do que nós!

Contaste tanta coisa à noite calma,
Que eu pensei que tu eras a minh'alma
Que chorasse perdida em tua voz!

Florbela Espanca

domingo, 21 de novembro de 2010

FRAGMENTO

Se o vento ao mar azul o calmo espelho afaga,
sem ondas levantar, a terra já não amo:
sorrisos de um sereno e de um tranquilo fundo
me tentam alma inquieta. Mas se o estrondo ecoa
do Oceano abismos turvos, e se a crespa espuma
coroa as altas vagas que rebentam fortes,
para a terra me volto e seus profundos bosques
onde os pinheiros cantam no soprar do vento.
Aquel' que um lenho habita e sobre o mar trabalha
dos fugitivos peixes só vivendo, tem
sorte mais triste. Eu lânguido me alongo aonde
o murmurar do rio ao espírito me anima,
sem que da paz o acorde ou súbito o perturbe.

Mosco de Siracusa

(Jorge de Sena)

AS ESCOLAS

Abecedário novo
colónia ultra de mar de insensatez
voltada do avesso
a história de um rei aqui de espada
e armadura cavaleira
(e nós sem termos nada
com quinhentos anos de tanta asneira
ensinada
régua bambu
cultura ocidental palmatoada).
Abecedário novo
nos olhos do sol nascer as letras
desta manhã
para a palavra mais.

Manuel Rui
O interior do corpo como um fruto do silêncio ou como um sopro imóvel, ainda um frémito mas tão tranquilo no seu sono que a palavra se suspende como uma nuvem à beira do irrespirável.

António Ramos Rosa

sábado, 20 de novembro de 2010

A PIADA PRIMEIRO A DESGRAÇA DEPOIS

Agora vendo assim à distância
a Sandra até era uma rapariga engraçada --
sempre alegre, sincera, romântica.
Viu a Atracção Fatal e o África Minha
soube seguir os conselhos da Manuela
e viu outros filmes de fugir da linha
isso de atracções e áfricas era tudo dela.

E num vai de ir nesse deleite
fez-se ao Continente Negro
pensou fazer uns safaris
e visitar o Kilimandjaro
que até parece que não é caro.

Pensou também em conhecer o Tarzan
mas ele afinal parece que era mau
não dava beijos e era de poucas falas
só dizia: eu Tarzan, tu vê lá se te calas.

E pensou, claro, em salvar da extinção
o Tigre da Malásia, que nem é de África
mas isto eles é tudo bicho.

E sonhou com o Robert Redford
que vinha num Mustang vermelho
e tinha logo ali com ela
um alto Esplendor na Relva.
E realmente algo de carnal aconteceu
mas quem apareceu
foi um leão, o rei da selva.

Daniel Maia-Pinto Rodrigues

O CAMINHO CONCRETO

Tudo o que existe
existe fora
da minha imaginação.
Existe sem nenhum fim
e por nenhuma razão.
E ainda bem que assim é.
Quero andar pelo meu pé
e saber que piso chão.

Armindo Rodrigues
O som do mundo anda, veloz ligeiro cresce, rapidez intensiva, animação do ar.
O som do mar que vem, do mar no ar desliza, no âmbito do ar, no sentido da noite.
O som do mundo anda, no âmbito do ar, o som do mar propaga, o som do mar expande.
O som do mundo ouve, nos côncavos ressoa, na cabeça por dentro, interna nos ouvidos.
O som do mar ouvido, no som do ar que cresce, no som da noite anda, tumulto azul escuro.

Luís de Miranda Rocha

sexta-feira, 19 de novembro de 2010

Quanta tristeza e amargura afoga
Em confusão a streita vida! Quanto
       Infortúnio mesquinho
       Nos oprime supremo!
Feliz ou o bruto que nos verdes campos
Pasce, para si mesmo anónimo, e entra
       Na morte como em casa;
       Ou o sábio que, perdido
Na ciência, a fútil vida austera eleva
Além da nossa, como o fumo que se ergue
       Braços que se desfazem
       A um céu inexistente.

Última Colheita

autor: Francisco Costa (Sintra, 1900-1989)
título: Última Colheita
subtítulo: Poesia e Biografia
edição: do Autor
local: Sintra
ano: 1987
capa: gravura de William Burnett
págs.: 111
dimensões: 26,5x20x0,7 cm. (brochado)
impressão: omisso
obs.: «Esboço de Autobiografia Literária», pp. 66-111

GRAFITO

para um livro de Pedro da Silveira

No mar do coração levas a ilha
feita de negra terra e longo vento
feita de sonho e tédio como o tempo
feita de espuma e pedra como a vida

Joaquim-Francisco Coelho

PRECE

A máscara ri ou chora,
O ser olha, e impassível,
Deixa cair sobre tudo
Um olhar que diz:
Não importa.

Olhos de aflição
Querem fingir um sorriso,
Calar ao menos a mágoa
Não aflijam alguém...
O ser olha, e só murmura:
Não importa.

A quem, amigo, me abraça,
A quem, inimigo, me fere,
O ser distante contempla:
Não importa!

Senhor!
Dai ao meu ser interesse,
Por grandes, pequenas misérias,
Da minha vida real!
Dai-lhe o ódio, amor, piedade,
Crueza, ternura -- vida!
Não deixeis que eu assim viva,
Tendo em mim um indiferente
De tudo sempre distante!

Adolfo Casais Monteiro 

ILHA

No azul líquido é somente
um ponto anónimo da carta.
Ó minha fala inconsequente!
Saudade morna do ausente,
distante ainda que não parta!

O horizonte é linha de água
por estrelas-peixe enodoada.
Se me recorto em bruma e mágoa,
à solidão da ilha trago-a
dentro de mim petrificada.

Daniel Filipe 

PESSOAL INTRANSFERÍVEL

     Escute, meu chapa: um poeta não se faz com versos. É o risco, é estar sempre a perigo sem medo, é inventar o perigo e estar sempre recriando dificuldades pelo menos maiores, é destruir a linguagem e explodir com ela. Nada no bolso e nas mãos. Sabendo: perigoso, divino, maravilhoso.
     Poetar é simples, como dois e dois são quatro sei que a vida vale a pena etc. Difícil é não correr com os versos debaixo do braço. Difícil é não cortar o cabelo quando a barra pesa. Difícil, para quem não é poeta, é não trair a sua poesia, que, pensando bem, não é nada, se você está sempre pronto a temer tudo; menos o ridículo de declamar versinhos sorridentes. E sair por aí, ainda por cima sorridente mestre de cerimónias, «herdeiro» da poesia dos que levaram a coisa até o fim e continuam levando, graças a Deus.
     E fique sabendo: quem não se arrisca não pode berrar. Citação: leve um homem e um boi ao matadouro. O que berrar mais na hora do perigo é o homem, nem que seja o boi. Adeusão.

Torquato Neto

quinta-feira, 18 de novembro de 2010

O homem é um pequeno universo.
Demócrito

(Maria Helena da Rocha Pereira)
Amigos, non poss' eu negar
a gran coita que d'amor ei,
ca me vejo sandeu andar,
e com sandece o direi:
     os olhos verdes que eu vi
     me fazen or' andar assi.

Pero quem quer x'entenderá
aqueste olhos quaes son,
e dest'´alguen se queixará,
mais eu, já quer moira, quer non:
     os olhos verdes que eu vi
     me fazen or' andar assi.

Pero non devi' a perder
ome que já o sen non á,
de con sandece ren dizer,
e con sandece digu' eu já:
     os olhos verdes que eu vi
     me fazen or' andar assi.

João Garcia de Guilhade

SERIPIPI DE BENGUELA

Eh! Seripipi de Benguela
escuta aquela canção.

Parece pardal de Luanda
cantando na escuridão.

Levanta voo, seripipi
do galho desta prisão.

Leva no bico uma esperança
ao ninho do teu irmão.

Ernesto Lara Filho

A ÁGUA

Eu fui a sombra a converter-se em luz,
E fui a névoa a transformar-se em cor,
E fui o pranto a consagrar a dor,
Quando brilhei nos olhos de Jesus.

E fui a nuvem a buscar a altura,
E recebi do Sol a cor da chama.
Caí na Terra e converti-me em lama,
Para a tornar melhor e menos dura!

Fui pranto de perdão e de humildade...
E foi nuns olhos cheios de saudade
Que mais linda me fiz e desejei!...

E fui rio... e fui mar... e onda... e espuma...
E, em sonho de Poetas, fui a bruma...
O vago... o indeciso... o que não sei...

Américo Durão

A ANTIGA PENSÃO

Às escuras
os cães temem
subir escadas.
Como crianças
e mulheres velhas.

Pelo estudante
esperavam
à porta da pensão.
Ficavam
no terceiro andar.

Vindo atrás,
degrau a degrau,
ele falava
e a voz
subia, iluminava.

António Osório
para quem toca o músico?
para ele
para quem o ouve ou ouvê
'abençoado o ouvido para a música'
tão raro

José Duarte

quarta-feira, 17 de novembro de 2010

A...

Nome, que não se diz; nome, que não se escreve:
Quem vai meter num som o mundo, a imensidão?...
O Amor que nome tem? real, jamais o teve...
Escrever!... pois é pouco um livro -- o coração?!...

Antero de Quental

NATAL CHIQUE

Percorro o dia, que esmorece
Nas ruas cheias de rumor;
Minha alma vã desaparece
Na minha pressa e pouco amor.

Hoje é Natal. Comprei um anjo,
Dos que anunciam no jornal;
Mas houve um etéreo desarranjo
E o efeito em casa saiu mal.

Valeu-me um príncipe esfarrapado
A quem dão coroas no meio disto,
Um moço doente, desanimado...
Só esse pobre me pareceu Cristo.

Vitorino Nemésio

FESTA

Como o potro jovem quer a égua,
como o fogo em lava quer a água,
como o milhafre ansiando a légua,
como a brasa que queima lá na frágua,

como o mar em vida e sem trégua,
como o vento em fúria e sem mágoa,
assim te quero eu: água e égua --
assim te quero eu: légua e frágua.

Como o vinho que a alma embriaga,
como a dança, os frutos e a festa,
como a sarça que arde viva e lesta,

assim te quero eu: dança e sarça,
em fruto e festa e em vinha e garça --
e assim me quero em potro, mar e vaga.

Manuel Cândido

ENLEIO

Quando, no outono, ocasos tristes douram
Ruínas que a Esperança veste de heras,
E há fluidos de perdão no olhar das feras,
E as almas só existem no que foram;

E quando os céus, proféticos, agouram
Verdades que ressurgem de quimeras;
Com grinaldas de extintas primaveras
As mãos da Morte a tua fronte enlouram!

E, pálida, sorris, embevecida;
Em teu olhar onde delira o outono
Vejo extinguir-se em luz a minha vida!

Por outros mundos a tua alma voa!
E na saudosa tarde de abandono
Um sorriso de flor nos abençoa.

Mário Beirão

AS ROSAS

Quando à noite desfolho e trinco as rosas
É como se prendesse entre os meus dentes
Todo o luar das noites transparentes,
Todo o fulgor das tardes luminosas,
O vento bailador das Primaveras,
A doçura amarga dos poentes,
E a exaltação de todas as esperas.

Sophia de Mello Breyner Andresen

NASCIMENTO

A minha égua lazã
Teve uma linda cria,
Nascida antemanhã,
Mal, ao de leve, despontava o dia...

Cá fora,
Na placidez da hora enregelada e fria,
Silenciosa e deserta
A terra dormitava.
E pela porta aberta
Da velha estrebaria,
Um hálito de vida se escapava
E, como fumo, manso se perdia.

Sombras de uma lanterna fraca
Dançavam, ágeis, na parede escura.
E brandamente,
Naquela luz opaca,
Tudo envolvia uma doçura quente.

Sobre a palha doirada,
Enquanto o sol aos poucos
Ia surgindo à porta,
A mãe jazia, agora descansada.
E a dois passos, imóvel e estirada,
A cria parecia ter nascido
Pra logo ficar morta,
O corpo já doído
Do trabalho da vida começada.

Venho assomar-me à porta,
A contemplar o meu amigo dia.
E o campo, todo branco de geada,
Brilha até onde a minha vista alcança...
E, infantilidade,
Ou despropositada poesia,
O nascimento, a hora, a luz do dia,
Dão-me um fecundo amanhecer de esperança.

Francisco Bugalho

ESPERA

A noite fechada trouxe-me cá fora, ao alto portão de ferro. Agarro-me às grades como um escravo da luz de breu. Passo o portão e em dois passos estou na abadia que parecia distar léguas. Um cheiro fétido a suor e a burel revelam um monge que me fita silencioso. Trespassa-me uma ventania de claustro e o piso, antes terroso, é agora de pedra. Não consigo articular uma palavra, apenas sons abafados pelos sinos que me ensurdecem. Os olhos, de dentro do capuz, indicam agora um rectângulo da laje. Gravado está o meu nome, o dia do meu nascimento, e o desta noite.

Agosto de 2000

terça-feira, 16 de novembro de 2010

DESAPARECIDO

Sempre que leio nos jornais:
«De casa de seus pais desapar'ceu...»
Embora sejam outros os sinais,
Suponho sempre que sou eu.

Eu, verdadeiramente jovem,
Que por caminhos meus e naturais,
Do meu veleiro, que ora os outros movem,
Pudesse ser o próprio arrais.

Eu, que tentasse errado norte;
Vencido, embora, por contrário vento,
Mas desprezasse, consciente e forte,
O porto do arrependimento.

Eu, que pudesse, enfim, ser eu!
-- Livre o instinto, em vez de coagido.
«De casa de seus pais desapar'ceu...»
Eu, o feliz desapar'cido!

Carlos Queirós

CAFÉ

Sabor de antigamente, sabor de família,
Café que foi torrado em casa,
Que foi feito no fogão da casa, com lenha do mato da casa,
Café para as visitas de cerimónia,
Café para as visitas de intimidade,
Café para os desconhecidos, para os que pedem pousada, para toda a gente

Ribeiro Couto
Que soidade de mha senhor ei,
quando me nembra d'ela qual a vi
e que me nembra que ben a oí
falar, e, por quanto ben dela sei,
     rogu' eu a Deus, que end' á o poder
     que mha leixe, se lhi prouguer, veer

Cedo, ca, pero mi nunca fez ben,
se a non vir, non me posso guardar
d'enssandecer ou morrer con pesar,
e, por que ela tod' en poder ten,
     rogu' eu a Deus, que end' á o poder
     que mha leixe, se lhi prouguer, veer

Cedo, ca tal a fez Nostro Senhor:
de quantas outras [e] no mundo son
non lhi fez par, a la minha fé, non,
e, poi-la fez das melhores melhor,
     rogu' eu a Deus, que end' á o poder
     que mha leixe, se lhi prouguer, veer

Cedo, ca tal a quis [o] Deus fazer
que, se a non vir, non posso viver.

D. Dinis

Da Ilha que Somos

título: Da Ilha que Somos
coordenação e prefácio: A. J. Vieira de Freitas
poetas antologiados: António Duarte Camacho de Brito Figueirôa, Ana Paula Rosa Soares, António Quintela Proença, Carlos Alberto de Sousa Fernandes, Fátima Dionísio, Fernando Mota, José Laurindo Leal de Goes, João Luís de Ornelas Teixeira, Luís Rodrigues (Mirapda), Rui Honorato C. Gomes
local: Funchal
edição: Câmara Municipal do Funchal -- Actividades Culturais
ano: 1977
capa: Tolentino Nóbrega
págs.: 95
dimensões: 18,2x12,5x0,9 cm. (brochado)
impressão: Tipografia Minerva
obs.: dedicatória de um dos autores

MANHÃ

Perde-se o silêncio no ruído da manhã.

Desperto.

Deitado de costas na cama
olhando a luz de sombras no quarto
penso que o silêncio não existe
e se existisse
não haveria nada
nem sequer o acordar.

Armando Taborda

A VOZ DO SILÊNCIO

Silenciosa,
A noite calma,
Ó quantas coisas
Me diz à alma!

Cessai, ó fontes
A ladainha;
Deixai a noite
Falar sozinha.

Quanto mistério,
Quanto segredo,
No ar perpassa
Como que a medo...

Ó voz da Noite,
Que comoção!
Como o teu, bate
Meu coração.

E a treva funda,
A treva densa
Tem um martírio
De mágoa imensa.

Treva da vida,
Quem não sofreu?
Ó céu azul
Que escureceu...

Por isso ecoa
Dentro em minh'alma
A voz silente
Da noite calma.

Armando Cortes-Rodrigues

O CÃO E O CACHORRO

I

Não galgo, olho azul,
fidalgo.
Mas um simples cachorro.
Já seco.

Não cão
de uma constelação.

Mas um simples cachorro
de beco.

Não um cão do rei
Artur.

Mas um simples cachorro
tout court.

Já reduzido a um osso,
de magro.

Osso comendo um osso:

O osso que ele é,
por fome;

e o osso que ele come.

Cassiano Ricardo

segunda-feira, 15 de novembro de 2010

QUATRO POEMAS DO RETARDADOR (4)

A bilha de barro berra
Nesta paisagem parada,
Agudos gritos de guerra:
Que assombram na suave serra
A verdura repousada.

Cantando passa e não pensa,
Dolente, a moça que a leva;
-- Mas breve a sombra se adensa
E lhe dilui a presença
Torva, na tinta da treva.

Carlos Queirós

É INÚTIL CHORAR

É inútil mesmo chorar
«Se choramos aceitamos, é preciso não aceitar»
por todos os que tombam pela verdade
ou que julgam tombar.
O importante neles é já sentir a vontade
de lutar por ela.
Por isso é inútil chorar.

Ao menos se as lágrimas
dessem pão,
já não haveria fome.
Ao menos se o desespero vazio
das nossas vidas
desse campos de trigo...

Mas o que importa é não chorar.
«Se choramos aceitamos, é preciso não aceitar»
Mesmo quando já não se sinta calor
é bom pensar que há fogueiras
e que a dor também ilumina.

Que cada um de nós
lance a lenha que tiver,
mas que não chore
embora tenha frio.
«Se choramos aceitamos, é preciso não aceitar»

António Cardoso

A MORTE DE SÓROR MARIANA

Calai que ela morreu. Nos seus vestidos
Bordaram-lhe Alma. As mãos sobre o Outono.
Como ela vai quietinha no seu sono!
Inda vai a rezar com os sentidos.

As suas mãos, madrinhas de tristezas,
Cansadas de Silêncio e de escrever.
E Deus põe-se a chorar a ouvir-lhe as rezas,
Pois sente-se pagão p'ra as receber.

A sua Ausência é um fechar de portas.
Em seus dedos prendeu as horas mortas
E encobriu a Saudade em velhos véus...

Colchas no meu lembrá-la penduraram.
E de tão brancas mãos a rodearam
Que a sua morte aconteceu em Deus.

Alfredo Guisado 

DIÁRIO

A partir de agora, todo o poema que fale de amor, fora.
Todo o poema que não revolucione, fora.
Todo o poema que não ensine, fora.
Todo o poema que não salve vidas, fora.
Todo o poema que não se sobreviva, fora.
Vou deixar um anúncio no jornal:
Procura-se poeta. Trespasso-me.

Ana Salomé

SINAL

Quanto amor me tens,
com amor to pago.
-- Trago-te no dedo,
num anel que trago.

Num anel redondo,
todo de oiro fino,
que é o teu sinal,
que é o meu destino.

Este anel me basta
pra bater-te à porta.
Truz! truz! truz! na rua
como o frio corta!

Como a chuva cai,
como o vento mia!
Mas abriste logo,
que eu é que batia.

(Que outro anel tivera
som que te chamasse?)
Já teu vinho bebo,
pra que o frio me passe;

Já na tua cama
me aconchego e deito;
já te chamo Esposa,
peito contra peito.

Como tudo é simples,
como é tudo imenso!
Ó mistério enorme,
de um anel suspenso!

E eis, na tua mão,
num anel igual,
brilha o teu destino,
luz o meu sinal.

Sebastião da Gama

ENDOSSO

O Santo a que eu não chego -- sê-o tu,
irmão! com rezas ou sem elas.
O que importa é alguém chegar
ao nó da vida, limpo e nu.
E a luz tem muitas janelas
para entrar.

António de Sousa

domingo, 14 de novembro de 2010

Ah! não chores por mim  quando eu morrer,
quando o plangente sino magoado
disser ao mundo vil que, fatigado,
com vilíssimos vermes fui viver.

Lendo estas linhas, deves esquecer
a mão saudosa que lhes deu traslado:
que o bem de perdurar num peito amado
em mal se torna quando o faz sofrer.

Não, se vires esta rima dolorida
quando a terra em seus braços me retome,
que finde o teu amor co'a minha vida,
e nem recordes o meu próprio nome!

Pois se o mundo te vê na dor absorto,
inda zomba de mim depois de morto.

William Shakespeare

(Luís Cardim)

sábado, 13 de novembro de 2010

Para lá do tempo, as mulheres medem,
caladas, o incessante decorrer dos dias,
ao longo do rosto.
Uma certa demência na ponta dos dedos,
coalha o leite, nas velhas panelas,
onde fabricam o queijo fresco,
enquanto, pelos telhados, perpassam
as lembranças de paixões antigas.

Graça Pires

sexta-feira, 12 de novembro de 2010

qual é o sexo da trompete
o mesmo do do trompete?
depende do anjinho que o toque
e do diabo que o carregue

José Duarte

LÁ NO ÁGUA GRANDE

Lá no Água Grande a caminho da roça
negritas batem que batem co'a roupa na pedra.
Batem e cantam modinhas da terra.

Cantam e riem em riso de mofa
histórias contadas, arrastadas pelo vento.

Riem alto de rijo, com a roupa na pedra
e põem de branco a roupa lavada.

As crianças brincam e a água canta.
Brincam na água felizes...
Velam no capim um negrito pequenino.

E os gemidos cantados das negritas lá do rio
ficam mudos lá na hora do regresso...
Jazem quedos no regresso para a roça.

Alda do Espírito Santo

NOITE DE TORMENTA

A mão do vento é má e me procura;
fria, contra o meu rosto a não quisera,
mão que saiu de alguma sepultura
da mais perdida, mais remota era.

Nenhuma porta mais está segura:
o vento trouxe alguém que ali me espera,
alguém que com cicios de conjura
ri escarninho do pavor que gera.

Em noites de tormenta como esta,
penso na mão que outrora me acudia,
meigamente pousada em minha testa.

Cessou a chuva. O vento já não ouço.
A casa é como um berço... Principia
seu brando movimento de balouço...

Ribeiro Couto

quinta-feira, 11 de novembro de 2010

THE BOMBS

There are no more words to be said
All we have left are the bombs
Which burst out of our head
All that is left are the bombs
Which suck out the last of our blood
All we have left are the bombs
Which polish the skulls of the dead

February 2003


Harold Pinter

O POMAR DO TEU NOME

1.

Minha constelação de versos nunca ditos,
que são teus olhos? -- Pomares de rosas,
estrelas que nos beijos eu pressinto...
Pomos onde me afogo como taça.
E nervos de fogo as minhas mãos em teu corpo fugidio.
Sagrei-te numa noite de mar e de maçãs
ao ritmo de futuros prometidos,
e as calçadas incendiaram-se no lugar do teu nome
descobrindo-se.

Manuel Cândido

VENTO DE LIBERDADE

Das entranhas da terra
irrompe um vento alucinado
que varre... varre... varre
as folhas secas do mundo...

Vento que geme e uiva fundo
e fere como punhais
o coração dos mortais...

Vento horrível e cruel
que espezinha e enrodilha
e dá guerra sem quartel...

E ora rasteja em gemidos,
ora se eleva em furores
e uiva como um trovão,
é VENTO DE LIBERDADE
que o pobre mundo assombrado
pretende reter na mão...

Amélia Veiga

A VIDA

A vida é tudo quanto Deus nos deu;
Rio por entre montes sem ter leito,
É fonte que brotou e não correu,
Que nasceu e secou dentro do peito...

A vida, a vida é qual água corrente
Que foge sem se ver por entre abrolhos.
Vem da fonte do amor -- água que sente --
E vai do peito para os nossos olhos.

A vida é ser-se lume, é ser-se brasa,
É ser aqui Desejo, ali Cuidado,
É um querer voar e não ter asa,
-- Um corpo de mulher todo apertado. --

A vida é uma rocha onde me agarro
E abraço, co'as mãos da Ânsia e do Amor;
Envolve-me cingindo o grande Vago,
E espreita-me a Morte em derredor.

A vida é o nosso amor feito escultura:
É tudo o que se aperta e que se adora.
Beleza de mulher que pouco dura --
A vida são mil anos numa hora.

A vida é um mudar-se a cada instante,
É um andar o tempo assim mudado;
É tomar um minuto por distante,
É ter por Sempre o tempo bem contado.

Luís de Montalvor
Ali onde as rosas se doavam
A quem, pousando a mão, se debruçasse,
Ficou uma saudade sem história
Nem dor... Só de alegria
O sentimento pleno a quem ousasse
Colhê-las na memória.

Ninguém perceberá morta a distância,
Nem o aroma breve que evolavam.

Só a saudade de uma luz perfeita,
Descendo na minha alma a minha vida,
Descobre, junto a uma pétala desfeita,
O teu olhar puríssimo.

Ruy Cinatti

quarta-feira, 10 de novembro de 2010

Cortam-me
ou esticam-me
braços
e pernas
conforme
a cama
(a cama
é a medida)

A medida porém
é a Senhora da Aparecida

Também eu
fui Procrustes
tive
duas camas
os outros as outras
nunca
estavam
certos

Errei (pequei)
estou arrependida
(antes não fodida
que mal fodida)

Adília Lopes

CANÇÃO DOS TRISTES

Tristes bichinhos nocturnos
Passam a vida, coitados!
Nesses buracos soturnos,
Abafados!

Saudosa flor esmaece
Na leira sequinha e erma...
Que deusa enferma
Em ti, falece?

E a borboleta viúva,
Que tem asas agoirentas,
Nas tardas horas cinzentas
De frio e chuva!

E as almas negras de penas,
Sobre a terra que se molha...
Que silêncio! Ouve-se apenas
Cair a folha...

E a voz do sapo encoberta,
Remota, espectral, sozinha,
Na cor lilás da noitinha
Já deserta...

E a do mocho?
Voz longínqua, sempre aos ais;
Voz do céu dorido e roxo,
Voz da Lua e dos pinhais.

Ermo cântico profundo,
Que se alumbra,
No silêncio deste mundo,
Como um círio na penumbra.

E esse pobre que faz dó,
Falto de siso, a esmolar...
Anda, de noite, ao luar,
A falar só!

Almas velhas e saudosas,
No mais trágico abandono,
Que se confessam às cousas,
Pelo Outono...

Teixeira de Pascoais

QUANDO O MEU CORPO...

Quando o meu corpo apodrecer e eu for morta
Continuará o jardim, o céu e o mar,
E como hoje igualmente hão-de bailar
As quatro estações à minha porta.

Outros em Abril passarão ao pomar
Em que eu tantas vezes passei,
Haverá longos poentes sobre o mar,
Outros amarão as coisas que eu amei.

Será o mesmo brilho a mesma festa,
Será o mesmo jardim à minha porta,
E os cabelos doirados da floresta,
Como se eu não estivesse morta.

Sophia de Mello Breyner Andresen
os dias passam por ele
sem que ele dê pelo passar dos dias por ele
adoece e não sabe que é o fim
abana a caude
e sucumbe
          ao tiro no crânio
sem espanto
          à injecção letal
em paz

27-I-2003

terça-feira, 9 de novembro de 2010

COMO SE FOSSES...

Em discursos e conferências
em relatórios e ensaios
serves de objecto de estudos
como se fosses uma cobaia

Entre um grogue e um violão
entre um baile e uma catchupa
todos te prometem felicidades
como se fosses uma noiva

Nos bancos das universidades
nas reuniões e assembleias
todos te prometem brinquedos
como se fosses uma criança

Pelos bares de Rotterdam
pelas ruas de New Bedford
todos te choram com saudades
como se fosses um defunto

Com lamentos e com poemas
com mornas e com guisas
sempre faminto e miserável
como se fosses um mártir

Com estudos e com música
com discursos e com promessas
com o andar destes anos todos
como se fosses uma esperança

Uma noiva uma criança
como se fosses uma cobaia
Um defunto uma esperança
como se fosses Cabo Verde.

Armando Lima Júnior

CÍRCULO

e surge teu dorso dourado
e vem com a aurora teu rosto
e agora e ainda uma vez e outra mais
aqui estamos
no fragor de lençóis amarfanhados

nus
abandonados
aqui estamos

lentas mordidas
e o relógio tique-
taqueando o tempo

nus
abandonados
aqui estamos

lentas mordidas
e o amor truque-
truncando o tédio
e o corpo assassinado
e surge teu dorso dourado
e vem com a aurora teu rosto
e agora e ainda uma vez

Ronaldo Werneck

IRENE NO CÉU

Irene preta
Irene boa
Irene sempre de bom humor

Imagino Irene entrando no céu:
-- Licença, meu branco!
E São Pedro Bonacheirão:
-- Entra, Irene. Você não precisa pedir licença.

Manuel Bandeira
Senhor, eu vivo coitada
vida, des quando vos non vi;
mais, pois vós queredes assi,
por Deus, senhor ben talhada,
     querede-vos de min doer
     ou ar leixade-m' ir morrer.

Vós sodes tan poderosa
de min que meu mal e meu ben
en vós é todo; [e] por en,
por Deus, mha senhor fremosa,
     querede-vos de min doer
     ou ar leixade-m' ir morrer.

Eu vivo por vós tal vida
que nunca estes olhos meus
dormen, mha senhor; e, por Deus,
que vos fez de ben comprida,
     querede-vos de min doer
     ou ar leixade-m' ir morrer.

Ca, senhor, todo m' é prazer
quanti i vós quiserdes fazer.

D. Dinis

PORTO, CIDADE VELHA

Na cidade velha do Porto,
no primeiro andar de um restaurante,
a uma mesa de janela,
estava eu com o poeta português Andrade,
um homem seco com gestos de adolescente.

Comíamos tripas e bebíamos o vinho da sua terra
e falávamos um tanto timidamente
das literatura dos nossos países e da França,
voltando sempre à revolução perdida,

enquanto lá em baixo brincavam os filhos dos pobres
e bolas de sabão voavam pela rua,
bola a bola passando pela nossa janela
e voltando sempre, a correr
contra o céu azul
até se desfazerem
contra os muros
sombrios das casas.

Wolfgang Bächler

(João Barrento)

segunda-feira, 8 de novembro de 2010

QUEIXA

Toda a noite te esperei.

            Quando cheguei
            Não estava ainda luar.
            E fiquei
            A esperar
            Que viesses
            Como tinhas prometido.

Toda a noite te esperei
E afinal não apareceste.

Fiquei esperando,
Esperando,
E as horas foram caindo,
Uma a uma
Como gotas de cacimbo.

Entretanto,
Surgiu detrás da igreja
o disco, em prata,
da Lua.

Debaixo da cajajeira,
junto à valeta da rua
E sob a luz que me encanta,
Vi nascer a madrugada
Da cor da Semana Santa
Vi como a noite fugia
E como raiava o dia.
... toda a noite te esperei
E afinal não apareceste...

Aires de Almeida Santos
A minha força, o meu desejo, a minha
Sede infinita de Arte e de Beleza
Que aos Deuses me aconselha e me avizinha
Do sentido melhor da Natureza;

Esta sombra, esta luz que se desprende
Do fundo da minha alma e do passado,
-- Alma que a própria alma não entende
Apesar de a sentir sempre a seu lado;

Este ansiar eterno que alevanta
Meus braços para a luz, que sonha e canta
E vai comigo sempre aonde eu vou,

Esta Vida maior que em mim palpita
E luta e espera e se revolta e grita,
-- Donde vem, quem ma deu, quem na criou?

Augusto Casimiro

domingo, 7 de novembro de 2010

O meu mundo tem estado à tua espera; mas
não há flores nas jarras, nem velas sobre a mesa,
nem retratos escondidos no fundo das gavetas. Sei

que um poema se escreveria entre nós dois; mas
não comprei o vinho, não mudei os lençóis,
não perfumei o decote do vestido.

Se ouço falar de ti, comove-me o teu nome
(mas nem pensar em suspirá-lo ao teu ouvido);
se me dizem que vens, o corpo é uma fogueira --
estalam-me brasas no peito, desvairadas, e respiro
com a violência de um incêndio; mas parto
ante de saber como seria. Não me perguntes

porque se mata o sol na lâmina dos dias
e o meu mundo continua à tua espera:
houve sempre coisas de esguelha nas paisagens
e amores imperfeitos -- Deus tem as mãos grandes.

Maria do Rosário Pedreira

sábado, 6 de novembro de 2010

"AVE-MARIAS" NA MINHA ALDEIA

 "Tudo quanto há neste vale é cheio duma lembrança triste..."
                                                                                                                                                                                                                                                                 Bernardim Ribeiro

Da torre, tange o sino brandamente
"Ave-Marias", pela branca aldeia,
Enquanto vem dum lado, a lua cheia,
E doutro, se despende o sol-poente...

Pelos freixos do "Pego", em minha frente,
Cansado já, um rouxinol gorgeia.
Vagam murmúrios d'água que serpeia,
-- Fontes deixando o vale, saudosamente...

E alguém vai cantando, estrada fora,
Um fado triste como a voz do mar
E o vago soluçar das ventanias...

Ó meu Amor! quisera, nesta hora,
Reclinar-me no teu seio, p'ra chorar,
Enquanto o sino tange "Ave-Marias"...

Bernardo de Passos

REENCONTRO

A velha ponte-cais de traves carcomidas,
O morro triste, a antiga fortaleza...
O deserto a avançar sobre o mar
E a polvilhar a cidade pobre da sua poeira amarela...
O deserto a sepultar a cidade pobre...

As hortas do Giraul, mancha tímida e verde no areal.
O jardim emurchecido, queimado e ressequido pelo sol de África,
-- Parque frondoso que a memória guardou,
Imagem que a vida destruiu neste reencontro.
O jardinzinho da cidade,
Já sem o coreto para música,
Mas com a fileira dos espectros...

A longa, a interminável fileira dos espectros...
A Miss Blond a acompanhar os meninos a passeio,
O Tigre, pachorrento e mansarrão.

Os pretos, o olhar submisso e espantado,
Com as correntes aos pés,
Na rua de casas térreas e de piso mole.
A Miss Blond deixou de acompanhar os meninos a passeio,
O Tigre, erguido a cão nobre, morreu de velho,
Os pretos quebraram as correntes,
Só os espectros ficaram, pávidos,
Onde os havia deixado;
Só eles povoam a lembrança,
Habitam a cidade;
Só as suas vozes ecoam no deserto,
As vozes estremecidas,
As vozes perdidas
Na casa desabitada que a poeira do deserto cobriu,
Na vida que a poeira do tempo cobriu,
na morte, na saudade, na morte...

     Baía de Moçâmedes, 8 de Dezembro 50.


Joaquim Paço d'Arcos

sexta-feira, 5 de novembro de 2010

Vamos, meu bem, a ver se a rosa
que esta manhã, ao sol, airosa,
a sua roupa abriu vermelha,
não perde em hora vespertina
pregas da veste purpurina
e a tez que à vossa se assemelha.

Ai, vede como em pouco espaço
ela deixou, ai, triste passo,
toda a beleza fenecer.
Ah, que madrasta é a Natura
pois flor assim mais já não dura
que entre manhã e anoitecer.

Pois se me credes, vós, meu bem,
enquanto a idade em flor vos tem
nessas primícias de verdura,
colhei, colhei a mocidade
que como à flor a velhice há-de
turvar a vossa formosura.

Pierre de Ronsard

A ANDORINHA OU TUDO É RELATIVO

Da andorinha dificilmente se dirá
que é um animal feroz. Pelo contrário,
convêm-lhe adjectivos como grácil.

Mas a grácil andorinha abre
para o mosquito uma boca aterradora.

A. M. Pires Cabral

ALGUÉM

Para alguém sou o lírio entre os abrolhos,
e tenho as formas ideais do Cristo,
para alguém sou a vida e a luz dos olhos,
e, se na terra existe, é porque existo.

Esse alguém, que prefere ao namorado
cantar das aves minha rude voz,
não és tu, anjo meu idolatrado!
Nem, meus amigos, é nenhum de vós!

Quando alta noite me reclino e deito
melancólico, triste e fatigado,
esse alguém abre as asas no meu leito,
e o meu sono desliza perfumado.

Chovam bençãos de Deus sobre a que chora
por mim além dos mares! esse alguém
é de meus dias a esplendente aurora,
és tu, doce velhinha, ó minha mãe!

Gonçalves Crespo

quinta-feira, 4 de novembro de 2010

OS TEMPOS NÃO

Os tempos não vão bons para nós, os mortos.
Fala-se demais nestes tempos (inclusivé cala-se).
As palavras esmagam-se entre o silêncio
que as cerca e o silêncio que transportam.

É pelo hálito que te conheço     no entanto
o mesmo escultor modelou os teus ouvidos
e a minha voz, agora silenciosa porque nestes tempos
fala-se demais são tempos de poucas palavras.

Falo contigo demais assim me calo e porque
te pertence esta gramática assim te falta
e eis porque todos temos a perder e porque é
cada vez mais pesada a paz dos cemitérios.

Manuel António Pina 

IMPRESSÕES DO CREPÚSCULO

I

Ó sino da minha aldeia,
Dolente na tarde calma,
Cada tua badalada
Soa dentro da minh'alma.

E é tão lento o teu soar,
Tão como triste da vida,
Que já a primeira pancada
Tem um som de repetida.

Por mais que me tanjas perto
Quando passo, sempre errante,
és para mim como um sonho --
Soas-me na alma distante...

A cada pancada tua,
Vibrante no céu aberto,
Sinto mais longe o passado,
Sinto a saudade mais perto.

Fernando Pessoa

NOITINHA

A noite sobre nós se debruçou...
Minha alma ajoelha, põe as mãos e ora!
O luar, pelas colinas, nesta hora,
É a água dum gomil que se entornou...

Não sei quem tanta pérola espalhou!
Murmura alguém pelas quebradas fora...
Flores do campo, humildes, mesmo agora,
A noite, os olhos brandos, lhes fechou...

Fumo beijando o colmo dos casais...
Serenidade idílica de fontes,
E a voz dos rouxinóis nos salgueirais...

Tranquilidade... calma... anoitecer...
Num êxtase, eu escuto pelos montes
O coração das pedras a bater...

Florbela Espanca

ELEGIA DE SETEMBRO

Não sei como vieste,
mas deve haver um caminho
para regressar da morte.
Estás sentada no jardim,
as mãos no regaço cheias de doçura,
os olhos poisados nas últimas rosas
dos grandes e calmos dias de Setembro.

Que música escutas tão atentamente
que não dás por mim?
Que bosque, ou rio, ou mar?
Ou é dentro de ti
que tudo canta ainda?

Queria falar contigo,
dizer-te apenas que estou aqui
mas tenho medo,
medo que toda a música cesse
e tu não possas mais olhar as rosas.
Medo de quebrar o fio
com que teces os dias sem memória.

Com que palavras
ou beijos ou lágrimas
se recordam os mortos, sem os ferir
sem os trazer a esta espuma negra
onde os corpos e corpos se repetem
parcimoniosamente, no meio de sombras?

Deixa-te estar assim,
ó cheia de doçura,
sentada olhando as rosas
e tão alheia
que nem dás por mim.

Eugénio de Andrade 
A palavra, a mãe que me espera
ao fim desta viagem de cegos
é uma árvore compassiva a que me encosto
quando estou cansado e não quero cair ainda.
Um bosque cheio de veredas
e não sei se foi esse o melhor caminho.
Aceitei-o. Precisava de uma companheira mais leve
do que o cheiro a tulipa negra da morte.
Navego num chão labirinto e vou com as águas
que todas as coisas são; adapto-me
ao vaso delas, à concha de palavras
que não colhi ainda. Foi bom termos tido
uma vida quase esquecida. Encostados a sílabas
como se fossem árvores de família.
As palavras não acrescentam nada,
mas como dizer o que não pode ser dito
em silêncio? Talvez possamos ajudar a desarrumar
a casa pobre que somos; talvez sejamos apenas
um espelho melancólico
onde se reflectem os nossos irmãos.

Para o António Ramos Rosa.

Casimiro de Brito

quarta-feira, 3 de novembro de 2010

PROPOSIÇÃO

Para fazer pairar
de longe e ao alto
um tremular de mastros
na solidão do olhar

e para rasgar no corpo
a seara antiga
onde o tempo amou
e me deitarás contigo

é que escutei na sombra
a vibração sem voz
da tua voz nas ondas
onde ecoa a morte

Miguel Serras Pereira

O ÚLTIMO ADEUS DUM COMBATENTE

Naquela tarde em que eu parti e tu ficaste
sentimos, fundo, os dois a mágoa da saudade.
Por ver-te as lágrimas sangrarem de verdade
sofri na alma um amargor quando choraste.

Ao despedir-me eu trouxe a dor que tu levaste!
Nem só o teu amor me traz a felicidade.
Quando parti foi por amar a Humanidade
Sim! foi por isso que parti e tu ficaste!

Mas se pensares que eu não parti e a mim te deste
será a dor e a tristeza de perder-me
unicamente um pesadelo que tiveste.

Mas se jamais do teu amor posso esquecer-me
e se fui eu aquele a quem tu mais quiseste
que eu conserve em ti a esperança de rever-me!

Vasco Cabral
Mha senhor fremosa, direi-vos ua rem:
vós sodes mha sorte e meu mal e meu bem!
     E mais... porque vo-lo-ei eu já mais a dizer?...
     Mha sorte sodes, que me fazedes morrer!

Vós sodes mha mort' e eu mal, mha senhor,
e quant' eu no mund' ei de ben e de sabor!
     E mais... porque vo-lo-ei eu já mais a dizer?...
     Mha sorte sodes, que me fazedes morrer!

Mha mort' e mha coita sodes, non á i al,
e os vossos olhos mi fazen ben e mal!
     E mais... porque vo-lo-ei eu já mais a dizer?...
     Mha sorte sodes, que me fazedes morrer!

Senhor, ben me fazen soo de me catar,
pero ven-m 'en coita grand'; e vos direi ar:
     E mais... porque vo-lo-ei eu já mais a dizer?...
     Mha sorte sodes, que me fazedes morrer!

Nuno Eanes Cerzeo

HOMEM AO MAR

No vale onde me encontro
ouço os sinos das igrejas
às horas certas.

O vento é o meu nevoeiro,
o badalar é o mugir do meu farol.

Homem das cidades marítimas,
sinto o cerco dos montes, dos penedos, da floresta.
Sei que há lobos,
javalis escondidos,
cavalos selvagens pastando solitários.

O pio nocturno da coruja
não me deixa esquecer onde estou.

Vilar, Gerês, Agosto de 2000

A RESPOSTA DA NOITE

                                                                                                                                                                                            Ao Gentil Guedes Gomes

A lua é um formidável diamante
No seio duma negra, a fulgurar.
Dessa rainha de Sabá, distante,
Que nos vem, ao sol-posto, visitar.

Quem foi o milionário perdulário
Que deu à noite a jóia excepcional?...
Ah! foi delírio de juízo vário,
Ou capricho de rei oriental...

Fui perguntar-lhe, indiscretamente,
E, em confidência, a noite respondeu:
«É uma recordação, foi um presente
Que o sol, há milhões de anos, me ofer'ceu.[»]

Afonso de Castro

terça-feira, 2 de novembro de 2010

Que podes dizer quando no engano
souberes que não há dádiva sem vantagem,
utilidade sem mágoa? As palavras
esperavam-te, era por mim que lutava,
um passo em falso e logo outro, noites
adivinhando ao longe o delírio, as luzes
voltadas para um rosto que as não
queria, lágrima numa chantagem, um
pouco de carinho, o resultado final
do precário sossego. Que posso dizer
quando houver inusitada calma,
a tranquilidade dos que preparam
com o seu cuidado a divisão
da hipocrisia? Que só de fúrias
vivemos, só de arriscados lances.

Helder Moura Pereira

LIÇÃO

                   Aprendíamos a amar, aprendíamos / a morrer

É no verão que se aprende a poesia,
disseste; e em cada um dos verões que a vida
nos traz, em que se aprende e desaprende
o mais certo, entre o amor e a morte,
que cada um tem de saber. No quintal,
onde já não existe a romãzeira da infância,
ouvindo o vento que sobe da terra, trazendo
um antigo furor de ervas e raízes; ou
no largo aberto para o tempo que foi,
e esse que há-de vir. Abro contigo o livro
branco de todos os lugares e de todos
os nomes: o livro da poesia, aprendida
com o desfolhar dos verões, enquanto
as mães se despedem da vida, e uma baça
adolescência se confunde com a névoa
de agosto. Leio devagar, como se
interpretasse, e um fogo embarcado
nos olhos enfunasse a mais obscura
das imaginações: o verso, aprendido
no leito da memória, no verão em
que se aprende a poesia, disseste.

Paris, 1-XI-99

Nuno Júdice

SONETO DA VISITAÇÃO

Vinde, adorai! Criados e parentes!
Tenho o presépio em nossa casa armado.
Vinde adorar o meu menino amado,
Honrá-lo com carinhos, com presentes!

Muito quietinho, nas roupinhas quentes,
O infante dorme, dorme aconchegado.
É lindo, pois não é? o meu morgado?
Que tu, Senhor, em graça mo aviventes!

E, de joelhos, com um ar de boda,
Adora e pasma-se a assistência toda,
Como diante dum festivo altar.

Que perfeição! Que enlevo de criança!
-- E pedem num louvor que não descansa
Que Deus nos dê saúde p'ra o criar.

António Sardinha

FAROL ETERNO

Decorreram os anos. Pouco a pouco,
O vendaval, à solta, por vingança,
Quebra os vitrais e pela igreja avança,
E rompe em uivo prolongado e rouco...

E foge, e torna, e, com a chuva, louco,
Em desvairado sacrilégio, dança,
E abate claustros e ao abismo os lança,
E tudo alui, da abóbada ao cabouco...

Tudo caíu... Mas uma claridade,
Azul, fugaz, em noites muito escuras,
Ondula e sobe e, entre os escombros, erra...

-- Oh! a sobrevivência da piedade! --
São fogos fátuos, são as sepulturas
Ainda agora a alumiar, da terra...

Cândido Guerreiro

segunda-feira, 1 de novembro de 2010

na hora de pôr a mesa, éramos cinco:
o meu pai, a minha mãe, as minhas irmãs
e eu. depois, a minha irmã mais velha
casou-se. depois, a minha irmã mais nova
casou-se. depois, o meu pai morreu. hoje,
na hora de pôr a mesa, somos cinco,
menos a minha irmã mais velha que está
na casa dela, menos a minha irmã mais
nova que está na casa dela, menos o meu
pai, menos a minha mãe viúva. cada um
deles é um lugar vazio nesta mesa onde
como sozinho. mas irão estar sempre aqui.
na hora de pôr a mesa, seremos sempre cinco.
enquanto um de nós estiver vivo, seremos
sempre cinco.

José Luís Peixoto

o imaginário da praia

todas as noites da nossa paixão
foram servidas por estandartes
que perduram no imaginário
andávamos atrás de deusas
de casas antigas de marchas de cegadas
de coisas que a história não deixa vestígios

quando procuramos arquivar o passado
tudo se dilui na correria que é entrar de bar em bar
e manter sempre a mesma respiração
é como apagar as chamas de um foguete das festas do sítio
nunca é tarde para o fazer
mas quando nos olhamos
não resistimos ao que resta de nós

(acabei agora de falar com o zé -- o paulo não estava -- e
soube que as cafurnas ainda enrolam a alegria e que o
mistério do voo das gaivotas ainda não foi desvendado)

havemos sempre de beber outra garrafa de vinho
e noutra púrpura noite rasgar a praia toda

m. parissy
e sequem-se-me os dedos a cabeça
estoire e não fique de tudo uma palavra
se a maldição for tanta que eu te esqueça

e não reste sequer o chão e não de quantas ruas e
não já reste cidade

e seja a memória deste homem um escárnio ocultado por quinze
                                  [gerações de vindouros
com seus cães que se deitam aos pés das pessoas e parecem
                                   [adivinhar a linguagem monstruosa
das narinas resfolegando

se a maldição for tanta e tão pérfida
que eu te esqueça na morte, que eu te esqueça

Fernando Assis Pacheco