sexta-feira, 28 de novembro de 2008

A VIRGEM SANTÍSSIMA

Cheia de Graça, Mãe de Misericórdia


Num sonho todo feito de incerteza,
De nocturna e indizível ansiedade
É que eu vi teu olhar de piedade
E (mais que piedade) de tristeza...

Não era o vulgar brilho da beleza,
Nem o ardor banal da mocidade...
Era outra luz, era outra suavidade,
Que até nem sei se as há na natureza...

Um místico sofrer... uma ventura
Feita só do perdão, só da ternura
E da paz da nossa hora derradeira...

Ó visão, visão triste e piedosa!
Fita-me assim calada, assim chorosa...
E deixa-me sonhar a vida inteira!

Antero de Quental

domingo, 9 de novembro de 2008

A UM PINHEIRO QUE VÃO CORTAR

(Ao Severo Portela)

Ó pinheirinho triste, meu irmão,
De fraguedos e chuva alimentado!
Com que mágoa te vejo recortado
No frio azul da tua solidão!

Eu bem entendo a viva inquietação
Do teu olhar em Deus mal confiado!
Bem sei que vais tombar, decapitado,
Mãos erguidas em prece de cristão!

Bem entendo a irreal melancolia
Do teu rosto engelhado, neste dia
Que a toda a volta espalha desconforto;

Mas -- ó corpinho tenro, de criança! --
Que te console, ao menos, a lembrança
Do bem que espalharás depois de morto!

Eduardo Salgueiro

sábado, 8 de novembro de 2008

POEMA DO SER INÓSPITO

No cúbiculo estreito onde a criança
dorme no homem como um ser inóspito,
duplas são as paredes e, na boca,
uva de moscatel, açaime de aço.
Dorme, criança, dorme.
Não deixes ficar mal os que acreditam
no mito da inocência.
Dorme, e espera que os homens se aniquilem
enquanto dormes.
Reduz-te a imaginar como serão as flores,
os insectos, as pedras, as estrelas,
e tudo quanto é belo e se reflecte
nos olhos das crianças.
Imagina um luar que cresce e aquece
e faz da tua carne flor de loiça,
orquídea branca que o calor não cresta.
Imagina, imagina.
Mas, sobretudo, dorme.

António Gedeão

sábado, 1 de novembro de 2008

CANALIZA

canaliza

com o anoitecer o rapaz toma corpo de vulcão
inicia o percurso que o levará
a preencher o silêncio das imagens

agarrado às fissuras da terra
pousa o caderno e o lápis e voa

havia uma casa a que chamávamos de canaliza
era um edifício inacabado
onde guardávamos as armas
e os brinquedos -- uma ruína
de pó luminoso
pedaços de madeira e restos de tijolos

ali nos perdíamos em sonhos
até que o grito mudo das
gaivotas nos viesse acordar

ali havia rostos de riso e
assim era o castelo enclausurado
no meio da mediocridade e
na fugaz realização do corpo

as mãos flutuavam-nos
por entre gestos de batalhas
às vezes pela esperança
de ter nos dedos
os cheiros das raparigas
a quem dizíamos que tínhamos um castelo

e o anoitecer tornava
verdadeira essa aventura

no cimo dos galhos das árvores
no pátio da escola
se amarravam raparigas
em geral os outros passavam
e eram eles que nos olhavam
translúcidos

uma a uma lhes
enfiávamos dardos envenenados
areia pedras beijos

(é aqui que as mãos flutuantes
tornavam o sonho ainda mais
real e decretávamos ordens
uns aos outros)

a noite trazia ainda
a dimensão de todas
as visões:

um comboio de
livros que parava na mais
secreta estação
aí mergulhávamos
noutros sistemas solares
noutros corpos
noutros segredos que nem
a noite deixava adivinhar
ou
uma praia tão extensa como a nossa
mas que no horizonte mostrava
a porta de um abismo
e sob a areia por entre
as mesmas barcas
dançavam mulheres nuas

e nelas atracávamos as
embarcações feitas de piteira

hoje é a noite que está despedida
e pernoito no lado de lá do
meu fantasma

m. parissy