terça-feira, 8 de dezembro de 2009

TELA

A chuva cai, miudinha,
No chão magoado, gelado:
--Bate, cai, no meu telhado,
Com pés de Anjo, leveirinha;

Feia noite se avizinha:
Aí vem o manto pesado
Que já cerca o povoado!
(E a chuva cai, sereninha...)

Descem, ao vale, as Trindades;
Vão recolhendo, às herdades,
Ovelhas inda famintas;

O vento dança, nos montes;
Clamam rios, choram fontes;
Ladram cães -- longe nas quintas...

Eduardo Salgueiro

domingo, 22 de novembro de 2009

NÃO HÁ SAÍDA

Não pode a maior parte
suportar mesmo o que admira.
No mais sincero e puro admirar
uma raiva flutua, uns dedos se crispam,
um gosto sorridente de poder, podendo,
pousar na grandeza pelo menos um pé sujo
que manche o limiar lavado pela paciência
dos séculos e de um homem só. Não
tenhamos ilusão alguma. Quando louvam,
é só se podem dar com uma mão e tirar com a outra.
Nada pode haver de limpo neste mundo podre.
E morremos todos manchados de lama
que irá pegada a nós dentro do tempo.
Abrindo-nos as páginas futuras, alguém há-de
ver delas soltar-se um seco pó que tomba
e que ele sacode, assopra, rindo
da humanidade torpe que abusou de nós.
Ninguém porém nos pode garantir
que ele mesmo, o que nos limpa, o não faça
para no tempo limiar deixar bem nítidos
senão seus pés ao menos os dedos do seu cuspo.

11/10/1973

Jorge de Sena

quarta-feira, 18 de novembro de 2009

IRONIA

Se a noite fosse mais negra,
--Quero dizer, mais sombria!,
Agora que me encontraste
E que me dás o teu braço
Para falarmos, de novo,
No que dissemos, um dia!...
Se a noite fosse mais negra!,
E se as estrelas brilhassem
Com menos intensidade,
Sim, não duvides, eu diria...,
-- Mas não me fites assim!
Diria que és o meu sonho
E a minha realidade.
Mas esta luz que se entorna
Intimida o meu sentir
E fico, mudo, a sofrer...
--Também a gente nunca sabe
Se a verdade no amor
Se deve calar ou dizer.

António Botto

domingo, 11 de outubro de 2009

COM A SUA PELE

À mesa do café estava sentada uma rapariga triste, mulher
que já tinha idade. É tão aborrecido ser feio, ter perdido a adolescência.
Álvaro caeiro, meu mestre ou modelo, nem Alberto nem Campos, que
lhe diria se a encontrasse ali como eu depois de jantar?
Ao lado, na avenida, as árvores velhas e enormes também nada sabiam
de certos plátanos que à beira da estrada, caninos e elegantes,
sugeriam imagens com que falar melhor das adolescentes e das vacas
novas, tenros bezerros com o focinho cor de rosa que apetece beijar.
E as raparigas, com a sua pele matinal e fresca, com os seus vestidos
de algodão azul e branco decotados, mostravam o pescoço inteiro, um pouco
do peito em que não tinha ainda pesado o corpo dos homens.
À mulher cansada, rapariga não há muito tempo, eu não disse nada.
Pensei apenas: companheiras interessadas e atentas dos nossos sentimentos,
a natureza é cruel convosco; nem a memória nos fica, nem no vosso rosto
o vestígio daquela que fez sofrer e desejar; sempre
tivestes essa cara triste e calada, o exagero dessa maturidade.
Os plátanos velhos não curvaram os ramos para me ouvir sentir, não bocejaram,
desolados, quando comecei a afastar-me, seguindo o meu caminho.

João Camilo

sábado, 26 de setembro de 2009

é quando a noite é um animal ferido
que o poema salva quem o lê abandonado
quando se pressente a voz enlouquecida
de alguém que nos olhou e descobriu
é quando a noite rouba a luz do dia
para construir suas altas fragas de silêncio
e um galope de lábios na sua verdura
nos invade ou nos recolhe em suas crinas
é quando a linha de sombra é o azul da chama
ainda antes de ser contra a pureza nua
o edifício das palavras com dois gumes
é quando sabemos que nos encontramos
num café numa esquina que então escutamos
a pedra angular da nossa vida o poema escrito

António Carlos Cortez

domingo, 16 de agosto de 2009

A UMA OLIVEIRA

Muito antes de Os Lusíadas diz-se que já aqui estavas.

Pré-camoniana,
sazão a sazão,
foste varejada séculos a fio.

O pinho viajou.
tu ficaste.

Ao som bárbaro de um rádio de pilhas,
desdobram toalhas
na tua sombra rala.

Alexandre O'Neill

sábado, 25 de julho de 2009

COMPOSIÇÃO COM ÁRVORES

Aquela ave do sol, e sol das aves, (Jerónimo Baía)

A árvore ainda árvore de sol
Rasga a pisada tela, sobressai régia,
Imprecisa, esfuma-se, rebuscada
Pungente e verdejante a réplica?
Amena a mão ao desenho oferece.
Laivos verdejantes a ampliar a árvore.
O risco incerto impõe a árvore triste.

A árvore alva, luzidia, perla
Na assombrosa descrição afinal calcário leve
De árdua escadaria, profana, disponível
A secura indistinta.
O largo ramo de luz entumecido.

A árvore ainda árvore selecta
Deslumbra ao mover-se da espessura
Da copa airosa o cone aceso (aceso de agreste).
Empobrece.

Rompe-se a cal constante
E de branca inventa a alvura.
Seca a árvore que aparece.

José Emílio-Nelson

segunda-feira, 6 de julho de 2009

POEMA DUM FUNCIONÁRIO CANSADO

A noite trocou-me os sonhos e as mãos
dispersou-me os amigos
tenho o coração confundido e a rua é estreita

estreita em cada passo
as casas engolem-nos
sumimo-nos
estou num quarto só num quarto só
com os sonhos trocados
com toda a vida às avessas a arder num quarto só

Sou um funcionário apagado
um funcionário triste
a minha alma não acompanha a minha mão
Débito e Crédito Débito e Crédito
a minha alma não dança com os números
tento escondê-la envergonhado
o chefe apanhou-me com o olho lírico na gaiola do quintal em frente
e debitou-me na minha conta de empregado
Sou um funcionário cansado dum dia exemplar
Porque não me sinto orgulhoso de ter cumprido o meu dever?
Porque me sinto irremediavelmente perdido no meu cansaço?

Soletro velhas palavras generosas
Flor rapariga amigo menino
irmão beijo namorada
mãe estrela música

São as palavras cruzadas do meu sonho
palavras soterradas na prisão da minha vida
isto todas as noites do mundo uma noite só comprida
num quarto só

segunda-feira, 22 de junho de 2009

BOTÂNICA: O CIPRESTE

No canto de terra onde o plantaram,
procura o sentido da linha recta. Não pretende
o círculo, a roda das estações, a fuga ao
eixo que a gravidade lhe impõe. Aceita
que o céu é o seu destino; e por isso
as suas raízes que se alimentam dos mortos,
que lhes cedem as almas para
que o tronco as liberte, no inverno,
quando o frio faz vibrar a luz que
o envolve. Não oferece a sombra
a quem passa; não pede a companhia
dos amantes que o evitam, em busca
de um abrigo de flores. O seu destino
é o ponto que o olhar fixa, para além
do azul, num infinito em que outras
raízes crescem, bebendo o leite negro
das mitologias.

Nuno Júdice

domingo, 7 de junho de 2009

NOCTURNO

Entre o poço de orquestra e a assembleia muda
vou espargindo em pequenas notas a minha vida,
erguendo a cúpula de um céu sobre o teclado.
Gravo a anatomia dos meus gestos no silêncio,
enquanto uma valsa espera dormir na gola
de um nocturno. Esta dor costurada até ao osso
e em mim aceite como um vestuário obsceno,
poção composta segundo o preceito e de um trago
bebida, sem esgares, com a alegria de quem
se mata lentamente. Sou só uma destreza manual,
a arte de acariciar nos dedos um botão nevado,
as pétalas de uma bonina, cujo som ecoa
pelos saltos de uma fonte, pelos veios de uma sepultura.

A noite como uma oportuna morada sobre as árvores,
entreaberta como o ouvido à indiscrição de um segredo,
não volta para nós a face, que é branca. Sacode
no lugar da lua a cabeça como se pensasse negar em baixo
a escuridão. Vela silenciosa a paz de quem espera
e teve no entardecer por confidente o verdadeiro espelho:
o sangue que se inscreveu no céu como uma ideia
e o sol que me devolve a sua expectoração vermelha.

Paulo Teixeira

quinta-feira, 28 de maio de 2009

REQUIEM PELA VELHA AMEIXIEIRA

Crepita a madeira na lareira
crepita a velha ameixieira
seus veios são as minhas próprias veias
vejo arder as ameixas e o verão
crepita aquela que deu sombra e agora dá calor
crepita o melro o verdilhão o rouxinol
e em cada tronco palpita
o próprio sol.
Crepita o sumo que escorria
pelo teu rosto onde o tempo também ardeu
crepita a velha ameixieira
e quem com ela crepita
sou eu.

Águeda, Natal, 2001
Manuel Alegre

domingo, 24 de maio de 2009

princípio do prazer

à sua volta os pombos cor de lava
nos arabescos pretos do basalto
e gente, muita gente que passava
e se detinha a olhá-la em sobressalto

no seu olhar havia uma promessa
nos seus quadris dançava um desafio
num relance de barco mas sem pressa
que fosse ao sol-poente pelo rio

trazia nos cabelos um perfume
a derramar-se em praias de alabastro
e um brilho mais sombrio quase lume
de fogo-fátuo a coroar um mastro

seu porte altivo punha à vista o puro
princípio do prazer que caminhava
carnal e nobre e lúcido e seguro
com qualquer coisa de uma orquídea brava

e nas ruas da baixa pombalina
sua blusa encarnada era a bandeira
e o grito da revolta na retina
de quem fosse atrás dela a vida inteira.

Vasco Graça Moura

domingo, 10 de maio de 2009

(Na minha vagabundagem nocturna entro
num café quase em frente da Igreja dos
Anjos, frequentado em tempos idos pelo
Poeta Alfredo Brochado, meu amigo so-
nâmbulo.)


Tantas vezes o vi naquela mesa da noite
calado em si mesmo
para não se acordar.

Nesse tempo,
já a poesia não lhe cabia nas palavras,
mas só nos gestos,
na levitação dos passos
perdidos dos ecos...

E certa tarde com uma lâmpada de sombra
pegou na poesia
e levou-a por um subterrâneo de luz
até ao silêncio
escavado nos gritos.

Nesse tempo,
para não quebrarmos o cristal de vivermos por fora,
já não juntávamos as noites na mesma mesa.

Sorríamos apenas,
cada qual do longe da sua ilha:
«Olá! como estás?»
E ficávamos a sonhar
-- simulacro de solidão,
ferrugens e distâncias.

Hoje não.

Hoje se ainda vivesses por fora
esta nossa morte de todos os dias,
iria sentar-me à tua sombra
para explorarmos juntos o silêncio.
E mostrar-te as bandeiras de frio molhado
que trago nos olhos.

Depois sairíamos ambos para o sabor das trevas
onde as formas se devoram
por dentro do sussurro
das ruas mortas.

José Gomes Ferreira

quarta-feira, 15 de abril de 2009

SONETO DE AMOR

Tantos passaram pelo teu caminho
Antes que fosse a hora de eu passar
Que tenho a dor de me não ver sozinho
Na memória fiel do teu olhar.

Nenhum te disse frases de carinho,
Nenhum parou, talvez, para te amar...
E vão perdidos no redemoinho
Da Vida e nunca mais hão-de voltar.

Para ti, nenhum foi o mesmo que eu...
-- Mas porque a tua vista os abrangeu
Mesmo sem alegria, amor ou fé,

Deles alguma cousa em ti existe
-- Alguma cousa que me deixa triste
Porque não posso adivinhar o que é!...

João de Barros

sexta-feira, 10 de abril de 2009

NOITE

De noite só quero vestido
o tecido dos teus dedos

e sobre os ombros a franja
do final dos cabelos

Sobre os seios quero
a marca
do sinal dos teus dentes

e a vergasta dos teus
lábios
a doer-me sobre o ventre

Nas pernas e no pescoço
quero a pressão mais
ardente

e da saliva o chicote
da tua língua dormente

Maria Teresa Horta

segunda-feira, 6 de abril de 2009

A NESPEREIRA DAS VARANDAS

Anainha entre as grades irritantes
E o tronco num caixote indigno dela,
Sonha uma condição, que não aquela,
Adivinha jardins, hortos distantes.

Sem confiar, porém, no viandante
Que ela vê lá de cima da janela,
Deixou cair as folhas na ruela
E ergueu ao céu os braços suplicantes.

Eu, que venho do campo e ali fui nado,
Bem avalio a pena que lhe assiste
Longe do ar puro, e fresco, e perfumado.

Ó minha irmã! Ó pobrezinha! Ó triste!
Como tu, ando alheio, ando exilado,
Preso da mágoa a mais atroz que existe.

Ed. Bramão de Almeida

sexta-feira, 3 de abril de 2009

GATO

Que fazes por aqui, ó gato?
Que ambiguidade vens explorar?
Senhor de ti, avanças, cauto,
meio agastado e sempre a disfarçar
o que afinal não tens e eu te empresto,
ó gato, pesadelo lento e lesto,
fofo no pelo, frio no olhar!

De que obscura força és a morada?
Qual o crime de que foste testemunha?
Que deus te deu a repentina unha
que rubrica esta mão, aquela cara?
Gato, cúmplice de um medo
ainda sem palavras, sem enredos,
quem somos nós, teus donos ou teus servos?

Alexandre O'Neill

sábado, 28 de março de 2009

FOI A NOITE QUE CHOROU?

Eram em flor as estrelas
E de sonho era o luar!
-- Debrucei-me sobre a noite,
Para a ouvir e conversar.

Fiz-lhe as minhas confidências,
As suas mágoas lhe ouvi.
À noite amiga entreguei
Tudo o que por ti sofri.

Piedosa, a noite ia ouvindo
A minha dor, funda e amara.
Havia lágrimas no ar...
-- Se as havia, quem chorara?

Caía um luar mais fino,
um luar mais claro e belo.
-- Quem chorara? A noite ou eu?
Eu mesmo não sei dizê-lo!

Rebelo de Bettencourt

sábado, 21 de março de 2009

RUMOR DE VENTO AO CREPÚSCULO

A juventude duma olaia:
passou o vento
e levantou-lhe a saia.

Que ficou desse amor
mais que o rumor do vento?
Ou mais do que perder
nos longes da campina
o subtil rumor
que foge e não se esquece?

Violada se debruça
a noiva vegetal
agora que anoitece.

Carlos de Oliveira

quarta-feira, 18 de março de 2009

ÍNTIMO NATAL

Nunca um Natal me aturdira
com tão grande maravilha

Ó perspectiva de vida
que à vida me sobreviva

Um neto ou neta respira
no ventre de minha filha

1978.
David Mourão-Ferreira

sábado, 7 de março de 2009

MÃE

Olha, meu Filho! quando à aragem fria
Dalgum torvo crepúsculo, encontrares
Uma árvore velhinha, em modo e em ares
De abandono e outonal melancolia:

Não passes junto dela, nesse dia
E nessa hora de bênçãos, sem parares:
Não vás, sem longamente a contemplares:
Vida cansada, trémula e sombria!

Já foi nova e floriu entre esplendores:
Talvez em derredor dos seus amores
Inda haja filhos que lhe queiram bem...

Ama-a, respeita-a, ampara-a na velhice;
Sorri-lhe com bondade e com meiguice:
--Lembre-te, ao vê-la, a tua própria Mãe!

António Correia de Oliveira

segunda-feira, 2 de março de 2009

A PALAVRA

Só conheço, talvez, uma palavra.

Só quero dizer uma palavra.

A vida inteira para dizer uma palavra!

Felizes os que chegam a dizer uma palavra!

Saul Dias

terça-feira, 24 de fevereiro de 2009

REINADO EFÉMERO

Quando o crepúsculo desce sobre a terra,
Com os seus dedos vestidos de veludo,
É a morte que desce sobre o dia...
E o dia morre... como morre tudo...
Mas vem a noite, mais fúnebre e negra,
E o crepúsculo morre em agonia...
Viveu tão pouco!... De que lhe serviu
Ter vindo à terra pra matar o dia?...
E a noite reina -- julgando-se eterna... --
No seu trono de estrelas assentada...
Reinado efémero: no vasto horizonte
Aparece a sorrir a madrugada...

Lourdes Borges de Castro

segunda-feira, 23 de fevereiro de 2009

À NOITE DE NATAL

Era noite de inverno longa e fria,
Cobria-se de neve o verde prado;
O rio se detinha congelado,
Mudava a folha cor, que ter soía.

Quando nas palhas duma estrebaria,
Entre dois animais brutos lançado,
Sem ter outro lugar no povoado
O Menino Jesus pobre jazia.

-- Meu amor, meu amor, porque quereis
(Dizia Sua Mãe) nesta aspereza
Acrescentar-me as dores que passais?

Aqui nestes meus braços estareis;
Que, se Vos força amor sofrer crueza,
O meu não pode agora sofrer mais.

Frei Agostinho da Cruz

sábado, 7 de fevereiro de 2009

ALGUMAS PROPOSIÇÕES COM PÁSSAROS E ÁRVORES QUE O POETA REMATA COM UMA REFERÊNCIA AO CORAÇÃO

Os pássaros nascem na ponta das árvores
As árvores que eu vejo em vez de fruto dão pássaros
Os pássaros são o fruto mais vivo das árvores
Os pássaros começam onde as árvores acabam
Os pássaros fazem cantar as árvores
Ao chegar aos pássaros as árvores engrossam movimentam-se
deixam o reino vegetal para passar a pertencer ao reino animal
Como pássaros poisam as folhas na terra
quando o outono desce veladamente sobre os campos
Gostaria de dizer que os pássaros emanam das árvores
mas deixo essa forma de dizer ao romancista
é complicada não se dá bem na poesia
não foi ainda isolada da filosofia
Eu amo as árvores principalmente as que dão pássaros
Quem é que lá os pendura nos ramos?
De quem é a mão a inúmera mão?
Eu passo e muda-se-me o coração

quarta-feira, 4 de fevereiro de 2009

Há casas profundas
onde resplandecem linhos desfeitos
passos de mulher
casas cheias de doçura
orações esquecidas
lâmpadas ardendo como conchas
casas com colinas de água por dentro
e contos de fadas
e anjos perplexos na caligrafia dos quartos
há casas atravessadas
por um dom luminoso e feroz
por um júbilo de rosas
e portas por abrir

Pedras Salgadas
21 de Agosto de 1999
Fernando Jorge Fabião

quinta-feira, 29 de janeiro de 2009

NOCTURNO

Espírito que passas, quando o vento
Adormece no mar e surge a lua,
Filho esquivo da noite que flutua,
Tu só entendes bem o meu tormento...

Como um canto longínquo -- triste e lento --
Que voga e subtilmente se insinua,
Sobre o meu coração, que tumultua,
Tu vertes pouco a pouco o esquecimento...

A ti confio o sonho em que me leva
Um institnto de luz, rompendo a treva,
Buscando, entre visões, o eterno Bem.

E tu entendes o meu mal sem nome,
A febre de ideal que me consome,
Tu só, Génio da Noite, e mais ninguém!

Antero de Quental

segunda-feira, 26 de janeiro de 2009

À mãe do soldado desconhecido

Bota discurso o militar casquilho,
Soa de mil cornetas o clangor,
Há sinos, salvas, rufos de tambor,
Tudo em glória maior de vosso filho.

Eu, que ideias guerristas não perfilho,
Tive há bocado um ramo de estupor;
Nem as cinzas dum grande imperador
Seriam trasladadas como mais brilho.

Mas ai de vós se alguma vez, doente,
Morta de fome e a tiritar de frio,
Tiverdes que esmolar! Toda essa gente

Que a vosso filho de lauréis cobriu,
Há-de passar por vós indiferente
Ou enxotar-vos como a um cão vadio.

Ed. Bramão de Almeida

sábado, 17 de janeiro de 2009

ÁRVORE RUMOROSA

Árvore rumorosa pedestal da sombra
sinal de intimidade decrescente
que a primavera veste pontualmente
e os olhos do poeta de repente deslumbra

Receptáculo anónimo do espanto
capaz de encher aquele que direito à morte passa
e no ar da manhã inconsequentemente traça
o rasto desprendido do seu canto

Não há inverno rigoroso que te impeça
de rematar esse trabalho que começa
na primeira folha que nos braços te desponta

Explodiste de vida e és serenidade
e imprimes no coração mais fundo da cidade
a marca do princípio a que tudo remonta

Ruy Belo

segunda-feira, 12 de janeiro de 2009

CONSOLO NA PRAIA

Vamos, não chores...
A infância está perdida.
A mocidade está perdida.
Mas a vida não se perdeu.

O primeiro amor passou.
O segundo amor passou.
O terceiro amor passou.
Mas o coração continua.

Perdeste o melhor amigo.
Não tentaste qualquer viagem.
Não possuis casa, navio, terra.
Mas tens um cão.

Algumas palavras duras,
em voz mansa, te golpearam.
Nunca, nunca cicatrizam.
Mas, e o humour?

A injustiça não se resolve.
À sombra do mundo errado
murmuraste um protesto tímido.
Mas virão outros.

Tudo somado, devias
precipitar-te -- de vez -- nas águas.
Estás nu na areia, no vento...
Dorme, meu filho.

Carlos Drummond de Andrade

terça-feira, 6 de janeiro de 2009

SONO

Dormir
mas o sonho
repassa
duma insistente dor
a lembrança
da vida
água outra vez bebida
na pobreza da noite:
e assim perdido
o sono
o olvido
bates, coração, repetes
sem querer
o dia.

Carlos de Oliveira

domingo, 4 de janeiro de 2009

CÉU DE SAUDADES

No céu unido dos dias como o de hoje
Que há neles que se afasta e foge?
Que é este cinzento das lousas do meu Douro
Que só encontro nas asas dos pombos bravos
Que distância me acena como leve mão de afagos
Daquela Mãe para quem eu era o seu menino de ouro.


Joaquim Gomes Mota