segunda-feira, 22 de fevereiro de 2010

NOITE TRANSFIGURADA

Criança adormecida, ó minha noite,
noite perfeita e embalada
folha a folha,
noite transfigurada,
ó noite mais pequena do que as fontes,
pura alucinação da madrugada
-- chegaste,
nem eu sei de que horizontes.

Hoje vens ao meu encontro
nimbada de astros,
alta e despida
de soluços e lágrimas e gritos
-- ó minha noite, namorada
de vagabundos e aflitos.

Chegaste, noite minha,
de pálpebras descidas;
leve no ar que respiramos,
nítida no ângulo das esquinas
-- ó noite mais pequena do que a morte:
nas mãos abertas onde me fechaste
ponho os meus versos e a própria sorte.

Eugénio de Andrade

terça-feira, 16 de fevereiro de 2010

CERTIDÃO DE NASCIMENTO

Tão regaço estas arcadas
Tão de brinquedo os eléctricos
Vejo a cidade parada
no ano de vinte e sete
Dela por vezes me evado
mas sempre a ela regresso
Bem sei eu que não desato
o cordão com que me aperta
Vejo seus gestos de grávida
medidos cautos emersos
nessa jovem gravidade
que só grávidas conhecem
Que frescor de madrugada
no terror com que me espera
Mas têm sempre a idade
que em sonho os filhos decretam
Recordo melhor a data
Até mesmo a atmosfera
É o dia vinte e quatro
de um mês a tremer de febre
com armas grades e o rasto
de um sangue que nunca seca
Só seis decénios passaram
rápidos como seis séculos
Tão pouco Mas neles cabem
cidades arcadas eléctricos
nesta imensa claridade
irmã gémea do mistério

David Mourão-Ferreira