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domingo, 28 de agosto de 2011

l'homme au verre de vin

numa sala do louvre dedicada à
pintura espanhola há um quadro
atribuído à escola portuguesa
de quatrocentos. é o

homem do copo de vinho, ou, dir-se-ia,
do copo de solidão; e é possível
que seja flamengo e triste. mas tomemos
a origem indicada como boa

para esse homem que vai entrar na noite,
gravemente na noite, como numa
parda natureza. eu nunca pude
obter um slide dessa imagem,

um bilhete postal, ou quaisquer dados
para situar aquela estranha placidez
de quem vai encontrar no vinho uma verdades, de
alguém que vou visitar de vez em quando,

para beber um copo em companhia.
é possível que fosse na flandres
algum feitor discreto e rico ou que em lisboa fosse
o português cultivado, melancólico,

segurando uma alcachofra minuciosa
que o pintor depois terá mudado
para tornar mais intenso o sentimento
ou mais real a sua digna sede.

Vasco Graça Moura

segunda-feira, 15 de agosto de 2011

Ai, pudesse eu ser pintor e verter
numa folha impressa, limpa, as cores todas
que a cidade me reserva no seu bojo
de água clara e luz aquietada rente
aos muros das hortas e às paredes rosa velho
dos prédios da memória da infância.

Ai, pudesse eu transfigurar-me em ave
daquelas que salpicam em voo o cetim
azul das tardes e pintaria a golpes de asa
uma outra vocação que não a minha, talvez
a tonitruante vocação dos hereges, dos
revoltosos, dos anunciadores de tudo
o que se muda e se transforma; outro
desígnio não quereria ter a não ser este:
o de me fazer na cor comum do que vejo e sinto.

José Jorge Letria

segunda-feira, 11 de julho de 2011

BRUEGHEL

Representados estão os meses outonais,
os rituais da caça, as parábolas
e os exorcismos, as peregrinações
e os horrores da carne na tela luminosa
do pintor que se senta a ver
dançar os camponeses e conta de babel
o tecido alucinante de mil línguas
fundindo-se em espirais de som

Pelas veredas abertas na neve
se evadem os caçadores e suas sombras
furtivas e trémulas e o pintor
à maneira de quem recorda um provérbio flamengo
tira do cerimonial das cores uma moral
justa e eterna: a felicidade do homem
é um tríptico incompleto
com pássaros vorazes planando em volta

José Jorge Letria

quinta-feira, 14 de abril de 2011

A LÁGRIMA DE VAN GOGH

o ar da tarde reflete
as flores do arco-íris

mudas, as cores giram
lisérgica dança de Shiva
sobre o campo de girassóis

centeio embolorado
: auto-retrato da Loucura
nas pupilas em chamas

& uma única lágrima
guardada
na caixinha de jóias

Ademir Assunção

terça-feira, 1 de fevereiro de 2011

à victor brauner

tiens c'est le chat illégal
quoi qu'absolument visible
il allume un feu tout blanc
il vient de jeter de l'eaux aux virgules
père    mère    poire    poète
attention le nain vous respire
fuez ses gants coupez vite le sable
on va être morts sous la table

Mário Cesariny

terça-feira, 25 de janeiro de 2011

SONÊTO

Cerâmica e tear: as mãos trabalham
e constroem o amor num fim de tarde
como jarro de rústico gargalo
ou fino pano arcaico. Sôbre o barro

põem desenhos mais jovens de suaves
moças dançando e restos de paisagens
da infância e da montanha: perfis núbios
sôbre o vermelho poente desse jarro.

E a substância mais tímida do sonho
nas mãos do artesão faz de seu pranto
e cismas, riso e ardor, tecido raro

em que se borda uma novilha, bela
como o beijo em setembro, em que se fez
o amor com outro fio e um outro barro.

Alberto da Costa e Silva

sexta-feira, 24 de dezembro de 2010

PROMENADE -- LUGAR CHEIO DE INSCRIÇÕES (PAUL KLEE)

Às vezes sento-me na
sala a ouvir Coltrane,
pursuance... as melodias

agitam o teu olhar,
afagam bem lá no fundo
as águas azuis tépidas

da lagoa. Nesse instante,
a natureza parece
ocultar uma ausência

de piedade, parece
dizer: é tão simples, tão
natural. Deixa fluir,

como o sangue, ou como
um corpo sensual, vivo,
quente... que, indiferente,

segue por entre a tribo
e, ainda quente, nela
se dissolve. Haja Deus!

Mário Avelar

terça-feira, 23 de novembro de 2010

VERMEER DE DELFT

É a manhã no copo:
Tempo de decifrar o mapa
Com seus amarelos e azuis
De abrir as cortinas (o sol frio nasce
Nos ladrilhos silenciosos),
Que veio pela galera da China:
Através dos seus cristais
Restitui a inocência.

Murilo Mendes

sábado, 16 de outubro de 2010

GÉNESIS OU OS PAINÉIS DE AVELINO ROCHA NO COLÉGIO DE GAIA

Eis como grávidas,
voláteis as formas
se organizam. E a matéria
se faz seiva. E sangue.
E sal. E sol. É outra vez
manhã, primeira
infância e arca
e harpa genesíacas. O homem
tirou de si as águas,
as sementes. E ao ar e ao fogo
as lançou. Terminada
a obra, assinou
seu nome com as tintas
do arco-íris.
Oitavo dia
da criação.

Albano Martins

sexta-feira, 15 de outubro de 2010

O MEU LÁPIS

É impossível pintar
a canção do vento
ou o choro das árvores
quando são abatidas.
É possível, diz o meu lápis
habituado a tantas vidas.

Teresa Guedes

sexta-feira, 1 de outubro de 2010

VOYAGEUR AU-DESSUS DE LA MER DE NUAGES

                                                                                                                                                                                                                          ao António S. Oliveira

Na solidão da mesma noite
e do mesmo monte
onde vasos
da luz ainda há pouco se entornavam.

Com a palma da mão
cobrindo os olhos, na retina
o fluxo de antigos silêncios,
a ciência do poente perdida
na terra firme do quarto

onde há-de caber sempre
o rosto de uma figura romântica
cismando sobre um mar de nuvens.

Rui Lage

domingo, 12 de setembro de 2010

O vago, longínquo tom
mudou-se em vivo escarlate.
Mudou-se o acre limão
em bombom de chocolate.

(Que se riam, à vontade,
dos meus olhos sem canseira!
Quem estiver à minha beira
que pressinta o disparate...)

Aquele cinzento é ruivo
como um beijo que faz sangue...
E o silêncio fundo é um uivo...

E o gesto exangue e langue
dá cabriolas... O goivo
para mim é cor de sangue.

Saul Dias

domingo, 5 de setembro de 2010

A MARÍA ANTONIA DANS, NA GALIZA

1

Este cansaço, este rumor,
esta indiferença secular,
estes corpos afastados,
esta saudade sem podar
que cresce e cresce e dá flores
pardas de tédio -- vizinhança
das pradarias e do ácer,
do granito e do mar --,
estes caminhos e estes montes
onde a luz e o animal
vão em silêncio, caminhando
sempre com passo igual;
estas choupanas habitadas
por fumo e homens, esta paz
acostumada a este costume
de falar para calar;
e estes veleiros e estas redes
de içar vazias, de pescar,
de guardar as ovas
e curti-las no sal,
dormem -- verdade? -- nos teus quadros
ou irão despertar?

Angel Crespo

(José Bento)

sexta-feira, 23 de julho de 2010

MUSÉE DES BEAUX ARTS

About suffering they were never wrong,
The Old Masters: how well they understood
Its human position; how it takes place
While someone else is eating or opening a window or just walking dully along;
How, when the aged are reverently, passionately waiting
For the miraculous birth, there always must be
Children who did not specially want it to happen, skating
On a pond at the edge of the wood:

They never forgot
That even the dreadful martyrdom must run its course
Anyhow in a corner, some untidy spot
Where the dogs go on with their doggy life and the torturer's horse
Scratches its innocent behind on a tree.

In Brueghel's Icarus, for instance: how everything turns away
Quite leisurely from disaster; the ploughman may
Have heard the splash, the forsaken cry,
But for him it was not an importance failure; the sun shone
As it had to on the white legs disappearing into the green
Water; and the expensive delicate ship that must have seen
Something amazing, a boy falling out from the sky,
Had somewhere to get to and sailed calmly on.

W. H. Auden

sexta-feira, 16 de julho de 2010

UMA FLORESTA PINTADA POR ILDA DAVID'

De instante para instante
identificam-se lacunas, espaços irremediáveis
distâncias:
é apenas uma parte
a experiência que fazemos
do que seja o tempo

Nesse descoberto que separa
um instante de outro
estendes o teu próprio corpo
nenhuma outra maneira
guardou o perfume da neve
sobre os muros
como se não fosse

José Tolentino Mendonça