segunda-feira, 31 de janeiro de 2011

CANTO E LAMENTAÇÃO NA CIDADE OCUPADA (3)



Não fora o grito a faca
de súbito rasgando
a fronteira possível
Não fora o rosto   o riso
a serena postura
do cadáver na praia

Não fora a flor a pétala
recortada em vermelho
o longínquo pregão
o retrato esquecido
o aroma da pólvora
a grade na janela

Não fora o cais   a posse
do nocturno segredo
a víbora   o polícia
o tiro   o passaporte
a carta de paris
a saudade da amante

Não fora o dente agudo
de nenhum crocodilo

Não fora o mar tão perto
Não fora haver traição

Daniel Filipe

MULTIDÃO

Uma folha tomba no plátano, um frémito sacode o imo do cipreste,
És tu que me chamas.

Olhos invisíveis sulcam a sombra, penetram-me como à parede os pregos,
És tu que me fitas.

Mãos invisíveis nos ombros me tocam, para as águas dormentes do lago me
                                                                                                [atraem,
És tu que me queres.

De sob as vértebras com pálidos toques ligeiros a loucura sai para o cérebro,
És tu que me penetras.

Não mais os pés pousam na terra, não mais pesa o corpo nos ares, transporta
                                                                                 [-o a vertigem obscura,
És tu que me atravessas, tu.

Ada Negri

(Jorge de Sena)

LE THÉ

Miss Hellen, versez-moi le Thé
Dans la belle tasse chinoise,
Où des poissons d'or cherchent noise
Au monstre rose épouvanté.

J'aime la folle cruauté
Des chimères qu'on apprivoise:
Miss Hellen, versez-moi le Thé
Dans la belle tasse chinoise.

Lá, sous un ciel rouge irrité,
Une dame fière et sournoise
Montre en ses longs yeux de turquoise
L'extase et la naïveté;
Miss Hellen, versez-moi le Thé.

Théodore de Banville

domingo, 30 de janeiro de 2011

Principio a escrever
e letra a letra construo uma casa
leve e obscura como um poema

Escrevo como quem da mágoa
se despede e é outra cor

O espanto inunda as mãos (aves sem peso)
e uma canção antiga
nasce no interior das sílabas

Um saber precário consome a minha voz
Um pedaço do mar
Um véu rasgado

Olho devagar os rostos
(luz matinal)
e à volta dos lugares
desenho um arco de orvalho e mel.

Fernando Jorge Fabião
Todo o poeta quando preso
é um refugiado livre no universo
de cada coração
na rua.

O chefe da polícia
de defesa de segurança do estado
sabe como se prende um suspeito
mas quanto ao resto
não sabe nada.

E nem desconfia.

José  Craveirinha

sábado, 29 de janeiro de 2011

Caminhos da Moderna Poesia Portuguesa


título: Caminhos da Moderna Poesia Portuguesa
antologiadora: Ana Hatherly (Porto, 1929)
os poetas: Alberto de Lacerda, Alexandre O'Neill, António de Cértima, António de Navarro, António Quadros, António de Sousa, David Mourão Ferreira, Eugénio de Andrade, Fernanda de Castro, Fernando Pessoa, Joaquim Paço d'Arcos, Jorge de Sena, José Régio, Mário Beirão, Miguel Torga, Natália Correia, Natércia Freire, Pedro Homem de Mello, Ruy Cinatti, Sebastião da Gama, Sophia de Mello Breyner Andresen, Tomaz Kim, Vitorino Nemésio.
colecção: «Educativa», Série G - «Literatura e Pensamento Portugueses», #8
editor: Direcção-Geral do Ensino Primário
local: [Lisboa]
data: 1960
capa: Ruy Pacheco
vinhetas: Ruy Pacheco e Mário Pacheco
págs.: 120
dimensões:16,5x11x1 cm. (brochado)
 impressão: Gráfica Boa Nova

A DOR E O GOSTO

Tudo em volta é dor e pó,
tudo luto e tudo enfado,
tudo vestido de dó,
tudo só do mesmo lado!

Mas venha um truc doloroso
um traumatismo violento
que sacuda este tormento
em movimentos de gozo.

Quando a dor em lago existe
e a nossa vida cativa
do mesmo lago persiste,
não vale a pena ser esquiva,

Basta apenas um motivo
que movimente esse lago
e o movimento é afago
duma dor em que me vivo.

Duma dor em que me exalto
de soberba e de ternura,
onanística ventura
de pôr as chagas ao alto!

Saborear o que passa
na fieira dos seus dedos
é dominar os enredos
com que se faz a desgraça.

Ninguém fuja à sua dor,
que é fazer-se perseguido,
que é considerar indivíduo
o que era apenas... calor!

Mário Saa

sexta-feira, 28 de janeiro de 2011

QUESTÕES DE TEMPO

1

O que representava esse arrepio
que com a noite vinha e me fazia
duvidar que pudesse em outro tempo

voltar a ver o corpo da alegria?
Todo o tempo é composto por enigmas
toda a mudança que eles significam

desaguará em perda esse o sentido
da noite que responde agora na
floresta do passado às aves fugitivas

Gastão Cruz

CASA DE BONECAS

Viam-se do quarto n.º 405
e pareciam,
à primeira vista, gente.
Mas não; eram apenas bonecas
a tomar diariamente chá
numa mesa colorida pelo desespero.

A única pessoa, já velha, era
a que veio pôr a secar
umas largas cuecas brancas,
em perfeito contraste
com o tule rosado das bonecas.

Manuel de Freitas
Ela, quando jovem
teve um homem
um jazzbandista marreco
dirigia uma orquestra e tocava bateria
intrumento onde se escrevia, no bombo, (Chick Webb) Jazzband.
Ela só mais tarde passou a Ella.
Ele morreu antes de Ella.

José Duarte

POEMA

As palavras mais nuas
as mais tristes.
As palavras mais pobres
as que vejo
sangrando na sombra e nos meus olhos.

Que alegria elas sonham, que outro dia,
para que rostos brilham?

Procurei sempre um lugar
onde não respondessem,
onde as bocas falassem num murmúrio
quase feliz,
as palavras nuas que o silêncio veste.

Se reunissem,
para uma alegria nova,
que o pequenino corpo
de miséria
respirasse o ar livre,
a multidão dos pássaros escondidos,
a densidade das folhas, o silêncio
e um céu azul e fresco.

António Ramos Rosa

quinta-feira, 27 de janeiro de 2011

ACENTUAÇÃO GRAVE

governo         permanente
povo             doente
coragem        ausente
ditadura         vigente
castração*     evidente
nação*           indolente

*agudo

Liberto Cruz

POESIA E ORIGEM

O pólen de ouro que arde no recesso
das corolas, no segredo dos pistilos;
a visão musical de outros tranqüilos
céus onde o amor esteve (ou está) disperso;

a secreta palpitação de uma beleza
mais casta, de uma luz que se anuncia,
trazem-me a sensação do próprio dia,
numa contemplação que é mais certeza.

Certeza? antes, o supremo encantamento
de quem renasce com as manhãs, em luminosa
plenitude, e as vê morrer, frágeis, ao vento.

A poesia é o dia reinventado.
E nós, que tanto sonhamos ao criá-la,
não nos lembramos mais de haver sonhado.

Alphonsus de Guimaraens Filho

HEIDENRÖSLEIN

Viu um rapaz uma rosa
-- rosinha do silvado...
Era tão fresca e formosa
que de vê-la assim airosa
quedou logo enamorado...
-- Linda, linda, linda rosa,
     rosinha do silvado!

Diz ele: Vou apanhar-te,
-- rosinha do silvado!
E vai ela: Hei-de picar-te!
Ficas de mim a lembrar-te!
que desprezei teu cuidado...
-- Linda, linda, linda rosa,
     rosinha do silvado!

Logo o cruel a colheu,
-- rosinha do silvado!
Ela bem se defendeu,
mas de nada lhe valeu:
já era aquele o seu fado!...
-- Linda, linda, linda rosa,
     rosinha do silvado!

Goethe

(Luís Cardim)
Non chegou, madr', o meu amigo,
e oj' est' o prazo saído!
          Ai, madre, moiro d'amor!

Non chegou, madr', o meu amado,
e oj' est' o prazo passado!
          Ai, madre, moiro d'amor!

E oj' est' o prazo saído!
Por que mentiu o desmentido?
           Ai, madre, moiro d'amor!

E oj' est' o prazo passado!
Por que mentiu o prejurado?
          Ai, madre, moiro d'amor!

Por que mentiu o perjurado,
pesa-mi, pois mentiu a seu grado.
          Ai, madre, moiro d'amor!

D. Dinis

quarta-feira, 26 de janeiro de 2011

HOMENAGEM A CESÁRIO VERDE

Aos pés do burro que olhava para o mar
depois do bolo-rei comeram-se sardinhas
com as sardinhas um pouco de goiabada
e depois do pudim, para um último cigarro
um feijão branco em sangue e rolas cozidas

Pouco depois cada qual procurou
com cada um o poente que convinha.
Chegou a noite e foram todos para casa ler Cesário Verde
que ainda há passeios ainda há poetas cá no país!

Mário Cesariny

SECOTINE

Tu eras a graça, a vida,
o golpe brusco de afecto,
elegância desmedida,
o súbito e dilecto
gesto de felino airoso.
Eras a velocidade
encarnada, o gostoso
ir à nossa intimidade,
sem pedir, sequer, licença:
como se tudo que há no mundo
fosse teu -- tua presença
      vinha em nós até ao fundo.
              Tu eras a graça, a vida,
              elegância desmedida.

Eugénio Lisboa
Cruzei-me com quem me dava
A languidez do amor.
A saudação lhe dei pela palavra.
Porque a afeição se acabasse
Não sentia o seu calor
E altaneiro me evitava,
Mas deixou-me que o beijasse:
Foi como daquela vez
Que avistando a claridade,
Só querendo lume, Moisés
Falou com a divindade.

Ibn Al-Milh

(Adalberto Alves)

NAVIO ERRANTE

Navio errante,
atraquei ao cais do Amor.

Daí em diante
fui-me ao sabor
de ondas, pária
de incerto rumo, bússola perdida.

Onde a linha imaginária
do verde equador
da minha vida?

Navio errante,
sem leme nem comandante,
meu sonho é corcel sem rédea
a gravitar na linha média
entre o equador
e o cais do Amor!

Maria Eugénia Lima

DÍPTICO IRAQUIANO

1. Saddam Hussein em conferência íntima

Diz as maiores barbaridades diante duma audiência restrita e
                                                                       [escolhida.
Fingem que sorvem as suas palavras, como se de ensinamentos
                                                           [do Profeta se tratasse
(ou sorvem-nas realmente, para decifrarem o mistério que reside
                                                                     [em cada tirano).
Saddam perora, sentencia, pára de falar por segundos que parecem
                                                                     [eternidades.
Como que alheio à tragédia que ele próprio é.
                                                                                                                                                                                                         I-2003
2. Embarque

(os marines rumam ao Golfo Pérsico
 vejo, na elevisão, um rapazinho
 de sete ou oito anos, agarrado ao pai)

Vai, despede-te do pai.
Vai matar ou morrer no
deserto.
As lágrimas embaciam-te
os óculos, e não percebes,
meu pequeno, porque há
homens maus a afastá-lo
de ti.
America will prevail.
Oh yes. Democracy,
como sempre.
Ainda não o sabes, mas
já o perdeste, pequeno.
Mesmo de volta,
virá com a morte
nos olhos. A morte
dos que têm o teu
tamanho, pequeno.
2-VI-2003

terça-feira, 25 de janeiro de 2011

GRITO NEGRO

Eu sou carvão!
E tu arrancas-me brutalmente do chão
E fazes-me tua mina
Patrão!

Eu sou carvão!
E tu acendes-me, patrão
Para te servir eternamente como força motriz
Mas eternamente não
Patrão!

Eu sou carvão!
E tenho que arder, sim
E queimar tudo com a força da minha combustão.

Eu sou carvão!
Tenho que arder na exploração
Arder até às cinzas da maldição
Arder vivo como alcatrão, meu irmão
Até não ser mais tua mina
Patrão!

Eu sou carvão!
Tenho que arder
E queimar tudo com o fogo da minha combustão.

Sim!
Eu serei o teu carvão
Patrão!

José Craveirinha
Digamos pois que a vida é um teatro,
em que cumpre ao actor fingir com arte:
levando-a a rir, como se fora farsa,
ou digno sendo na tragédia parte.

Paladas de Alexandria

(Jorge de Sena)

OBSESSÃO

Dentro de mim canta, intenso,
Um cantar que não é meu:
Cantar que ficou suspenso,
Cantar que já se perdeu.

Onde teria eu ouvido
Esta voz cantar assim?
Já lhe perdi o sentido:
Cantar que passa perdido,
Que não é meu estando em mim.

Depois, sonâmbulo, sonho:
Um sonho lento, tristonho,
De nuvens a esfiapar...
E, novamente, no sonho
Passa de novo o cantar...

Sobre um lago onde, em sossego,
As águas olham o céu,
Roça a asa de um morcego...
E ao longe o cantar morreu.

Onde teria eu ouvido
Esta voz cantar assim?
Já lhe perdi o sentido...
E este cenário partido
Volta a voltar, repetido,
E o cantar recanta em mim.

Francisco Bugalho

SONÊTO

Cerâmica e tear: as mãos trabalham
e constroem o amor num fim de tarde
como jarro de rústico gargalo
ou fino pano arcaico. Sôbre o barro

põem desenhos mais jovens de suaves
moças dançando e restos de paisagens
da infância e da montanha: perfis núbios
sôbre o vermelho poente desse jarro.

E a substância mais tímida do sonho
nas mãos do artesão faz de seu pranto
e cismas, riso e ardor, tecido raro

em que se borda uma novilha, bela
como o beijo em setembro, em que se fez
o amor com outro fio e um outro barro.

Alberto da Costa e Silva

segunda-feira, 24 de janeiro de 2011

PRIMEIRA IMPRESSÃO

pelos pés suspenso
o açoite desperta o pranto

            anos enregelados pela náusea

porcos e borregos ensanguentados
            num gancho de açougue

paulo da costa

HOMER CLAPP

Muitas vezes Aner Clete no portão
me recusou um beijo de adeus,
dizendo que tínhamos primeiro de estar noivos,
e só com um distante apertar-me da mão
me dava as boas-noites, quando eu a trazia a casa
do ringue de patinagem ou da igreja.
Mal tinha o ruído dos meus passos sumido na distância
e Lucius Atherton
(o que eu soube quando Aner se foi para Peoria)
lhe entrava pela janela ou a levava
no carro puxado pela parelha baia
a passear no campo.
O desgosto levou-me a tratar da vida
e pus todo o dinheiro da herança de meu pai
na fábrica de latas, para conseguir
ser chefe da contabilidade, e perdi tudo.
Foi quando entendi que eu era um dos bobos da Vida,
a quem só a morte trataria como igual
aos outros homens, fazendo que eu me sentisse um homem.

Edgar Lee Masters 

(Jorge de Sena)

DUELO

Ao desobediente sorriso da figueira
o gato mostrou melancolia às riscas.

Luís Serra

(VERSOS A UMA CABRINHA QUE EU TIVE)

Com seu focinho húmido
Esta cabrinha colhe
Qualquer sinal de noite
De que a erva se molhe.

Daquela flor pendente
Pra que seu passo apela
Parece que a semente
É o badalinho dela.

Sua pelerina escura
Vela-a da noite sentida;
Tem cada pêlo uma gota,
Com passos, poeira, vida.

De silêncio, silvas, fome,
Compõe nos úberes cheios
Toda a razão do seu nome
E fruto de seus passeios.

Assim já marcha grave
Como os navios entrando,
Pesada dos pensamentos
Da sua vida suave.

E enfim, no puro penedo
De seus casquinhos tocado,
Está como o ovo e a ave:
Grande segredo
Equilibrado.

Vitorino Nemésio

O CABRITO

Povoaste a paisagem grega
                  guardas um timbre clássico algo de conciso
ágil e jovem -- quem negaria? -- basta ver-te sobre os abismos
sem receio ou vertigem
          como a vida

José Paulo Moreira da Fonseca 

domingo, 23 de janeiro de 2011

Poeta Militante I

autor: José Gomes Ferreira (Porto, 9.XII.1900 -- Lisboa, 8.II.1985)
título: Poeta Militante
subtítulo: Viagem do Século XX em Mim
edição: 3.ª
prefácio: Mário Dionísio, «O "Poeta Militante"»
colecção: «Círculo de Poesia»
editora: Moraes Editores
local: Lisboa.
ano: 1983 (1ª, 1977)
págs.: XXII+297
dimensões: 20x15,5x0,9 cm. (brochado)
impressão: Tipografia Lousanense
observações: Obra poética completa

VERSOS DE SABOR ESTRAGADO

Borbulhas pulhas cravavam
as carnes deste mancebo
que uma donzelas de cebo
de mui longe amamentavam.

Tinha pedaços de bocas,
seus olhos pedaços d'olhos,
que foram bocas e olhos
d'outros olhos, doutras bocas!

Álcool de noite e de dia,
mulheres podres dia e noite
espadanavam açoite
naquela carne vazia.

Caía a carne com sono
com tendênia a desmanchar-se
e com tendência a sentar-se
nos degraus do abandono.

Os degraus eram d'outono
caídos, baixos, pesados,
com silêncios vazados
em grande taças de sono!...

E se me ponho a cismar
na aventura do não-ser
meu estro vai fenecer
nos 'scombros d'Além do Ar!

...O fim da tarde era doce
de quebrança e de fadiga:
a boa vida inimiga
tornou-se amiga, isolou-se!

Mário Saa

sábado, 22 de janeiro de 2011

Tornar-se clan
Destino, e esta coisa
Abstracta que se escapa

Escapar das vozes que
Perseguem, e da co-vari
Ância do espaço, a
Ordem dos coexistentes

Dantes o espaço era um
Recife de carcharo
Dontes

Agora é isto: abstracção,
Ou as gélidas correntes de ar
A pairar no suprematista
Esquife

Os objectos animam-se :
Marionetas erectas,
Relógios astutos,
O castelo ciumento
O poço em cio
O labirinto doente
A casa vazia

Lá dentro, bonecos de cera
Com fome de prostitutas

Carlos Couto Sequeira Costa

sexta-feira, 21 de janeiro de 2011

PASTELARIA

Afinal o que importa não é a literatura
nem a crítica de arte nem a câmara escura

Afinal o que importa não é bem o negócio
nem o ter dinheiro ao lado de ter horas de ócio

Afinal o que importa não é ser novo e galante
-- ele há tanta maneira de compor uma estante!

Afinal o que importa é não ter medo: fechar os olhos frente ao precipício
e cair verticalmente no vício

Não é verdade, rapaz? E amanhã há bola
antes de haver cinema madame blanche e parola

Que afinal o que importa não é haver gente com fome
porque assim como assim ainda há muita gente que come

Que afinal o que importa é não ter medo
de chamar o gerente e dizer muito alto ao pé de muita gente:
Gerente! Este leite está azedo!

Que afinal o que importa é pôr ao alto a gola do peludo
à saída da pastelaria, e lá fora -- ah, lá fora! -- rir de tudo

No riso admirável de quem sabe e gosta
ter lavados e muitos dentes brancos à mostra

Mário Cesariny

MARY MORISON

Maria, assoma à janela:
chegou por fim o momento!
O teu sorriso empobrece
os oiros do avarento...
Até me fazia escravo
a moirejar noite e dia,
se como prémio tivesse
a minha doce Maria!

Ontem, ao som das violas,
a aldeia inteira bailava;
só eu, sem ouvir nem ver,
para ti, meu bem, voava...
Fossem loiras ou morenas,
nenhuma ali te vencia...
Eu, então, só me queixava:
Não sois a minha Maria!

A quem por ti dera a vida,
vais, Maria, enlouquecer?
Ou rasgar-lhe o coração
sem culpa de bem-querer?
Se amor por amor não dás,
pena tem desta agonia...
Mal ficava ser cruel
à minha doce Maria!

Robert Burns

(Luís Cardim)

DA TERRA

4

...era a minha sementeira
se eu tivesse a mesma sina
que aproveita a goiabeira

de semente pequenina
começou por ser verdinha
mas depois se avermelhou

depois
a passarada
chilreando à liberdade descuidada
leva no bico a goiaba
que a goiabeira gerou

Manuel Rui

A MENINA FEIA

A menina feia
Sentava-se à janela,
Mas quem vai na rua
Nem repara nela.

À noite no quarto
Despe-se a menina
Para se deitar.
Tem os seios duros
E a barriga lisa.
Mal tira a camisa
Logo o quarto fica
Cheio de luar.

E a menina feia,
Mas de corpo lindo,
Sonha que está nua
Sentada à janela,
E no meio da rua,
Com os olhos luzindo,
Os homens se matam
Por um riso dela.

Armindo Rodrigues

quinta-feira, 20 de janeiro de 2011

AS PALAVRAS MANSAS

o limiar do sonho traz as palavras mansas
como a argila breve salivada e branda.
levemente sob a timidez do bosque d'água
o amor irrompe do limiar da infância.

mas nós estamos sós junto à fonte da memória.
as crianças cantam como mel sobre as ramagens
na recordação do fogo mágico da aurora
a canção do mundo transversal que quis ser puro

como um ninho de argila salivada e branda

João Candeias

SONETOS DE OLINDA - IV

Mar de palpitações onde navego
desde que a meu cismar se dera um dia
e seus fardos de azul e de poesia
pesam na voz que a meus silêncios nego

por tê-la dado a um pássaro e por cego
não ter visto que o pássaro morria
sem que antes lhe gravasse a melodia
nesta concha interior que em mim carrego

e enche-me o coração de igual tumulto
ao desse esbravejar de um deus sepulto
a erguer-se em ondas e a despedaçar-se

para mais belo erguer-se novamente
como alguém que pudesse a um sonho ardente
liberto se sentir no próprio cárcere.

Afonso Félix de Sousa

INSCRIPTION pour une fontaine

Vois-tu, passant, couler cette onde
Et s'écouler incontinent?
Ainsi fuit la gloire du monde,
Et rien que Dieu n'est permanent.

Agrippa d'Aubigné

TEORIA DA NARRATIVA FAMILIAR

Naquele tempo o meu pai trabalhava
por turnos
como herói socialista
no sector siderúrgico
e dormia com a minha mãe.
A minha mãe esfregava
a sarja encardida:
a água ficava da cor da ferrugem.
Havia, por perto, um cão
esgalgado,
sempre a rondar.
Depois, a minha irmã nasceu
e eu fui obrigado
a rever a minha mitologia privada do caos.
Entre uma coisa e outra
aprendi a mentir.
E isso, não sei se sabem, mudou tudo.

Luís Filipe Parrado

quarta-feira, 19 de janeiro de 2011

BANDEIRA PÓS-MODERNO (TAKE 1)

Vou-me embora pra Manhattan,
Lá sou amigo do Ray.
Tenho a trombonista ruiva
E uma terapeuta gay.

Eudoro Augusto

O PENÚLTIMO POEMA

Também sei fazer conjecturas.
Há em cada coisa aquilo que ela é que a anima.
Na planta está por fora e é uma ninfa pequena.
No animal é um ser interior e longínquo.
No homem é a alma que vive com ele e é já ele.
Nos deuses tem o mesmo tamanho
E o mesmo espaço que o corpo
E é a mesma coisa que o corpo.
Por isso se diz que os deuses nunca morrerm.
Por isso os deuses não têm corpo e alma
Mas só corpo e são perfeitos.
O corpo é que lhes é a alma
E têm a consciência na própria carne divina.

Alberto Caeiro

POEMA DO SEMEADOR

Áspera é a terra, o esforço não tem prémio,
porém, à sombra do pomar -- rubro pomar! -- dos pêssegos do sol
em ti eu vejo, ó torso
de haste, o lírio nunca ausente.

Nenhuma flor, é certo, aponta em meu caminho,
mas desde que teus seios desabrocham na aridez,
em pensamento ressuscito a graça de uma vide
ou faço resplender, à luz do ocaso,
o rosto em fogo das romãs.

Áspera é a terra:
porém quando te despes, calmo trevo,
contaminados pelo aroma de jasmins sem consistência
ergue-se no ar
um canto nupcial de pólens tontos;
e ao embalo dos astros renascendo,
eu semeador,
confiante no futuro,
lavro meu campo ensagüentado de papoulas
com touros cor de mar ou potros como luas.

Péricles Eugênio da Silva Ramos

terça-feira, 18 de janeiro de 2011

ESSA LUZ

Bruxuleia
a luz da candeia
no quarto do morto

vai o navio na viagem
da Grande Passagem
bruxuleia a luz no farol do porto

Levi Condinho

MY HEART IS SAIR FOR SOMEBODY...

Trago inquieto o coração
por alguém, que nem eu sei...
Quisera perder as noites
     a pensar n'alguém,
     por amor d'alguém,
     ai, por amor d'alguém!
Ir-me por todo esse mundo
     por amor d'alguém!

Santos ao amor fagueiros,
sorri docemente a alguém!
Livrai-o de todo o p'rigo;
     e dai-me esse alguém,
     trazei-me esse alguém,
     ai, trazei-me esse alguém!
Que eu... -- que não farei eu
     por amor d'alguém?

Robert Burns

(Luís Cardim)

A SUA MULHER

Amor, vivamos como sempre, não esqueçamos
os doces nomes ditos na primeira noite,
e nunca venha o dia que nos veja velhos:
eu sempre o jovem teu, e tu a minha noiva.
Que mais do que Nestor provecto eu seja em anos,
e tu na idade venças a senil Sibila.
De tão extrema velhice ignoraremos tudo:
menos as ciências dela no escapar do tempo.

Ausónio

(Jorge de Sena)

IRONIA

De tanto pensar na morte
Mais de cem vezes morri.
De tanto chamar a sorte
A sorte chamou-me a si.

Deu-me frutos duradoiros,
A paz, a fortuna, o amor.
As musas vieram pôr
Na minha fronte os seus loiros.

Hoje o meu sonho procura
Com saudade a poesia
Dos tempos em que eu sofria.

Que triste coisa a ventura!

Pedro Homem de Melo

segunda-feira, 17 de janeiro de 2011

JÁ POETA

Já poeta não sou se a voz eu calo
e nesse estado estou, que é não estar.
Já poeta não sou se a voz eu ergo,
para abrir outra porta, além no espelho.
Já poeta não sou quando estou cego
e adio essas linhas, marcadas a negro.
Já poeta não sou se o tempo perco,
no novelo enredado, no vício do prego.

Por isso escrevo, entre sangue e ouro,
rasgando as cortinas feitas pelo medo.
Por isso assim escrevo, escravo das palavras,
deixando a corrente inundar o Outro.

Toda a arte poética não deixa de ser
fogo de artifício -- para o Outro ver.

Eduardo Guerra Carneiro

domingo, 16 de janeiro de 2011

BENDITO O FRUTO

Benza-os Deus:
Os frutos acres, as cerejas, as laranjas,
Se ao beijo da manhã o sol descobre;
Laranjas -- frutos de oiro à Apollinaire
E brincos de cerejas,
Coradas de pudor à António Nobre.

Bendito o fruto, a mulher.

Afonso Duarte

AS PALAVRAS SÓ-LIDAS

As palavras só lidas são palavras
ler é um processo
de
        liquefação/solidificação

e não é só letrar as letras
dentro das memórias.

é também disjuntá-las
        que diz juntas
        se dizem de sentidos
                              novas.

E. M. de Melo e Castro

sábado, 15 de janeiro de 2011

ESTE É O LUGAR

1

a lança aponta sobre o mar o seu dedo
de rocha sedimentar. os gaviões da memória
dormem nas falésias vivas, e um cão, o cão
que sempre uiva no calafrio dos presságios
recorta-se contra a lua.
nada sabemos da benignidade ou dos malefícios
de aqui estar, nem sabemos o que de primordial
acaba ou começa na urgência da História.
este é o lugar onde o mar acaba e a saudade começa.
longe é o berço do mar, no bojo de uma nau
em que a pimenta e o gengibre enaltecem glórias imorredoiras.
ó noite que guardas nos teus recantos
uma esperança que é só nossa, a da terra em expansão
para o coração das gentes, agora que cessaram
alfanges e bombardas e ficou sangue, esse sangue
com que marcámos o rosto e a alma do mundo.
morreu o império, todos os impérios morrem.
desmoronam-se todos os impérios, à boca
do terceiro milénio, e a palavra pára,
suspende-se meditativa, olha o passado
abandona o seu séquito de fantasmas e, no instante
do último alento, vislumbra a esperança
de um novo universo a descobrir
Deixem-me entrar no poema.
Lâmpada de segunda natureza para olhar
os mortos.
Os mortos bem amados
que a terra devorou e o outono expele
em chuvas ácidas.
Deixem-me entrar no poema.
Os meus pulmões já sabem respirar
a música de deus no ar
da peste.

Armando Silva Carvalho

ARTE POÉTICA

b) o mesmo


avé mari'
um dois dois três
cheia de grá'
um dois três quá
o senhor é convosc
dominus vobisc
bendita sois vós
espírito tu
entre as mulheres
nove dez on'
bendito é o fruto
zasseis zassete
do vosso ventre jesus
dois três um dois três um dois quatro quá'


Mário Cesariny 

sexta-feira, 14 de janeiro de 2011

Lixo: aparas de lápis, serradura, papéis
com borras de café, sangue num pano,
jornais amarelecidos, cinzas com cigarros.
E juntar a este lixo as palavras gastas,
os livros queimados, o gosto agora azedo
da bebida e o retrato da outra, preciosa
pedra de sempre mas agora: lixo.
E saber que revolver este lixo é estar
no caldeirão a misturar ouro e vulcões.
E amar este lixo, mesmo no ódio. Voltar
então às palavras mais simples. Deixar
o vento levantar a bruma da poeira
dos cavalos. Entrar nas águas
debaixo da varanda -- olhar o mar.

Eduardo Guerra Carneiro

Oriente de Mim

autor: Adalberto Alves (Lisboa, 18.VII.1939)
título: Oriente de Mim
editora: Editorial Teorema
local: Lisboa
ano: s.d.
págs.: 98
dimensões: 20,5x14x0,8 cm. (brochado)
capa: ilustração de Martins Pereira
composição: Interouro
impressão: Rolo & Filhos, Mafra
obs.: na folha de rosto, retrato do Autor por Luís Veiga Leitão

NARCISO ENTEDIADO

A flor da vida
É não ser só
É ter-se o sonho
De dois num só.

O mel da vida
É numa voz
O eco ouvir-se
De uma outra voz.

O mal da vida
-- O mal que é meu --
Filtrar o tédio
De eu ser só meu.

Affonso Ávila

quinta-feira, 13 de janeiro de 2011

DESCONCERTANTE

Há frescura nos contos infantis,
Há perfumes no ar, rosas primaveris
Nos jardins.
Mas, na Rua, há arcos de palhaça
Por onde passam galgos, -- belos cães do pólo;
O amor e a desgraça,
Mãos pedintes, as mães, com filhinhos ao colo!

Mas, como bola dentro de assobio,
Ou presos na amurada dum navio,
Há olhos na cadeia -- olhando às grades!

-- Porque deixaram livre o manequim
E me prenderam a mim?

Cá fora, os lenços vão molhados de saudades.

Afonso Duarte
Quando grisalha e velha e mais de sono cheia
Cabeceares à lareira, pega nestes versos
E lê-os devagar, e lembra os universos
Do teu olhar de outrora, tão profunda teia;

E quantos tanto amaram teu alegre encanto,
Como tua beleza em falso ou vero amor,
E um só foi quem amou de tua alma o ardor
E do teu rosto a mágoa do mutável pranto.

Curvada então ao lado das ardentes brasas
Murmura um pouco triste que o Amor se afastou.
Nos sobranceiros montes vagueante andou,
E seu rosto escondeu na multidão dos astros.

W. B. Yeats

(Jorge de Sena)

UN SECRET

Mon âme a son secret, ma vie a son mystère:
Un amour éternel en un moment conçu;
Le mal est sans espoir, aussi j'ai dû le taire,
Et celle qui l'a fait n'en a jamais rien su.

Hélas! j'aurai passé près d'elle inaperçu,
Toujours a ses côtés, et pourtant solitaire,
Et j'aurai jusqu'au bout fait mon temps sur la terre,
N'osant rien demander et n'ayant rien reçu.

Pour elle, quoique Dieu l'ait faite douce et tendre,
Elle ira son chemin, distraite, et sans entendre
Ce murmure d'amour élevé sur ses pas;

A l'austère devoir pieusement fidèle,
Elle dira, lisant ces verses tout remplis d'elle:
"Quelle est donc cette femme?" et ne comprendera pas.

Félix Arvers

PARA LER AOS NOVIÇOES

Deus não aparece no poema
apenas escutamos a sua voz de cinza
e assistimos sem compreender
a escuras perícias

A vida reclama inventários e detalhes
não a oiças
quando inutilmente perscruta as sequências
do seu trânsito

Só há um modo verdadeiro de rezar:
estende o teu corpo ao longo do barco
que desce silencioso o canal
e deixa que as folhas mortas do bosque
te cubram

José Tolentino Mendonça

«SÓ DOS TERRATENIENTES»

não tenho nenhuma observação a fazer sobre a vista da varanda.
nenhuma, a não ser o céu largo e iluminado dos subúrbios do rio de janeiro.
céu q se alonga ao longo do mundo inteiro.
não é de todo o mundo a terra q é redonda.

Chacal

quarta-feira, 12 de janeiro de 2011

TRANSCONSCIÊNCIA

Vem.
Cada momento novo foi vivido
e vem de outras nebulosas.
Segue.
Cada momento segue
para ser esgotado por outros seres
em outros universos.
Que recordações e que ansiedades
terão os momentos que vivo?
Às vezes sinto a ancestralidade
de cada momento
como se remotamente reconhecesse
uma coisa feita e esquecida.
Sei de outras atmosferas.
Sei que não pára aqui o renovar.
Sei que a emoção é eterna.
(não tem princípio
nem se dissolverá no vácuo)
-- Sem darem por isso,
os homens transcendem-se todos os dias.

E. M. de Melo e Castro

DEPOIS DA FEIRA

Vão vagos pela estrada,
Cantando sem razão
A última esp'rança dada
À última ilusão.
Não significam nada.
Mimos e bobos são.

Vão juntos e diversos
Sob um luar de ver,
Em que sonhos imersos
Nem saberão dizer,
E cantam aqueles versos
Que lembram sem querer.

Pajens de um morto mito,
Tão líricos!, tão sós!,
Não têm na voz um grito,
Mal têm a própria voz;
E ignora-os o infinito
Que nos ignora a nós.

Fernando Pessoa

PARA A FEIRA DO LIVRO

Folheada, a folha de um livro retoma
o lânguido e vegetal da folha folha,
e um livro se folheia ou se desfolha
como sob o vento a árvore que o doa;
folheada, a folha de um livro repete
fricativas e labiais de ventos antigos,
e nada finge vento em folha de árvore
melhor do que vento em folha de livro.
Todavia a folha, na árvore do livro,
mais do que imita o vento, profere-o:
a palavra nela urge a voz, que é vento,
ou ventania varrendo o podre a zero.

Silencioso: quer fechado ou aberto,
inclusive o que grita dentro; anónimo:
só expõe o lombo, posto na estante,
que apaga em pardo todos os lombos;
modesto: só se abre se alguém o abre,
e tanto o oposto do quadro na parede,
aberto a vida toda, quanto da música,
viva apenas enquanto voam suas redes.
Mas apesar disso e apesar de paciente
(deixa-se ler onde queiram), severo:
exige que lhe extraiam, o interroguem;
e jamais exala: fechado, mesmo aberto.

João Cabral de Melo Neto

NUM DEPÓSITO

volumes e volumes de jornais encadernados
o tudo que é nada

I LOVE MY JEAN

Anda alegria no vento
sempre que vem do sol-pôr:
lá onde vive a serrana
que me enfeitiçou d'amor...
Lá nos montes, pelas fontes,
pelos pinhais, vai sòzinha...
A cada momento, o vento
me faz lembrar -- Joaninha!

Vejo-a nas florinhas tenras,
que dá graça de as olhar;
ouço-a no trilo das aves
que pões bruxedo no ar:
a papoila que floresce
por entre a messe ou na vinha,
o rouxinol que gorjeia,
só me dizem -- Joaninha!

Robert Burns

(Luís Cardim)

terça-feira, 11 de janeiro de 2011

Ai eu, coitada, como vivo
en gran cuidado por meu amigo
     que ei alongado! Muito me tarda
     o meu amigo na Guarda!

Ai eu, coitada, como vivo
en gran desejo por meu amigo
     que tarda e non vejo! Muito me tarda
     o meu amigo na Guarda!

D. Sancho I

A CARTA

Benvinda a carta que chegando mostra
O seu rosto lindo, todo felicidade,
Veste-a a túnica de que mais se gosta
Ostentando a festa da fidelidade.

Não páro de olhá-la, tão desvanecido,
Minha mão lhe toca com veneração
Dou-lhe o meu afago depois de a ter lido
Ponho nela o beijo do meu coração.

Ibn Habib

(Adalberto Alves)

POEMA

Onde estavas, amor, que te não vi?

Eram cavalos-nevoeiro que montavas
por entre as brisas redondas.
Eram gritos de negro que escondias
nos soluços de sombras.
Eram horizontes que temias
nas noites despidas de sonatas.
Eram marés de turbilhão que repelias
no labirinto do vento.
Eram cortinas de aranha que corrias
no lamento
dos desfiladeiros inconcretos.
Eram cinzentas cruzes que erguias
em suspiros secretos.

E eu sem te ver, amor, e tu tão perto!

Era um mundo-jardim
cigano e aberto
desabrochando em teu regaço de silêncio:
água corrente em desprender de lamas
caudal de labaredas emboscadas,
faróis da noite em chamas,
madrugadas.
Que longínquo país te habitava,
que nevoeiro imenso te escondia,
que febre de queimar te delirava,
que tu estavas tão perto e te não via?

Francisco Delgado

segunda-feira, 10 de janeiro de 2011

MARGENS

1

o silêncio distende-se em
sombra. por toda a casa.
a praia expande constante
o seu murmúrio.
o mar pertence à permanente
paisagem do silêncio

João Candeias

VISÃO

Desconheço a matéria de que és feita,
Que mão febril teu corpo modelou;
Minha alma, ao pressentir-te, insatisfeita,
Como as ondas do mar se alevantou!

Oh! feminil visão clara e perfeita
Que o meu olhar profano dissipou,
Névoa que a luz do alvorecer enfeita
E o hálito da aragem dispersou!...

Na terra, em sonhos ando a procurar-te,
Na terra, pelo céu, e em toda a parte
Para beijar o rasto de teus pés...

Mas quanto mais minha alma te procura,
Mais teu vulto se perde na fundura...
E por ti morro sem saber quem és!

Fausto José

CRIVO

Para a primeira pedra,
Não tive muro.
Minha roseira ficou sem rosas.
Todo o perfume de minha vida
pairou acima da gravidade.

Veio a segunda. Quebrou na vista.
Meu rosto ágil fez-se profundo.
Sorveu-a, lágrima. Ou estilhaçava
o seio imerso, de bolha dupla.
Transfigurei-a. Foi um salpico
de estrela d'água em minha boca.

Mas a terceira caiu-me dentro.
Só tive sangue para ampará-la.
Felizmente voltou ao sopro
da luz divina que eu respirava.

Adelaide Petters Lessa

PORTUGAL

Do mar Atlântico na margem pura
se senta uma matrona desgrenhada
ao pé da serrania coroada
de triste pinheiral. Nos joelhos dura

os cotovelos pousa, e o rosto na mão,
e crava ansiosos olhos de leoa
no sol poente, e o mar em frente entoa
de maravilhas a fatal canção.

Diz-lhe de longes terras e de azares,
enquanto ela os pés banha nas espumas,
sonhando absorta o trágico império

que se abismou nos tenebrosos mares,
e fita que entre as agoureiras brumas
se alça D. Sebastião, rei do mistério.

Miguel de Unamuno

(Jorge de Sena)

domingo, 9 de janeiro de 2011

Houve tempo em que teve trem e boleeiro
e foi a Sevilha passear o corpo
coberta de mantilha.
Tudo se sabe nas aldeias:
quando um cão ladra ao amante furtivo
ou uma galinha aparece morta.
E tudo se consome.
A princípio, o papel escondido no colchão,
depois as arrecadas, os anéis floridos
e por fim as terras.
Começou por trocar os números
e depois as noites.
Jogava a vida aos dados com os dedos
num copo de aguardente.
Tinha um rosto de maga, passou a ser bruxa.
E as outras persignavam-se e batiam-lhe
com a porta.
Agora o seu trabalho era apanhar a bosta
que arrecadava em em sacas e cestos de vindima.
Um dia eu e mais outras crianças
ao chapinhar na água dum açude
descobrimo-la morta,
inchada e em descanso.
Mas o padre não quis fazer o seu enterro.

Armando Silva Carvalho
Na retina, no córtex, madrugada
finalmente telex já desponta:
começa mais um livro de mão dada
ao Invisível, mais um susto cava
abismo denso ao pé da letra contra
a expectativa da serpente fascinada:
aparição de Deus à tua sombra

António Barahona

sábado, 8 de janeiro de 2011

NEVE

Arde a neve na cara e nas mãos e à serra
trepo para então me confundir. Queima
a intensidade do gelo. Ferem e cortam
os cristais da neve. Quando gelam
ribeiras e os tanques ficam pedra,
os canos rebentam certas vezes: explosão
de gelo; incêndios de neve.
Arde a neve na saudade de a não ter
de o não sentir. De novo à neve
volto e me perco nos cerros,
quando a claridade cega
de tanta brancura. Impossível
serenidade: por ti espero.

Eduardo Guerra Carneiro

Horizonte

autor: Alberto de Lacerda (Ilha de Moçambique, 20.IX.1928 - Londres, 26.VIII.2007)
título: Horizonte
colecção: «Biblioteca de Autores Portugueses» 
editora: Imprensa Nacional-Casa da Moeda
local: Lisboa
ano: 2001
págs.: 127
dimensões: 24x15x1 cm. (brochado)
impressão: Oficinas Gráficas da IN-CM
capa: desenho de Arpad Szenes
tiragem: 800

sexta-feira, 7 de janeiro de 2011

LUGAR DO SOL

Há um lugar na mesa onde a luz
Abdicou do seu ofício.
Já foi o sol
e do trigo esse lugar -- agora
por mais que escutes, não voltarás
a ouvir a voz de quem,
há muitos anos, era a delicadeza
da terra a falar: «Não sujes
a toalha»; «Não comes a maçã?»
Também já não há quem se debruce
Na janela para sentir
O corpo atravessado pela manhã.
Talvez só um ou outro verso
consiga juntar no seu ritmo
luz, voz, maçã.

Eugénio de Andrade

LA CIGALE

L'air est si chaud que la cigale,
La pauvre cigale frugale
Qui se régale des chansons,
Ne fait plus entendre les sons
De sa chansonette inégale;
Et, rêvant qu'elle agite encor
Ses petits tambourins de fée,
Sur l'écorce des pins, chaufée,
Où pleure une résine d'or,
Ivre de soleil, elle dort.

Paul Arène

AS PÁGINAS DOS ROMANCES

Arriscávamos o salto mortal
voando com uma venda nos olhos
dos andaimes para o monte de areia da póvoa.
As obras da escola eram a nossa perdição:

as fasquias de alumínio, o ondulado de luzalite
das coberturas, o entulho, o ressalto
exacto do encaixe das tijoleiras, o pó quase de talco
dos sacos de cimento da cimpor. Nos sábados

à tarde erguíamos muros no combarro com tijolo
de quinze, marcávamos com estacas de pinho
o perímetro exterior do pavilhão, ligávamos a betoneira
a olhar em sobressalto os movimentos oscilatórios

do balde. Penso que era assim. Às vezes
pergunto o que fica dos livros, o que pertence
e não pertence à literatura, o que acrescentaram
à nossa vida as páginas dos romances.

José Carlos Barros 

quinta-feira, 6 de janeiro de 2011

NÔS SINA

Distino di nôs caboverdiano
É cumâ tchota na sê ninho.
Necê, criâ, sarrâ pena
Dipôs buâ pa mundo londge.

Nhor Dês qui dano, no recebê
És sina di fidjo-di-terra
Largâ família pa djobê bida
Dipôs voltâ pa morrê la.

Quando pequeno, 'n creba tanto
Crecê dipressa pa saltâ mar.
Agô mi londge co és sodade
'N ta dâ tudo pam ser minino.

Quel estória di embarcadio
Era fantasia e nada más.
Pamó el dixâ di narrâ
Nôs bida na terra stranho.

Artur Vieira

VISÃO

Vi-te passar, longe de mim, distante,
Como uma estátua de ébano ambulante;
Ias de luto, doce tutinegra,
E o teu aspecto pesaroso e triste
Prendeu minha alma, sedutora negra;
Depois, cativa de invisível laço,
(O teu encanto, a que ninguém resiste)
Foi-te seguindo o pequenino passo
Até que o vulto gracioso e lindo
Desapareceu longe de mim, distante,
Como uma estátua de ébano ambulante.

Caetano da Costa Alegre

A BILHA

Bilha: forma que se casa
Com o meu coração,
A dar-me, simples, a asa,
Como um menino a mão!

Bilha que serve, na mesa,
E espera, sobre a toalha,
Que a gente sinta a beleza
De quem trabalha...

Bilha: donzela que dançou,
Dançou tanto de roda,
E na "pose" que me agrada,
De repente ficou!

Alexandre O'Neill
Homem é filho do nada
E do abandono a presa
Seu coração folha seca
Pelos ventos fustigada.

Ibn Dawud al-Marwani

(Adalberto Alves)

quarta-feira, 5 de janeiro de 2011

ANDANTE

Além, ao largo, ligeiro...
Volta o navio.

Traz muitas léguas andadas,
Traz muitas tábuas quebradas
E muitas cordas partidas.
Certo dia perdeu vidas
Além, ao largo, ligeiro...
Vida dum raio!
Oh! fumos de marinheiro,
Hálitos rudes da onda,
Baloiço de Portugal!
Meu santo!
É ele o navio
Além, ao largo, ligeiro...

Eu digo
Não sei porquê
Que se parece comigo:
Noto-lhe as velas doiradas
Já no fio...
E rio...
Pois já se vê.
No entanto,
Volta e não volta
Baloiça o navio...
Além, ao largo, ligeiro...

1927
Gil Vaz
África é fruto sazonado.
Para o colher é preciso
ter vivido em sua carne,
sangrado em seu espinho,
auscultado a sua polpa.
Depois, comê-lo com humildade:
Guardar religiosamente o seu caroço.

Merecer a tatuagem:
beber nos rios do seu Povo,
habitar nas cubatas de barro e de capim,
guardar suas mulheres de lua e noite
e os filhos do amor no coração.

Ter África no sangue
é compreender a voz dos quimbos;
senti-la como reza em noites de kazumbi,
noites de óbito e batuque nas sanzalas.

É velar o morto com o grito de guerra;
pronunciar o desafio à noite que desaba
enfrentar o dia da boémia no mato.
Ser deste céu
é ter o vírus tropical no peito;
fumar o fumo entorpecente da liamba,
temperar a voz no travo do marufo.

É enterrar os pés na terra virgem
até sentir as veias prenhes de virtude.

Cândido da Velha
Quase todo o sofrimento é preferível à abjecta humilhação.

CONTRA CÉLIA

Aos Partos, aos Germanos, dás-te, Célia, aos Dácios.
Nem aos de Capadócia ou de Cilícia negas
O que buscar-te vem do Egipto os cobridores,
Ou, pelo Mar Vermelho, os negros indianos
As ancas não recuas ante o circunciso
Hebreu, e mesmo o Alano, em seu cavalo sármata
Te pára à porta. Oh, como sendo tu Romana,
Só de Romanos paus te não agradas nunca?

Marcial


(Jorge de Sena)
Uma nota solta
De não sei que música
Vagueia flor em flor
Como abelha de som.

Não lhe sei a cor,
Não lhe sei o tom,
-- Deve ser esquiva e nívea
E faltar com certeza

Ao compositor e poeta
Que sonhou a perfeição
E a beleza
Sem mácula, que lhe adoece
De a buscar o coração.

Ah, se ela quisesse
Aninhar-se na minha alma!...

António de Navarro 

terça-feira, 4 de janeiro de 2011

MONÓLOGO DA OLIVEIRA

Sobrevivo com uma pinga de água.
Um olhar de quem passa dá e sobra

muitos meses, um sorriso me basta
para reverdecer por longos anos

-- a minha copa foi feita de sonho
e de coisas exactas e tão negras

como pequeno bago de azeitona.
Sinais minúsculos e trespassados

de luz na cerração densa da morte.
Vi romanos, e moiros, e judeus:

o par de mansos olhos do Cordeiro
no meu tronco perdura até ao fim.

José António Almeida

MONK IS GONE

And now, Thelonious?

Um nome nas discografias nacionais
Uma referência em programas radiofónicos e televisivos regulares

Uma nota snob em discoteca de curiosos
Um espontâneo esquecimento
Daqueles que nunca te amaram

Mas
Sempre no cerne da memória
Mesmo daqueles que se exasperavam com o teu TEMPO

E na daqueles
Que com sofreguidão não simulada
Sorviam o licor agridoce
Que espargias com a polpa dos teus dedos

João Henrique de Oliveira Barros

PÓLIS II

a mão rápida do pivete agarrou a bolsa da velha
a velha teve um troço & caiu babando na rua
rápido o pivete atravessou a Avenida Rio Branco
duas horas depois o rabecão veio buscar a velha
o sol brilhava insistentemente sobre a metrópolis...

Adauto de Souza Santos
Pode lá ser! Há três dias
que me abrasa esta paixão!
E vai durar outros tantos,
sendo a maré de feição...

Bem pode o Tempo voar
que não descobre um amante,
na redondeza da terra,
tão afincado e constante!

E nem mereço louvor:
como a ideia me arrepela!...
Pois onde iam já meus olhos
se outra fora que não ela?

Se outra fora que não ela,
com seu palminho de rosto,
já doze dúzias -- nem menos! --
tinham tomado o seu posto...

John Suckling

(Luís Cardim)
Nunca evitei o desafio
Na frente de quem seja campeão
Mas hoje só tenho por contrário
A beleza que me mata com requebros
Com beijos doces e abraços,
Que são a sua saudação,
E cadeias
Que me apertam como laços.
Minha vida é dada às armas
E a couraça eu só tiro
Com o peito a palpitar
Se a beleza oculta em véus
Eu pressinto em seu arfar.

Ibn Darraj al-Qastalli

(Adalberto Alves)

segunda-feira, 3 de janeiro de 2011

PÁTRIA MINHA

XVII

Dinamene a chilrear contra o crepúsculo
o cabelo dinamiza oh quão semelhante ao teu
é o meu céu, nadador do mar de breu, músculo
no braço erguido com o livro que é meu enquanto
eu for vivo em rosácea e em suspenso ilimitado

Dinamene raça de rapariga nos dias da raça do Poeta
arraçado de desgraça, Senhor Lusitano da Graça
na minha hagiografia herética onde o santo aventureiro
navega no poema à trinca com cheiro a trevas

Dinamene digo que me levas contigo : ressuscitada cuidas
do Poeta enquanto for vivo o português e as caravelas

António Barahona

QUATRO MESES E UMA VIAGEM

1

                    S. João de Loure -- pequeno monólogo sobre a ruína

em fevereiro corre um rio

é um rio menino
o desenho na argila
ou antes
o mês na boca da noite
uma lâmina sobre o país

em fevereiro corre um rio

digo: «é o receio da pedra
o sono viscoso da vinha
na encosta a dor da faca»

em fevereiro corre um rio

digo: «é a saliva da guerra
a memória inquieta a palavra
de chumbo a explosão da casa»

António Manuel Lopes Dias
Ó mais doce que a vida, ó praia! Ó mar!
Feliz, que enfim à minha terra volto!
Outrora aqui, nadando, eu afagava
Co' alternas mãos as Náiades tranquilas.
Eis a lagoa onde se curvam as águas.
Eis-me no porto em que o desejo acaba.
Vivi: que o Fado infausto jamais rouba
O que dado nos foi num'hora antiga.

Petrónio

(Jorge de Sena)

PALAVRAS DUM AVESTRUZ TODO GRIS

Arrancaram-me as penas
E eu sofro sem dizer nada:
-- Sou ave
Bem educada.

E, se quisesse,
Podia
Morder-lhes as mãos morenas
A esses
Que sem piedade
Me roubaram estas penas que me cobrem;

E, no entanto,
Sem o mais breve gemido,
O meu corpo
Vai ficando
Desguarnecido.

E elas,
Aquelas
Que se enfeitam, doidamente,
Com estas penas formosas
-- Que são minhas! --
Passam por mim, desdenhosas,
Em gargalhadas mesquinhas.

Sim, eu sofro sem dizer nada:
-- Sou ave
Bem educada.

António Botto

domingo, 2 de janeiro de 2011

MELANCOLIA

não tentes os meus cuidados. procura nestes gestos
o obscuro caudal das renúncias. sabes, como eu sei
os limites de sombra desta casa.
sobre a mesa dormem pêssegos incendiados
e um vago olor a ternura desvanece-se sob o coração.
ficaram longe as marés do nosso olhar
enquanto cresciam as arribas da melancolia.
que importam as planícies movediças da memória
o alvoroço dos olhos com que nos descobrimos
e os sóis com que nos cegámos de aventuras?
que importa agora a água de tanta sede comum
o frescor da efémera alegria?
não me procures na hora da deserção, enquanto
vou roubar ao tempo os derradeiros portos
últimos passos, uma brisa de gaivotas e de névoa

João Candeias

E TODOS OS PÁSSAROS

     Eles não tinham escrito os poemas que eu esperava escrever. Mas os livros deles, quem sabe se não faziam nas montras das livrarias o eco da minha própria voz? Assim iam e eram os tempos: fazer-se ouvir dava-nos por momentos, e às vezes durante a vida inteira,  a ilusão de existir, de ter desempenhado um papel e ter encontrado a verdade, um destino. O país era o modelo perfeito e surpreendente dos vícios da raça: ambição, heroísmo, despique. Uma ausência dolorosa e mesquinha por detrás das palavras, e todos os pássaros voavam apenas para serem vistos a cortar com agilidade o azul do céu. Como eu tinha horror a vir a ser pó nesta terra calcinada pelo sol, e lamentava ter nascido longe da modéstia de um destino tranquilo, noutro tempo, à sombra, no meio de outros homens.

João Camilo

sábado, 1 de janeiro de 2011

Ó túmulo, ó vagas, chamava afastada
do mar e da morte a minha frase.
Comparei-a a mais uma voz
no deserto, que clamava neguei-lhe:
estava somente na margem
da distância, denominava de longe
onda que me devora
o nome que me esvai, chamei gesta
ao gemido, dei então ao copista
a cor da opala do mar,
morri em efígie na terra, ao mar dei
a loquacidade de quem morre.

Fiama Hasse Pais Brandão

O Portão das Colinas do Nada

autor: Fernando Cabrita (Olhão, 10.XII.1954)
título: O Portão das Colinas do Nada
subtítulo: (Poemas da Cidade de Londres)
edição: Câmara Municipal de Sintra
local: Sintra
ano: 1988
págs.: 69
dimensões: 21x14,8x0,4 cm. (brochado)
impressão: Gráfica Europam, Mem Martins
capa: Carlos António de Oliveira e Sousa
obs.: Prémio Oliva Guerra / 1987

NA SUAVE TREPIDAÇÃO DAS RUAS

Na suave trepidação das ruas
mansamente tocado pelo vento de Janeiro
penso que tudo vale mais do que qualquer palavra.
Vejo as portas, as árvores
os pequenos pubs londrinos
com os seus ocupantes de silêncio
que têm nos olhos miríades de fumo e de cerveja
e entendo então que nada há mais
cruel que as palavras ditas e ditas e ditas,
palavras que escondem a grande noite
ou o silencioso sol do meio-dia,
que mal desenham a crispação das tardes
e o absoluto clamor dos parques e dos riachos.
Deixo então que se afastem de mim
os pensamentos e os segredos
e na suave trepidação das ruas,
mansamente tocado pelo vento de Janeiro,
vou com a inocência e a liberdade de um animal
bravio e jovem
olhando as portas e as casas,
as escadas e as árvores,
sabendo apenas que cada passo é
a ponte entre o futuro e o passado,
na suave trepidação das ruas.

Fernando Cabrita