quinta-feira, 30 de setembro de 2010

Eles lá vão, dando à noite brasa,
Das vestes do sono despojados.

Com húmidas penas e penugem de asa
Corvos da treva os têm abrigados.

Do nocturno ventre ao dorso do dia
Ascendem possuídos de tenaz alento.

Que têm para o medo e para a noite fria?
Couraças de treva, garanhões de vento.

Se perdidos fossem na noite cerrada
O fulgor de 'Umar mostraria a estrada.

Ibn 'Abdun

(Adalberto Alves)
Sete anos de pastor Jacob servia
Labão, pai de Raquel, serrana bela;
Mas não servia ao pai, servia a ela,
E a ela só por prémio pretendia.

Os dias, na esperança de um só dia,
Passava, contentando-se com vê-la;
Porém o pai, usando de cautela,
Em lugar de Raquel lhe dava Lia.

Vendo o triste pastor que com enganos
Lhe fora assim negada a sua pastora,
Como se a não tivera merecida,

Começa de servir outros sete anos,
dizendo: Mais servira, se não fora
para tão longo amor tão curta a vida!

Camões
a meio da noite disse, romperam-se as águas,
e ele, sem saber porquê, acendeu a luz,
procurou os óculos em cima da mesa-de-cabeceira.
uma luzinha reflectia nos olhos dela,
percebia-se como estava assustada.
é agora, pensou. levantou-se da cama
e foi ser pai pela vida fora.

Luís Filipe Cristóvão

ENQUANTO TARDA O INCÊNDIO

no inverno em séculos passados
falava-se de animais

junto à lareira comentavam os mais velhos
paisagens de sol
e o vento como sendo a distância
entre a noite e o bosque

nas manhãs frias olhava-se
com calma
a neve

à volta dos sobreiros as crianças brincavam
agasalhadas
de azul

hoje, enquanto o incêndio tarda
vou sendo feliz
entre os sobreiros

Daniel Maia-Pinto Rodrigues

DIÁRIO DE BORDO

Cá estou eu a julgar que vou remando...

Cá vai Deus a remar
e eu a ser um remo com que Deus
rasga caminhos pelo Mar...

Sebastião da Gama

A UMA QUALQUER

Não foi por amor ao dinheiro
nem foi por jóias
nem sequer por um vestido de seda.

Nem foi também por teres casa
móveis decentes, melhor vida.
Não, não foi por nada disto.

Tu, só tu sabes por que sorriste
e o teu coração bateu um pouco mais forte
quando o barco americano entrou no porto...

Yolanda Morazzo

quarta-feira, 29 de setembro de 2010

VARIAÇÃO SOBRE ROSAS

Como as rosas selvagens, que nascem
em qualquer canto, o amor também pode nascer
de onde menos esperamos. O seu campo
é infinito: alma e corpo. E, para além deles,
o mundo das sensações, onde se entra sem
bater à porta, como se esta porta estivesse sempre
aberta para quem quiser entrar.

Tu, que me ensinas o que é o
amor, colheste essas rosas selvagens: a sua
púrpura brilha no teu rosto. O seu perfume
corre-te pelo peito, derrama-se no estuário
do ventre, sobe até aos cabelos que se soltam
por entre a brisa dos murmúrios. Roubo aos teus
lábios as suas pétalas.

E se essas rosas não murcham, com
o tempo, é porque o amor as alimenta.

Nuno Júdice
quando chegou ao Inferno foi enviado de imediato para a sala Jazz
outro tenor jazz-saxofonista
o som que vinha da Sala era o melhor
uma big band
entrou e sentou-se entre Hawkins e Coltrane
maestro arranjador Gil Evans
só extra ordinários
Eldridge, Dizzy, Armstrong, Bowie, Miley, Baker, às trompetes,
trombones com trombonistas, também eles, de excepção,
uma secção rítmica do outro mundo,
mundo onde estavam,
Art Blakey, Paul Chambers, Bill Evans,
tocaram o resto da tarde sem parar,
a noite toda,
ao fim da manhã seguinte
segredou ele para Trane
'quando é o intervalo? para descansarmos...'
Trane contente: 'Nunca!'

José Duarte

NÃO OLHE PARA TRÁS

Caiu no buraco
saiu de quatro
se arrastou um pouco
levantou dum pulo
disparou dez passos
riu para a galeria
caiu de quatro, como
um cavalo machucado
como um filho da puta
como água usada.

Roberto Schwarz

INSTANTE

A cena é muda e breve:
Num lameiro,
Um cordeiro
A pastar ao de leve.

Embevecida,
A mãe ovelha deixa de remoer
E a vida
Pára também, a ver.

Miguel Torga
Eu poderia dar o passo
que o súbito ar
separa

e arder
no círculo imenso da água.

Eu poderia
dar à voz
o uso próprio de um verso,

partilhar o que me falta
no país difícil
de um adeus.

Fernando Jorge Fabião
um relâmpago assombra
esta nudez

entra pelo sexo

calcina
as espirais da melancolia

e eu ardo (ardo!)
em lavaredas altas

resina indefesa

Fernando Assis Pacheco

terça-feira, 28 de setembro de 2010

cosmos,
de que ignoto ponto teu me vem
este desejo permanente de reescrever
o mesmo e único poema,
que siderais geometrias se intersectam em mim,
que efémeras luminescências são estas
que atravessam o meu corpo, e de novo me deixam, cosmos,
frio em frente ao silêncio do teu hálito

Vítor Oliveira Jorge

Livro de Versos

autor: Álvaro de Campos (Fernando Pessoa, Lisboa, 1888-1935)
título: Livro de Versos
edição: Teresa Rita Lopes (introdução, transcrição, organização e notas)
edição: 2.ª (1.ª, 1993)
local: Lisboa
editora: Referência / Editorial Estampa
ano: 1994
capa: José Antunes, sobre desenho de Almada Negreiros e foto de Pessoa
n.º de págs.: 436
dimensões: 23,6x16,5x3,4 cm. (cartonado)
composição: Maria Esther-Gabinete de Fotocomposição
impressão: Lello &; Irmão
observações: edição crítica

PRELÚDIO

Pela estrada desce a noite
Mãe-Negra, desce com ela...

Nem buganvílias vermelhas,
nem vestidinhos de folhos,
nem brincadeiras de guisos,
nas suas mãos apertadas.
Só duas lágrimas grossas,
em duas faces cansadas.

Mãe-Negra tem voz de vento,
voz de silêncio batendo
nas folhas do cajueiro...

Tem voz de noite, descendo,
de mansinho, pela estrada...
Que é feito desses meninos
que gostava de embalar?...

Que é feito desses meninos
que ela ajudou a criar?...
Quem houve agora as histórias
que costumava contar?...

Mãe-Negra não sabe nada...

Mas ai de quem sabe tudo,
como eu sei tudo
Mãe-Negra!...

Os teus meninos cresceram,
e esqueceram as histórias
que costumavas contar...

Muitos partiram p'ra longe,
quem sabe se hão-de voltar!...

Só tu ficaste esperando,
mãos cruzadas no regaço,
bem quieta bem calada.

É tua a voz deste vento,
desta saudade descendo,
de mansinho pela estrada...

Lisboa, 1951

Alda Lara
Como está sereno o Céu,
como sobe mansamente
a lua resplandecente,
e esclarece este jardim!

Os ventos adormeceram;
das frescas águas do rio
interrompe o murmúrio
de longe o som de um clarim.

Acordam minhas ideias,
que abrangem a Natureza,
e esta nocturna beleza
vem meu estro incendiar.

Mas se à lira lanço a mão,
apagadas esperanças
me apontam cruéis lembranças,
e choro em vez de cantar.

Marquesa de Alorna

FÁBULA

que não sabia, noite, o cerne das palavras
rumo ao tempo, dia, quando o que fomos
era um campo resistindo, noite, ao avanço
da luz pelo ombro do dia, perguntaste, noite,
Porque é que não pode ser sempre assim,
um dia, uma noite, e haver alguma verdade
nisto, Como por exemplo o quê, perguntei-te,
Como por exemplo nós, respondeu alguém,
mas então a noite já se misturava com o dia
e o universo amanhecia num leve tom diferente

Rui Costa

BÉTULA

Serás a humílima árvore.
A árvore a tinta
da china desenhada.
A árvore de papel.
Serás a bétula
abstracta e concisa.
A bétula do Nepal.
A que não existe
senão na linguagem.
Serás a que sonha os dias,
as noites, as lembranças.
A que protege
da ira inclemente.
A que protege
do sopro do tempo.
A da sombra feliz.

Luís Quintais

segunda-feira, 27 de setembro de 2010

Penso na catedral de Évora,
nas muralhas dos arredores de longe,
no forte filipino de Paimogo.
Trago suas verdades no meu corpo.

Reconheço o próprio caminho
destas coisas, seus antigos
autores voltam para deus
um novo rosto.

Os poetas
talvez saibam o local das
suas pedras, porque

é da palavra errante que
devemos falar, da distância
das coisas ou da cor do mar.

João Miguel Fernandes Jorge

OUTRORA

Outrora, num tempo distante,
fui eu tão feliz, não agora:
mas quanta doçura no instante
por tanta doçura de outrora!

Esse ano! por anos que após
fugiram e que fugirão,
não podes, ideia, não podes
levá-lo contigo, na mão...

Um dia ele foi... só uma essência
sem retorno e sem outro igual.
E a vida foi vã aparência
antes e após um dia tal.

Um instante... ai tão passageiro,
que menos passou que se diz;
mas tão belo assim, mas tão belo,
e eu nele tão feliz, tão feliz!

Giovanni Pascoli

(Jorge de Sena)

RELÍQUIA

Era de minha mãe: é um pobre chale
Que tem p'ra mim uma carícia de asa.
Vou-lhe pedir ainda que me fale
Da que ele agasalhou em nossa casa.

Na sua trama já puída e lassa
Deixo os meus dedos p'ra senti-la ainda;
E Ela vem, é ela que me abraça,
Fala de coisas que a saudade alinda.

É a minha mãe, mais perto, mais pertinho,
Que eu sinto quando toco o velho chale
Que guarda um não sei quê do seu carinho.

E quando a vida mais me dói, no escuro,
Sinto ao tocá-lo como alguém que embale
E beije a minha sede de amor puro.

António Patrício

DA ROSA

A rosa
não procurava a aurora:
quase eterna em seu ramo,
procurava outra coisa.

A rosa
não procurava ciência ou sombra:
confim de carne e sonho,
procurava outra coisa.

A rosa
não procurava a rosa:
imóvel pelo céu
procurava outra coisa.

Federico García Lorca

(José Bento)
lua cor de mel --
a noite entra no meu quarto
sem pedir licença

Leonilda Cavaco Alfarrobinha

O MEU MARAVILHOSO JARDIM NATURAL

Rododendros. Buganvílias. Carvalhos. Choupos. Salgueiros. Nogueiras. Oliveiras. Sequóias. Pinheiros. Palmeiras. Aloendros. Cerejeiras. Acácias... De tudo isto haverá no meu maravilhoso jardim natural... Macieiras. Castanheiros. Loureiros. Pinheiros. Abetos. Tílias. Azinheiras. Amendoeiras. Áceres. Amoreiras... De tudo isto haverá no meu maravilhoso jardim natural.... Romanzeiras. Piteiras. Sobreiros. Sarças. Roseiras. Sabugueiros. Damasqueiros. Zimbros. Laranjeiras. Pessegueiros. Tamarindos. Tamareiras. Abrunheiras... De tudo isto haverá no meu maravilhoso jardim natural... Aveleiras. Alfenas. Ulmeiros. Cedros do Japão. Cedros. Medronheiros... De tudo isto e muito mais haverá no meu maravilhoso jardim natural!

 Mário Máximo

domingo, 26 de setembro de 2010

REMOINHO

Nos ares nada está quedo,
Faz vento que mete medo,
Turva poeira arrepia.

Uiva o Diabo, assobia...

E o vento as coisas embrulha
Que nem palha na debulha.

Folhas, ao sopro daninho,
Gaivotam reviravoltas
Que nem velas de moinho.

Andam Diabos às soltas...

Ramos cá, ramos além,
Sofrem tratos de polé,
E mal um homem se tem
Firme e senhor de seu pé.

-- Ó passarinho, não fujas!
-- Poisa nos ramos mais altos!?
Até no bico das corujas
A Natureza dá saltos.

Afonso Duarte

[fragmento]

1. -- É um jardim de entre os jardins que está cheio de tristeza como se estivesse coberto de censuras.

2. -- As nossas entranhas desgrarram-se dentro dele como se as suas árvores fossem um exército emplumado.

3. -- A aurora já estendeu o seu manto de luz sobre as pérolas dos canteiros floridos.

4. -- É como se o orvalho tivesse espargido sobre ele limalhas de prata, que tivesse limado no ar.

5. -- Como se o seu tanque fosse o espelho de uma jovem, brunido, ou um pavimento alargado de cristal.

6. -- Quando cantam os pássaros sobre ele, parecem os cantores Ishãq, Ziryãb e Mu'bad.


Ibn Muqãna de Alcabideche

(María Jesús Rubiera Mata, do árabe;
Pepita Tristão, do castelhano)
Ao lar, Vésper, tu fazes que regressem todos
Que a radiante Aurora aos longes conduziu:
Ovelhas ao redil, as cabras aos apriscos,
E os filhos para o pé de sua mãe.

Safo

(Joge de Sena)

Primavera Autónoma das Estradas

autor: Mário Cesariny
título: Primavera Autónoma das Estradas
editora: Assírio & Alvim
local: Lisboa
ano: 1980
págs.: 222
dimensões: 19,9x13,2x1,7 (brochado)
capa: Manuel Rosa
impressão: Beira Douro (Lisboa)
tiragem: 3000

sábado, 25 de setembro de 2010

EXÍLIO

O branco é gesso, é cal para as ossadas,
E eu não lhe encontro asseio de alegria;
Caiei por isso a rosa-alexandria
Minhas quatro paredes exiladas.

Afonso Duarte

CLAIR DE LUNE

Per amica silentia lunae
VIRGILE.

La lune était sereine et jouait sur les flots. --
La fenêtre enfin libre est ouverte à la brise,
La sultane regarde, et la mer qui se brise,
Là-bas, d'un flot d'argent brode les noirs ilôts.

De ses doigts en vibrant s'échappe la guitarre.
Elle écoute... Un bruit sourd frappe les sourds échos.
Est-se un lourd vaisseau turc qui vient des eaux de Cos,
Battant l'archipel grec de rame tartare?

Sont-ce des cormorans qui plongent tour à tour,
Et coupent l'eau, qui roule en perles sur leur aile?
Est-ce un djinn qui là-haut siffle d'une voix grêle,
Et jette dans la mer les créneaux de la tour?

Qui trouble ainsi les flots près du serail des femmes? --
Ni le noir cormoran, sur la vague bercé,
Ni les pierres du mur, ni le bruit cadencé
Du lourd vaisseau, rampant sur l'onde avec des rames.

Ce sont des sacs pesants, d'où partent les sanglots.
On verrait, en sondant la mer qui les promène,
Se mouvoir dans leurs flancs comme une forme humaine... --
La lune était sereine et jouait sur les flots.

2 septembre 1828.

Victor Hugo
Tocaram-me na cabeça com um dedo terrificamente
doce, Sopraram-me,
Eu era límpido pela boca dentro: límpido
engolfamento,
O sorvo do coração a cara
devorada,
O sangue nos lençóis tremia ainda:
metia medo,
Se um cometa pudesse ser chamado como um animal:
ou uma braçada de perfume
tão agudo
que entrasse pela carne: se fizesse unânime
na carne
como um clarão,
Um anel vivo num dedo que vai morrer:
tocando ainda
a cabeça o rítmico pavor
do nome,
O leite circulava dentro delas,
É assim que as mães se alumiam
e trazem para si o espaço todo
como
se dançassem,
São em si mesmas uma lenta
matéria ordenada, Ou uma
crispação: uma ressaca,
E quando me tocaram na cabeça com um dedo baptismal:
eu já tinha uma ferida
um nome,
E o meu nome mantinha as coisas do mundo
todas
levantadas
Herberto Helder

sexta-feira, 24 de setembro de 2010

CATIVO O OUVIDO VEM

Cativo o ouvido vem
buscando a união
no exílio do inteligível.

Bruscamente
eis a separação conquistada
o acontecer exacto
de pensar o não pensar
que o apetite do divino
trabalha
amplo e profundo.

O pensamento cria
e ultrapassa
o seu próprio abismo
e o desejo de ouvir
inventa
surdamente
a sua própria melodia.

Ana Hatherly

PONY EXPRESS

Se as paixões
não são correspondidas
a culpa pode muito bem
ser dos Correios

Dick Hard
Alma minha gentil, que te partiste
Tão cedo desta vida, descontente,
Repousa lá no Céu eternamente
E viva eu cá na terra sempre triste.

Se lá no assento etéreo, onde subiste,
Memória desta vida se consente,
Não te esqueças daquele amor ardente
Que já nos meus olhos tão puro viste.

E se vires que pode merecer-te
Alguma cousa a dor que me ficou
Da mágoa, sem remédio, de perder-te,

Roga a Deus, que teus anos encurtou,
Que tão cedo de cá me leve a ver-te
Quão cedo de meus olhos te levou.

Camões

A MEIO DO CAMINHO

Fico entre o céu e a terra,
Choro só para dentro.
Sou como a árvore nua
que ao alto os ramos indica:
ergue as asas, mas não voa,
têm raízes, mas não desce.

Alberto de Lacerda

FUGA

Canto a noite dos clandestinos, os que se
encostam aos muros e falam com o vento,
os que se vestem de negro, para se confundirem
com a noite, os que se deixam perseguir pela
sua sombra, e a expulsam de trás de si, quando
alguém se aproxima. Acompanho os seus gestos lentos,
saboreando o instante do próximo
encontro; e ouço as suas palavras na voz baixa
do cais, confundindo-se com
o ruído da água contra a pedra. Entro com eles
na barca da solidão, falando com o vazio
como se a única resposta fosse
a que nasce do musgo das caves. Afasto
de ao pé deles os cães que o seguem;
e vejo-os desaparecerem, mais
e mais longe, onde o futuro se dissipa
sob a névoa cinzenta das madrugadas
que nunca chegaram.

Nuno Júdice

DO PESADELO I

De quinta para quinta,
os cães cantam
a madrugada de glória,
em que o Sol negro
floresce de nuvens negras.
Indo por atalhos sem sombra,
ouvi-os entoar
o canto da insónia.

Fiama Hasse Pais Brandão

CIDADANIA

Buquê de ruídos úteis
o dia. O tom mais púrpura
do avião sobressai
locomovida rosa pública.

Entre os edifícios a acácia
de antigamente ainda ousa
trazer ao cimo a folhagem
sua dor de apertada coisa.

Um solo de saxofone excresce
mensagem que a morte adia
aflito pássaro que enrouquece
a garganta da telefonia.

Em cada bolso do cimento
um lenta aranha de gás
manipula o dividendo
de um suicídio lilás.

Natália Correia

quinta-feira, 23 de setembro de 2010

REGRESSO

Regresso para mim
e de mim falo
e desdigo de mim
em reencontro

os pontos
um por um:

o sol
os braços

a boca
o sabor

ou os meus ombros

Trago para fora
o que é secreto
vantagem de saudade
o que é segredo

Retorno para mim
e em mim toda
desencontro já o meu regresso

Maria Teresa Horta

A SEMANA SANTA

I

Tíbio o sol entre as nuvens do ocidente,
Já lá se inclina ao mar. Grave e solene
Vai a hora da tarde! O oeste passa
Mudo nos troncos da alameda antiga,
Que à voz da Primavera os gomos brota:
O oeste passa mudo, e cruza o átrio
Pontiagudo do templo, edificado
Por mãos duras de avós, em monumento
De uma herança de fé que nos legaram,
A nós seus netos, homens de alto esforço,
Que nos rimos da herança, e que insultamos
A Cruz e o templo e a crença de outras eras;
Nós, homens fortes, servos de tiranos,
Que sabemos tão bem rojar seus ferros
Sem nos queixar, menosprezando a Pátria
E a liberdade, e o combater por ela.
Eu não! -- eu rujo escravo; eu creio e espero
No Deus das almas generosas, puras,
E os déspotas maldigo. Entendimento
Bronco, lançado em século fundido
Na servidão de gozo ataviada,
Creio que Deus é Deus e os homens livres!

Alexandre Herculano

AQUELA TARDE

Disseram-me que ele morrera na véspera.
Fora preso, torturado. Morreu no Hospital do Exército.
O enterro seria naquela tarde.
(Um padre escolheu um lugar de tribuno.
Parecia que ia falar. Não falou.
A mãe e a irmã choravam.)

Francisco Alvim

CANÇÃO DE LEONORETA

Borboleta, borboleta,
flor do ar,
onde vais, que me não levas?
Onde vais tu, Leonoreta?

Vou ao rio, e tenho pressa,
não te ponhas no caminho.
Vou ver o jacarandá,
que já deve estar florido.

Leonoreta, Leonoreta,
que me não levas contigo.

Eugénio de Andrade
Ela vem
quando eu cerro as pálpebras pesadas
e apoio a cabeça na escuridão do desejado sono
Vem muito branca muito lenta
Fita-me calada
e muito direita
começa desatando seus cabelos negros
Abre a boca num riso que eu não oiço
deixa cair o seu vestido todo
E enquanto eu olho fascinada o seu ventre coroado de negro
seis homens pequeninos e muito encarquilhados
agarram suas seis tetas
e sugam-lhe os bicos
rosados e rijos de prazer

Ana Hatherly

KINAXIXI

Gostava de estar sentado
num banco do Kinaxixi
às seis horas duma tarde muito quente
e ficar...

Alguém viria
talvez
sentar-se ao meu lado

E veria as faces negras da gente
a subir a calçada
vagarosamente
exprimindo ausência no quimbundo mestiço
das conversas

Veria os passos fatigados
dos servos dos pais também servos
buscando aqui amor ali glória
além de uma embriaguês em cada álcool

Nem felicidade nem ódio

Depois do sol posto
acenderiam as luzes e eu
iria sem rumo
a pensar que a nossa vida é simples afinal
demasiado simples
para quem está cansado e precisa de marchar.

Agostinho Neto
Vem, ó ninfa gentil, que não merece
o meu antigo amor que assim te escondas.
Vem, doura as águas desse mar que sondas,
bem como o faz o sol, quando amanhece.

Se a conversação minha te aborrece,
já não digo, cruel, que me respondas;
mas sequer, lá de longe, sobre as ondas,
a meus saudosos olhos aparece.

Como se me afigura, ó ninfa amada,
que já o cristalino corpo erguendo,
vens sobre as crespas ondas levantada!

Mas só vem meu engano aparecendo:
era uma onda -- ergueu-se encapelada...
lá se vai entre as outras desfazendo...

João Xavier de Matos

A TRISTEZA DE VIVER

Ânsia de amar! Oh, ânsia de viver!
Um'hora só que seja, mas vivida
E satisfeita... e pode-se morrer,
-- Porque se morre abençoando a vida!

Mas ess'hora suprema em que se vive
Quanto possa sonhar-se de ventura,
Oh, vida mentirosa, oh, vida impura,
Esperei-a, esperei-a e nunca a tive!

E quantos como eu a desejaram!
E quantos como eu nunca a tiveram
Uma hora de amor como a sonharam!

Em quantos olhos tristes tenho eu lido
O desespero dos que não viveram
Esse sonho de amor incompreendido!

Manuel Laranjeira

quarta-feira, 22 de setembro de 2010

...................Eros, olhando para a minha barba
grisalha, com um sopro das suas asas douradas,
voa ao largo.

Anacreonte

(Maria Helena da Rocha Pereira)

ONTEM

O antigo é a doença que eu mais detesto:
É viciar o que já foi virtude!
O tornar ao Passado é sempre um resto,
Ou pior, uma falta de saúde.

Afonso Duarte

Manual de Prestidigitação

autor: Mário Cesariny (Lisboa, 9.VIII.1923 - 26.XI.2006)
título: Manual de Prestidigitação
colecção: «Obras de Mário Cesariny» #1
editora: Assírio & Alvim
local: Lisboa
ano: 1981
capa: arranjo gráfico de Manuel Rosa
págs.: 174
dimensões: 19,8x13,5x1,3 cm. (brochado)
impressão: Beira Douro, Lda. (Lisboa)
tiragem: 3000

THE LAST ROSE...

"Tu m'as dit un jour, en regardant la mer bleue
-- oh! aussi bleue que mes yeux: "Miss,
l'Amour (et tu as ri!) l'Amour est un
adorable mensonge... qui nous saisit."

Miss dos Olhos-Azuis, Tranças-Escuras,
Minha enigmática Senhora Inglesa,
Nos teus cabelos eu bebo loucuras,
Deitado nos teus olhos de turquesa!

Sorvo em teu corpo o aroma da Beleza
Sonâmbula de antigas Miniaturas:
E no teu colo esbelto, sem magreza,
O orvalho das ofélicas Alvuras.

Mulher única! em ti vivo o meu Sonho:
E é só de sonho a Alma que tu sondas
Com pesos d'astros no olhar risonho...

Na vida o Amor, e digo-to chorando,
É, como ouviste já -- olhos nas ondas --
Pretexto apenas pra sofrer... cantando!

Fausto Guedes Teixeira

TROVA À MANEIRA ANTIGA

Comigo me desavim,
Sou posto em todo perigo;
Não posso viver comigo
Nem posso fugir de mim.

Com dor, da gente fugia,
Antes que esta assim crescesse;
Agora já fugiria
De mim, se de mim pudesse.
Que meio espero ou que fim
Do vão trabalho que sigo,
Pois que trago a mim comigo,
Tamanho imigo de mim?

Sá de Miranda

VONTADE DE DORMIR

Fios de oiro puxam por mim
A soerguer-me na poeira --
Cada um para o seu fim,
Cada um para o seu norte...


........................................................

-- Ai que saudades da morte...

........................................................

Quero dormir... ancorar...


Arranquem-me desta grandeza!
--P'ra que me sonha a beleza,
Se a não posso transmigrar?...

Mário de Sá-Carneiro

OUTONO DA ALMA

Pelas praias desertas ao sol-pôr
Vagueia a minha sombra fugidia.
E nos corcéis do vento o meu cabelo
Esvoaça ao sabor da tarde fria.
E no abandono dos areais lisos
A espuma vem de longe desmaiar...
Recolhem as gaivotas às cavernas
Enquanto o pescador vai para o mar.

Descerra a noite a ponta do seu manto
Sobre a terra nessa hora de magia
E as rochas vão batendo contra as rochas
Enquanto o sino canta o fim do dia.
E na solidão da praia deserta
E no escuro da noite sem luar
O Outono da minha alma se apodera
E eu caio sobre a areia a soluçar.

Fátima Dionísio

terça-feira, 21 de setembro de 2010

JANELAS DE ESTREMOZ

Janela fechada,
cortina corrida...
Nem flor a perfuma,
nem moça a enfeita.
--: Ninguém se lhe assoma.
Janela tão triste,
nem ao Sol aberta...

Em toda a cidade
se repete a história
mil vezes; mil vezes,
se olhares a janela
ou desta ou daquela
casinha caiada,
a vês divorciada
do Sol e de tudo
que graça lhe dera.

Há vinte janelas
na casa da esquina?
-- Na rua de cá
dez estão fechadas;
outras dez, fechadas
na rua de lá.
Ah! tão retraídas!
Ah! tão agressivas!

Que pessoas vivas
foi que as condenaram?

Ó janelas mudas,
pobres prisioneiras!,
que pessoas vivas,
por que expiação,
vivem na prisão
em que vos meteram?

-- sem sol que as aquente...
sem flor que as alegre...

Janela cerrada,
cortina descida...
Mocinha escondida
por trás da janela
-- quanto mais não vale
a rosa encarnada
que a rosa amarela!...

Sebastião da Gama
Ela era um docinho
com muitas frutas cristalizadas.

O seu pai era um despertador
com pontualidade suíça.

A minha amiga ria muito
das piadas que eu dizia
e gostava de poesia.

Tiago Gomes

LIBERDADE

Aqui nesta praia onde
Não há nenhum vestígio de impureza,
Aqui onde há somente
Ondas tombando ininterruptamente,
Puro espaço e lúcida unidade,
Aqui o tempo apaixonadamente
Encontra a própria liberdade.

Sophia de Mello Breyner Andresen

NOITE E DIA

E então a noite caiu, para que não se falasse
do cair da noite. A noite caiu tão fria como as
últimas noites que caíram, neste princípio de
Inverno, e ninguém pôs um colchão por baixo
dela para que a noite não se magoasse, ao cair.
A noite limitou-se a cair, e com ela caiu o céu
sem lua, com todas as estrelas do universo a
caírem com ela. Só os olhos não caíram, porque
para verem o céu e as estrelas que o enchiam
tiveram de se levantar. E foi preciso falar
do cair da noite para que os olhos tomassem
a direcção do céu, e descobrissem tudo o que
havia no céu sem lua. «Deixem cair a noite»,
disse alguém. E logo alguém pediu que o
dia se levantasse, como se uma coisa estivesse
ligada a outra. Então, o dia levantou-se da
noite que caiu; e a noite caiu sobre o dia
que se levantava, para que a sua queda fosse
amparada pelo colchão do dia, e as estrelas
tivessem onde pousar, à medida que caíam.

Nuno Júdice

segunda-feira, 20 de setembro de 2010

Aproxima-te. É assim que consegues encontrar
algumas palavras. Estão juntas. Têm um sentido
capaz de vir a acompanhar-te como se pelos dedos
escorresse um pouco de água, a sua transparência
súbita. Recebe o que elas te podem dar agora,
a respiração que fica tranquila e o mesmo aceno
só para que depois consigas compreender
como é fácil que tudo se perca nos teus olhos.

Fernando Guimarães

OS ÚLTIMOS FRUTOS

Que os últimos frutos sequem, nem por isso deixam de ser os mais apetecidos.
As próprias estações confundem-se num frasco de compota
de cujo fundo inúmeras gerações parecem ter saído.
Leva-se a mão ao fruto e um ardor consome-se na boca --
álcool de que o sentimento impróprio decai: enxuto, ressequido.
Ah, deixa-me beijar a tua boca -- até que do fundo
de um sabor a mosto eu me sinta recluso e excluído.
Liofilizados, antes da estação, agora caem os frutos.
Uns dão a luz ao dia, outros, à morte, um sentido inapetecido.

Fernando Guerreiro
Não se vence uma mulher sem a sua cumplicidade. São tantas as batalhas ganhas quantas as que foram perdidas.
Casimiro de Brito

POEMA

Para quê chorar
Se as suas mãos são limpas
A sua culpa inocente
E a mudez das suas vozes
Bandeiras desfraldadas?

Chorar só porque levam
A esperança amachucada
Na sua mala de contratados;
Chorar só porque sangram os seus pés
Na lonjura dos caminhos;
Chorar só porque eles choram
Como choram os meninos sem pão
-- Não, não vale a pena chorar!

Para quê chorar
Se na sua mala de contratados
Levam também os farrapos das suas afrontas?

Onésimo Silveira
entre 1934 e 50, na rua 52, em Manhattan, porta sim porta sim,
um bar com jazz
anos depois um turista português passa 5 dólares a Don Byas (saxista de profissão jazz) para ele ir a casa buscar seu sax e tocar
aproxima-se Roy Eldridge (trompetista de profissão jazz) que comunica: 'ele não vai voltar, vai comprar bourbon...'
já havia pouco jazz na 52.ª -- este bar 'Jimmy Ryan's' era quase todos
antes já o álcool e a droga
eternos companheiros do jazz
faziam felizes público e seus génios

José Duarte

DO LAVRADOR

de tudo plantou na vida
no exato tempo e na hora.

pegando firme na enxada
cavou fundo na memória.

primeiro quando de colo
plantara leite materno,

logo à frente plantaria
brinquedos, livro, caderno.

semeou depois nos brejos
grão de arroz e sua sala:

não tardou que a casa toda
fosse espalhada na vala.

mais tarde deitou seu sono
dentro de cascas de ervilha

cultivou tomate e soja
sem salitre e fantasia.

quarta-feira plantou fava
muitas quintas plantou milho,

pôs de adubo nas raízes
esterco e leite do filho.

curvado sobre si mesmo
plantou de tudo na vida:

mudas tenras e sementes
do que não teve e não tinha.

plantou coisas que o terreno
reduz a brisas, quimera,

quando o outono desce lento
quando explode a primavera.

Mário de Oliveira

domingo, 19 de setembro de 2010

HÁ LIVROS PERVERSOS QUE MORDEM O PELO DO CÃO

Há livros infelizes que
foram escritos para corroer -- à mosca --
a casta paciência do cão:
o bicho não pode viajar por entre laranjas
nem subir ao céu das árvores
para sonhar mais perto do caos.
O lugar das patas não pode ser denso
e muito menos aquecido por vermes.
Que focinho? Um cheiro possível de algas e
flores ratadas,um sino quebrado.

O animal (sentado) espreita a côdea
que lambe o beato fogo e o bolor.
É um artistas de almas em salmoira
movido a sopas de vinho
-- os pêlos altos, colados às rachas sulfurosas
do muro que foi de giestas.
A barba do cão faz anos
e nesses cabelos a crescer
ficamos todos mais velhos.

Palm -- 18 de Novembro de 1990
Fernando Grade

EROTICA ROMANA

I

Falai-me, pedras, ó falai, altos palácios!
Ruas, dizei uma palavra! Génio, não te moves?
Sim, tudo tem alma entre os teus muros sagrados,
Roma Eterna, só para mim tudo se cala ainda.
Oh, quem me sussurra, em que janela avisto eu
A criatura graciosa que me incendeia e me sacia?
Não adivinho ainda os caminhos pelos quais sempre de novo irei
Para ela e dela regressarei, sacrificando-lhe assim o precioso tempo.
Ainda contemplo igrejas e palácios, ruínas e pilares
Como um homem prudente que aproveita a viagem.
Mas em breve isso acabará, e será um único templo,
O do Amor, a receber o predestinado.
És sem dúvida o mundo, ó Roma, mas sem o amor
O mundo não seria o mundo, e também Roma não seria Roma.

Goethe

(Manuel Malzbender)

POEMA DO CÃO AO ENTARDECER

Um cão no areal corria presto.
Presto corria o cão no areal deserto.

Era ao entardecer, e o cão corria presto
no areal deserto.

Corria em linha recta, presto, presto,
pela orla do mar.
Pela orla do mar, em linha recta,
corria presto, o cão.

Era ao entardecer.
No areal as águas derramadas
nas angústias do mar
lambuzavam de espuma as patas automáticas
do cão que presto, presto, corria em linha recta
pela orla do mar.

Sem princípio nem fim, em linha recta,
pela orla do mar.

Era ao entardcer,
na hora espessa, peganhenta e húmida,
em que um resto de luz no espasmo da agonia
geme nas coisas e empasta-as como goma.
No espaço diluído, esfumado e cinzento,
corria presto o cão no areal deserto.
Corria em linha recta, presto, presto,
definindo uma forma movediça
que perfurava a névoa e prosseguia
pela orla do mar, em linha recta,
focinho levantado, olhos estáticos,
fixando o breve ponto onde se encontram
além de todo o longe
as rectas que se dizem paralelas.

Alternavam-se as patas na cadência,
na cadência ritmada do movimento presto,
deixando no areal as marcas do contacto.
Presto, presto.

Como se um desejo o chamasse, corria presto o cão
no areal deserto.
O ritmo sempre igual, a língua pendurada,
os olhos como brocas, furadores de distâncias.

Em seu último espasmo a luz enrodilhou
o cão, o mar, o céu, o próximo e o distante.
Era um suposto cão correndo presto, presto,
num suposto areal, realmente deserto,
por uma linha recta mais suposta
que o areal e o mar.
Mas presto, presto, sempre presto, presto,
ia correndo o cão no areal deserto.

António Gedeão

sábado, 18 de setembro de 2010

Antes das pontes os rios
Antes dos castelos águias
Que levantadas bem altas
São as deusas das escarpas.

Antes do fruto uma onda
De incenso de primavera
De cavalos debandados
Por anos de tanta espera.

Antes de tudo ser ouro
No alambique escondido.

Acordar de noite acesa.
Vertical hora ser vivo.

José Carlos González
Com que passadas tristes vais subindo
ó lua, e tão silente, e desmaiada!
Pois quê?! Também na célica morada
anda o Archeiro as setas despedindo?

Se uns olhos que ele abrasa há tempo infindo
conhecem já quem lhe caiu na alçada,
nesse teu ar e graça abandonada
leio que também tu o vens servindo.

Dize, então, companheira, e doce amante:
também lá é loucura o amor constante?
As deusas, desdenhosas também são?

Também movem amor, e zombam logo
dos corações que amor acende em fogo?
Também lá é virtude a ingratidão?

Sir Philip Sidney

(Luís Cardim)

HOJE

Podem encher-me os punhos de grilhetas
Ou pregar numa cruz a vida minha;
Não é canto propício de poetas
O velho medo que guarda a vinha.

Afonso Duarte

sexta-feira, 17 de setembro de 2010

Voz Descontínua

autor: João Candeias (Quelimane, 1949)
título: Voz Descontínua
subtítulo: Antologia Mínima
colecção: «The Impossible Papers»
edição: Black Son Editores
ano: 2002
págs.: 38
dimensões: 17,5x13,5x0,3 cm. (brochado)
impressão: Graficar, Carvalhos
capa: Ana Candeias, sobre ilustração do livro Apocaliypsse, de Enrico Baj
tiragem: 350 exemplares
observações: dedicatória do Autor

SONETILHO VELHO E ACTUAL

Companheiro, ouves os choupos
gemendo mágoas de agora?
Os ventos sibilam roucos
a hora da nossa hora.

Noite de almas, noite fria...
O luar não traz mensagem...
Cada noite tem um dia.
Noite tirana, que a rasguem.

Sofro, noite... Sofre gente...
Cantam galos para o nascente...
Futuro, como nos pagas?

Pausa mais pausa é demência.
Na noite da consciência
versos só podem ser pragas!

José Fernandes Fafe

A ÍBIS

A íbis, a ave do Egipto
Pousa sempre sobre um só pé
O que é
Esquisito:
É uma ave sossegada
Porque assim não anda nada.

Fernando Pessoa

AMOR À VISTA

Entras como um punhal
até à minha vida.
Rasgas de estrelas e de sal
a carne da ferida.

Instala-te nas minas.
Dinamita e devora.
Porque quem assassinas
é um monstro de lágrimas que adora.

Dá-me um beijo ou a morte.
Anda. Avança.
Deixa lá a esperança
para quem a suporte.

Mas o mar e os montes...
isso, sim.
Não te amedrontes.
Atira-os sobre mim.

Atira-os de espada.
Porque ficas vencida
ou desta minha vida
não fica nada.

Mar e montes teus beijos, meu amor,
sobre os meus férreos dentes.
Mar e montes esperados com terror
de que te ausentes.

Mar e montes teus beijos, meu amor!...

Fernando Echevarría
Sozinha no bosque
com meus pensamentos,
calei as saudades,
fiz trégua a tormentos.

Olhei para a lua,
que as sombras rasgava,
nas trémulas águas
seus raios soltava.

Naquela torrente
que vai despedida
encontro, assustada,
a imagem da vida.

Do peito, em que as dores
já iam cessar,
revoa a tristeza,
e torno a penar.

Marquesa de Alorna

ENDECHAS

Feliz de quem tem
Saudades dum bem.

Não as posso ter,
Que a saudade vem
De perder um bem,
Não dum mal perder;
Se tudo é sofrer,
Quem saudades tem
Se não teve um bem?

Tê-las cada dia
Tinha por vontade,
Porque a saudade
Faz-nos companhia:
Mas como a teria,
Se do bem nos vem
E eu não tivesse um bem!

Na vida mortal,
Se é tudo sofrer
Só poderei ter
Saudades do mal:
Ah, triste, afinal
Quem não tem ninguém,
Nem saudades tem!

Júlio Dantas

CANTIGA

Coração, já repousavas,
Já não tinhas sujeição,
Já vivias, já folgavas;
Pois por que te sujeitavas
Outra vez, meu coração?

Sofre, pois te não sofreste
Na vida que já vivias;
Sofre, pois te tu perdeste,
Sofre, pois não conheceste
Como te outra vez perdias;

Sofre, pois já livre estavas
E quiseste sujeição;
Sofre, pois te não lembravas
Das dores de que escapavas:
Sofre, sofre, coração!

Jorge de Aguiar

quinta-feira, 16 de setembro de 2010

MONTE CARLO

Para o tédio
Quero uma bica e um brandy normal
Para o remédio
Um copo de água natural
E também quero um jornal
Mas traga-me um desportivo
Que sempre é mais digestivo

Pedro Bandeira Freire

CÂNTICO E LAMENTAÇÃO NA CIDADE OCUPADA

9.

Mas há a noite. O estar sozinho
e no entanto acompanhado -- servo de um deus estranho
cumprindo o ritual jamais completo.

Mas há o sono. A lúcida surpresa
de um mundo imaterial e necessário,
com praias onde o corpo se desprende.

Mas há o medo. Há sobretudo o medo.
Fel, rancor, desconhecido apelo,
suor nocturno, rápido suicídio.

Daniel Filipe
Há um destino antigo, sepulcral,
Entre as paredes que falam
E os animais que olham.
A minha história
É o que eu recuperar dessa memória.

José de Matos-Cruz

ROSAS

Que abundância de rosas! Todas elas,
Ao penugento arfar da viração,
Sob os mimos da luz, sorrindo estão,
Radiosas como bocas, como estrelas.

Tu que andas, fina e pálida, a colhê-las
Para alindar com pura devoção
Teu oratório, ansioso o coração,
As mais vivas escolhes, as mais belas.

Já encheste, afanosa, duas cestas,
Mas ainda quer's mais! E desbotadas,
Por entre as rosas mil, de essências brandas,

As tuas mãos, translúcidas e lestas
Lembram duas freirinhas maceradas,
Conduzindo ao recreio as educandas.

Eugénio de Castro

NO CÉU DA NOITE

No céu da noite que começa
Nuvens de um vago negro brando
Numa ramagem pouco espessa
Vão no ocidente tresmalhando.

Aos sonhos que não sei me entrego
Sem nada procurar sentir
E estou em mim como em sossego,
P'ra sono falta-me dormir.

Deixei atrás nas horas ralas
Caídas uma outra ilusão,
Não volto atrás a procurá-las,
Já estão formigas onde estão.

Fernando Pessoa

OS NAVEGADORES

Eles habitam entre um mastro e o vento.

Têm as mãos brancas de sal.
E os ombros vermelhos de sol.

Os espantados peixes se aproximam
Com olhos de gelatina.

O mar manda florir seus roseirais de espuma.

No oceano infinito
Estão detidos num barco
E o barco tem um destino
Que os astros altos indicam.

Sophia de Mello Breyner Andresen

O ACENDEDOR DE LAMPIÕES

Lá vem o acendedor de lampiões na rua!
Este mesmo que vem imperturbavelmente
parodiar o Sol e associar-se à Lua
quando a sombra da noite enegrece o poente.

Um, dois, três lampiões e continua
outros mais a acender interminavelmente
à medida que a noite aos poucos se acentua
e a palidez da lua apenas se pressente.

Triste ironia atroz que o senso humano irrita:
ele que doura a noite e ilumina a cidade
talvez não tenha luz na choupana em que habita.

Tanta gente também nos outros insinua:
crenças, religião, amor, felicidade,
como esse acendedor de lampiões na rua!

Jorge de Lima

quarta-feira, 15 de setembro de 2010

C.A.P.E.

Amo estas folhas todas dentro do dossier
Manuseio os telexes e as notas de débito
Como coisas minhas e familiares de mim
Sei que cada capa contém um mundo

As facturas ora explícitas ora pouco claras
São como pessoas e mentem muitas vezes
Tal como os certificados de origem
E mais grave ainda -- os conhecimentos de embarque

Por detrás de cada papel está uma pessoa
O maravilhoso é pensar nisso quando lhe pego
Amo profundamente estas capas cheias de papéis
E tudo o que elas representam todos os países

José do Carmo Francisco

MELODIA

II

Há anos de raiva
que te busco em vão,
Melodia!

No sopro dos meus versos,
nas fontes com sede,
nas portas que rangem,
na cólera do mar aberto...

Mas quem te ouve, Melodia,
para além do contorno do silêncio?

Pobre voz que trago em mim
e há-de morrer ignorada
nas trevas dum sol profundo
sem luas de superfície.

José Gomes Ferreira
o ramo seco partido/ em dois por meus pés refaz-se inteiro no estalido que ainda me acompanha.
António Gil

VELA DO EXÍLIO

Acendi hoje uma vela
de estearina na fina
mesinha onde escrevo.
Enquanto ela me ardia
da chama para os meus olhos
velhas lembranças seguiam.
E súbito sobre a parede
da velha casa onde moro
o mapa árido e breve
das ilhas do Caboverde.

Que vento não vem ou se agita
no barco em forma de vela
por dentro da casa fechada!
Que voz materna no écran
da ilha difusa difunde
meu nome em projecto?

Acendi hoje uma vela.
E enquanto me ela queimava
por sobre a mesa pessoas
vivas e mortas passavam.

Vela do exílio acendida
na noite de Moçambique:
pesado, inútil veleiro.
Vela do exílio, meu filho
com apenas um sopro apagas
a vela, o exílio não.

Gabriel Mariano

ATESTADO DE ÓBITO

foi o ferro
certamente a lança
a lança em sua ponta ferro
enterrada logo abaixo coração

ou terá sido o conhaque
a cana o álcool
a soda cáustica

ou a literatura
Sade Lawrence Rimbaud
ou simples féerie:
um copo de pernod

ou terá sido a mulher:
a negra de recados
a moça propaganda
a tenra priminha

a gula
sim, a gula, terá sido a gula
o sapo o rato a avestruz
tudo misturado
adicionado ao pato assado
à melancia

ou foi o vento
a corrente de ar:
nu olhava-se ao espelho
ou um azar tremendo:
a queda do cavalo
a vontade de subir
o cadafalso
a maçã Lispector morta no escuro
o duro soalho onde foi parar sua cabeça

Vivaldi adicionando a éter
a derreter impressões sobre sua memória
ou a emoção pura e simples
do retrato dela encontrado ao lado do seu corpo

o morto expectante espera o laudo
sem o qual não pode considerar-se
nem alar-se a outras paragens
nem fazer visagens tão do seu agrado

: «edema pulmonar» --
e o poeta sai do seu cadáver pasmo
de tamanha vulgaridade

Pedro Garcia

ACALANTO DE JOHN TALBOT

Dorme, meu filhinho,
Dorme sossegado.
Dorme, que a teu lado
Cantarei baixinho.
O dia não tarda...
Vai amanhecer:
Como é frio o ar!
O anjinho da guarda
Que o Senhor te deu,
Pode adormecer,
Pode descansar,
Que te guardo eu.

Manuel Bandeira

CORAÇÃO SELVAGEM

Amores
por desbravar
eu tenho imensos

Como lagos
em fúria
nos luares

Em selvas
do coração
por descobrir

Sem raízes
que me prendam
aos lugares

5/2/98
Luís Graça

terça-feira, 14 de setembro de 2010

TRISTÍSSIMA CANÇÃO

Nesta saudade em que vivo
Há um mistério que eu estranho:
É pesar-me o bem que tive
Mais do que os males que tenho.

E ainda é maior a amargura,
Lembrando que o bem passado
Foi menos do que mesquinho,
pois foi apenas sonhado!

Nasceu dos meus pensamentos
Altivos e namorados,
E fez, morrendo, a harmonia
Dos meus versos magoados...

E mesmo assim, que saudade
Eu tenho, de encanto estranho,
Que lembra o bem que eu não tive,
E é o maior mal dos que eu tenho!...

Guilherme de Faria

ESMERALDA

Esmeraldas no heráldico diadema,
No lóbulo da orelha cor-de-rosa;
O colo -- arde na luz maravilhosa
De um tríplice colar da mesma gema.

No peito, aberto céu de alvura extrema,
Entre nuvens de tule vaporosa,
Verde constelação, na forma airosa
De principesca e recortada estema.

Agrilhoa-lhe o pulso um bracelete,
Glaucas faíscas desprendendo; ao cinto
Um florão de esmeraldas por colchete;

Nos dedos finos igual pedra escalda...
Mas deixam todo esse fulgor extinto
Os seus dois grandes olhos de esmeralda!

B. Lopes

PRESÍDIO

Nem todo o corpo é carne... Não, nem todo.
Que dizer do pescoço, às vezes mármore,
às vezes linho, lago, tronco de árvore,
nuvem, ou ave, ao tacto sempre pouco...?

E o ventre, inconsistente como o lodo?...
E o morno gradeamento dos teus braços?
Não, meu amor... Nem todo o corpo é carne:
é também água, terra, vento, fogo...

É sobretudo sombra à despedida;
onda de pedra em cada reencontro;
no parque da memória o fugidio

vulto da Primavera em pleno Outono...
Nem só de carne é feito este presídio,
pois no teu corpo existe o mundo todo!

David Mourão-Ferreira

MUNDO DE AVENTURAS

uma pequena aldeia na planície arménia
nevoeiro matinal no porto de dieppe
o silvar agudo no cimo dos cárpatos
um castelo solitário num lago escocês

um junco chinês no mar do japão
um trilho de camelos na rota da seda
um catre vazio no mosteiro da arrábida
uma via romana na serra do gerês

uma mesa de cozinha e odores de outono
um eucaliptal onde brinco com o avô
o último número da revista tão esperada
despojos da infância que se me acabou

21 de Março de 2001

CREPUSCULAR

Tive uma rosa de fogo
A arder no meu coração.
Ganhou-ma o destino ao jogo
De dias que já lá vão.

-- Rosa vermelha de esperança,
A estas horas sem cor,
Porque me vens à lembrança
Como pecado de amor?

(Cansados, cansam-me passos
Que não dei... por me cansar.
Levo, pesados, nos braços
Os restos dum sonho ao mar.)

António de Sousa

MAGIA DOS PIRILAMPOS

Cintilam na resteva os pirilampos:
-- Bailados de luz viva, logo morta.
Anda a crença a bater de porta em porta
Que há alminhas penadas pelos campos.

Luzem na floresta às vezes tantos
Que ao luzeiro macabro, além, da horta
Um frio gume de medo me recorta
-- O infantil medo que se esconde aos cantos.

E despedindo lume entre os silvedos,
Cruzam de agoiro a noite e de bruxedos,
Luzes de feiticeiras contradanças.

«Pirilampos debaixo da maquia»
Que vezes me embruxou vossa alquimia
Que magos! -- «para engano das crianças».

Afonso Duarte

INCÊNDIO

Daqui, desta falésia cor de lava,
Dum amarelo rútilo e sangrento,
Outrora debruçava-se um convento
Sobre a maré tumultuosa e brava...

E, à noite, quando no clamor do vento,
Ao largo, o temporal se anunciava,
E a voz das águas, soluçante e cava,
Punha um trovão nas furnas, agoirento,

Logo, piedosamente, cada monge
Suspendia uma lâmpada à janela,
E tangia a sineta para o coro...

E, no mar alto, o navegante, ao longe,
Via um farol luzir em cada cela,
E cada rocha a arder, em sangue e ouro...

Cândido Guerreiro

segunda-feira, 13 de setembro de 2010

COIN, 1994

Gostava de poder dizer não
ao ruído do mundo.
Mas já recolhem o lixo, choveu demasiado,
e eu aperto sem convicção
o cinto verde que me cala o estômago.

Estaríamos, até, a falar da morte
-- não fosse este o vigésimo
domingo a seguir à Trindade.
Tronos e dominações mo dizem,
numa rua de Lisboa que
fica, às vezes, tão perto de Leipzig.

Não abdicarei, é claro,
«dos escuros abismos do pecado»
-- que em alemão se dizem doutra maneira.

Pecado, maior, é tentar traduzir a música.

Manuel de Freitas
quando tudo é outra coisa
peixe ou nuvem
quando tudo é fulgor
rebentação do verde nos teus olhos
quando a alegria contamina a pele
e a casa é um navio transparente
e numa sílaba
ouso imaginar-te enternecendo as aves

é que levo ao poema
a brancura matinal da infância
ou, quem sabe
o nome exacto de Deus.

Fernando Jorge Fabião

CÃOZINHO

Eu tenho um cão
muito pequenino
que me cabe na mão
e não é ladino...
Só se põe a correr
se o seu menino
lhe mexer...

Não come carne nem peixe
mesmo que o deixe...
Nem trinca chocolates e bolos
como os cães tolos...
Nem come sopinha
por mais que lha dê...

E não bebe leite
antes que se deite
na sua caminha...
E que coma açorda
ninguém se recorda...
Nem papa farinha...

E sabem porquê?
Ninguém adivinha?

-- é que o patetinha
é um cão de corda.

Sidónio Muralha
Levanto-me e vou à janela.
Gotículas de água agarradas aos vidros.
Em baixo
sem o calor das folhas ou a alegria das flores
as árvores tiritam de frio.

As árvores, digo comigo?
Como as árvores?

Fico de repente espantado
com o facto de existirem árvores
mesmo que sejam árvores nuas
árvores pobres e municipais.
Nunca da sua existência me apercebera.
Nunca me dera conta que existissem.
Não fazia a mais pequena ideia que existissem árvores.
É espantoso saber que existem árvores
e mais espantoso ainda
que árvores aqui existam.
Aqui nestas traseiras
onde nunca nada houve.
E é espantoso que eu possa vê-las
como agora as estou a ver.

E ver que as vejo
deve ser ainda mais que tocá-las.
Vincam-se lívidas na névoa que clareia.

Erguem-se os braços nus e suados no ar.
Existem, Deus meu.
E com elas
passam a existir todos os quintais das traseiras.
E com os quintais
passam ainda a existir
os torreões brancos da Igreja de S. Vicente
e por detrás o Tejo.

Mas como o Tejo?
Como o Tejo
se nunca o vi em criança
que é a idade justa para haver Tejo?

E para cúmulo
ao fundo
tudo isto coroando em excelência
a linha solene e altiva
sem nada perder em doce
da Arrábida.

António Cândido Franco

HERANÇA

O meu avô escravo
legou-me estas ilhas incompletas
este mar e este céu.

As ilhas
por quererem ser navios
ficaram naufragadas
entre mar e céu.

Agora
aqui vivo eu
e aqui hei-de morrer.

Meus sonhos
de asas desfeitas pelo sol da vida
deslocam-se como répteis sobre a areia quente
e enroscam-se raivosos
no cordame petrificado da fragata
das mil partidas frustradas.

Ah meu avô escravo
como tu
eu também estou encarcerado
neste navio fantasma
eternamente encalhado
entre mar e céu.

Como tu
também tenho a esmola do luar
e por amante
essa mulher de bruma, universal, fugaz,
que vai e vem
passeando à beira-mar
ou cavalgando sobre o dorso das borrascas
chamando, chamando sempre,
na voz do vento e das ondas.

Aguinaldo Fonseca

SONETO GEOMÉTRICO

O risco de um soneto geométrico
a régua, rima, quadra, esquadro
um soneto no fundo bem patético
e doce, sem deixar de plástico.
Quero de Mondrian e de Petrarca
essa perfeita síntese dialética
num heróico polígono sintático.
Oh! a retórica das linhas retas!
Perdida entre metáfora e objeto
arde a língua sem ver comunicar
um tempo grave, esdrúxulo, etc.
Jayro José Xavier

domingo, 12 de setembro de 2010

Aquele cuja amizade era alegria
deixou-me somente a via da renúncia:
Era néctar e agora apenas um veneno.

Ibn 'Abd al-Barr

(Adalberto Alves)

CANÇÃO

Ânfora, gomil
por que bebo fel e mel,
és tu,
amor meu;
e o filtro que adormeceu
num sonho d'ópio subtil,
desentranhado do núbil perfil
do teu corpo nu,
és inda tu,
amor meu!
O meu espelho de cristal,
emoldurado a marfim e prata
lavrada
por um artista gentil
como Cellini,
ficou quebrado,
ora vê lá tu,
ao reflectir a escarlata
dos teus lábios de rubi,
e a sombra maga do perfil alado
de graça do teu corpo esguio e nu,
e lindo!
Ora vê lá tu;
eu jamais tal vi,
e jamais vejo,
amor meu,
ânfora por que bebo
o mais amargo fel
do mais doce, do mais impossível desejo.

António de Navarro

O vago, longínquo tom
mudou-se em vivo escarlate.
Mudou-se o acre limão
em bombom de chocolate.

(Que se riam, à vontade,
dos meus olhos sem canseira!
Quem estiver à minha beira
que pressinta o disparate...)

Aquele cinzento é ruivo
como um beijo que faz sangue...
E o silêncio fundo é um uivo...

E o gesto exangue e langue
dá cabriolas... O goivo
para mim é cor de sangue.

Saul Dias
Céu de espantosos gritos que ficaram nos ecos da memória
de procelosas mágoas com pudor de mostrar-se
Cargas maciças de bastões na noite contra cabeças e o resto
Raivosas chicotadas nos porões de naus a afundar-se
rasgando de alto a baixo o horizonte em clarões negros de vitória

Um homem só tem dois braços e a vida inteira lavra
a terra que não é dele e muitas vezes morre sem uma palavra
de protesto

Mário Dionísio

sábado, 11 de setembro de 2010

íamos ali
no intervalo das duas mortes jogava-se
o bilhar
alguns velhos concêntricos moíam apostas baixas
à carambola
ponho talco nas mãos e no taco enquanto
observo resvalar a nota dobrada em quatro sobre o pano
verde
uma visão triangulada às tabelas da cabeceira
com gramsci nietzsche hemingway mal batidos
camurças de 1.ª entre duas novas mortes
também jogava às sortes nas traseiras do prédio
entre gente ordinária no gamão -- tinha 13 anos
depois tanto fazia ganhar com perder

Paulo da Costa Domingos

SIMPATIA

Olhas-me tu
Constantemente:
Daí concluo
Que essa alma sente;
Que ama; não zomba
Como é vulgar;
Que é uma pomba
Que busca o par!

Pois ouve: eu gemo
De te não ver!
E em vendo, tremo,
Mas de prazer!
Foge-me a vista...
Falta-me o ar...
Vê quanto dista
daqui a amar!

João de Deus

Noite do Meu Inverno

autor: António Barahona
título: Noite do meu Inverno
edição: ICHTHYS
local: Lisboa
ano: 2001
págs.: 159
dimensões: 20,9x14,6x1 cm. (brochado)
composição e paginação: Fátima Barahona
impressão: Editorial Minerva, Lisboa
tiragem: 400 exemplares
capa: Luís Manuel Gaspar, sobre vinheta de Maria del Pilar Andalúz
observações: poema inaugural de Ruy Cinatti, dedicado ao Autor

sexta-feira, 10 de setembro de 2010

STAR DUST


(Lester Young
lendo Star Dust)

toda pele
quando ela toca
troca

arde
vira verde
trans-
parece

(Lester Young
lendo Star Dust)

nada nunca ninguém
quando ela toca ou fala
toca tão completamente
quando completa foi tocada

(Lester Young
lendo Star Dust)

Frederico Barbosa

BOA NOITE

A zebra quis
ir passear
mas a infeliz
foi para a cama

-- teve de se deitar
porque estava de pijama.

Sidónio Muralha

BALADA DOS SONS VELADOS

Amo nos versos a surdina
os tons de opala oriental,
do luar das noites de neblina,
as morte-cores de um vitral.
Quero que o verso seja tal
que em cada som tintinabule
tornando a frase musical
como a canção do rei de Tule.

Mesmo na estrofe alexandrina,
ampla, sonora e triunfal,
sinta-se bem que predomina
o semitom de uma vogal.
Nunca, de modo desigual,
haja uma rima que estridule.
E seja o verso natural
como a canção do rei de Tule.

O verso é a concha nacarina
que a enorme voz do vendaval,
doce, subtil, longínqua e fina,
repete em ecos de cristal.
Embora negro e funeral,
rouco e bramante, o mar ulule,
cante essa concha de coral
como a canção do rei de Tule.

OFERTA

Ó cavaleiros de San Graal!
Que o verso seja um véu que ondule
e evoque a imagem ideal
como a canção do rei de Tule.

Martins Fontes

SONETO DE AMOR

Não me peças palavras, nem baladas,
Nem expressões, nem alma... Abre-me o seio,
Deixa cair as pálpebras pesadas,
E entre os seios me apertes sem receio.

Na tua boca sob a minha, ao meio,
Nossas línguas se busquem desvairadas...
E que os meus flancos nus vibrem no enleio
Das tuas pernas ágeis e delgadas.

E em duas bocas uma língua..., -- unidos.
Nós trocaremos beijos e gemidos,
Sentindo o nosso sangue misturar-se.

Depois... -- abre os teus olhos, minha amada!
Enterra-os bem nos meus; não digas nada...
Deixa a vida exprimir-se sem disfarce!

José Régio

CHORO

Ai barco que me levasse
a um Rio que me engolisse
donde eu não mais regressasse
p'ra que mais ninguém me visse!

Ai barco que me levasse
sem vela ou remos, nem leme
p'ra dentro de todo o olvido
onde não se ama nem teme.

Ai barco que me levasse
aos tesouros conquistados
por entre esquinas de perigos
dos mil caminhos trilhados.

Ai -- onde? -- que me levasse
bem dentro de um vendaval...
Barco berço, barco esquife
onde tudo fosse igual:

Ai barco que me levasse
toda estendida em seu fundo!
Nesga de céu a bastar-me
toda a saudade do mundo!

Ermelinda Pereira Xavier
Que assim sai a manhã, serena e bela!
Como vem no horizonte o sol raiando!
Já se vão os outeiros divisando,
já no céu se não vê nenhuma estrela.

Como se ouve na rústica janela
do pátrio ninho o rouxinol cantando!
Já lá vai para o monte o gado andando,
já começa o barqueiro a içar a vela.

A pastora acolá, por ver o amante,
com o cântaro vai à fonte fria;
cá vem saindo alegre o caminhante;

Só eu não vejo o rosto da alegria:
que enquanto de outro sol morar distante,
não há-de para mim nascer o dia.

João Xavier de Matos

quinta-feira, 9 de setembro de 2010

Dormem os cumes das montanhas e as ravinas,
os promontórios e as torrentes,
a floresta e quantos animais cria a terra negra,
as feras das montanhas e a raça das abelhas,
e os monstros nos abismos do purpúreo mar;
dormem também as tribos das aves,
com as suas grandes asas.

Álcman
(Maria Helena da Rocha Pereira)

SONETO

Nas mornas solidões, lá nas florestas virgens,
Onde sonham ao luar estáticos pauis,
As nuvens sensuais têm súbitas vertigens:
Chuvas torrenciais, relâmpagos azuis!

Langorosas d'amor vêm as noites macias,
Com seu vago torpor de aroma e claridade,
E as estrelas, no céu, mais brilhantes e frias
Ostentam a nudez da sua virgindade!

Assim no coração imenso dos poetas,
Após as vivas dores, as torturas secretas,
Que no silêncio, audaz, criou seu pensamento,

Como que a vida ganha um sentido maior,
A mais longe se espraia a onda do amor,
Mais penetrante e doce é a luz do sentimento!

Coimbra.

Fausto José

QUANDO AS ANDORINHAS PARTIAM

Boca talhada em milagrosas linhas,
A luz aumenta com o seu falar.

Esta manhã, um bando de andorinhas
Ia-se embora, atravessava o mar.

Chegou-lhes às alturas, pela aragem
Um adeus suave que ela lhes dissera

-- E suspenderam todas a viagem
Julgando que voltara a primavera...

Augusto Gil

ANTÁSTICO

O dono do pombal fronteiro à minha casa
só recatados gaviões brancos rabo em leque
nunca topou que eu pomba negra arrasto a asa
e lhe fiz da honra das filhas pechisbeque

Um pouco mais de Sol e Mário foras brasa
vá lá fóssil molar em anta cromeleque
é antástico não se ver mesmo na vasa
onde cravou o palafita seu espeque

Porque pateta tanto rima com poeta
como com atleta viva o lugar comum

Tenho há muito o javardo ao alcance da seta
besta lesta na besta e que esta morra pum

Dois colmilhos assim sempre valem algum

José Correia Tavares

SEM PORQUÊ

A rosa é sem porquê; floresce, porque floresce,
Não cuida de si própria, não pergunta se a vemos.

Angelus Silesius
(José Augusto Mourão)

A NOITE DESCE

Como pálpebras roxas que tombassem
Sobre uns olhos castanhos, carinhosos,
A noite desce... Ah! doces mãos piedosas
Que os meus olhos tristíssimos fechassem!

Assim mãos de bondade me embalassem!
Assim me adormecessem, caridosas,
E em braçadas de lírios e mimosas,
No crepúsculo que desce me enterrassem!

A noite em sombra e fumo se desfaz...
Perfume de baunilha ou de lilás,
A noite põe-me embriagada, louca!

E a noite vai descendo, muda e calma...
Meu doce Amor, tu beijas a minh'alma
Beijando nesta hora a minha boca!

Florbela Espanca

ARRAIAL

A AQUILINO RIBEIRO.

Noite de S. João. Oiço os descantes
dum baile popular. Ao alto, a lua,
lindo balão, sobe no céu, flutua
sobre a cidade. Enlaçam-se os amantes

na volúpia da noite. Estralejantes,
cada foguete é uma espada nua,
risca no ar gestos de luz. A rua
é um bazar de anseios perturbantes.

Jovem, de branco, um marinheiro leva
pelo seu braço uma gentil pequena,
também de branco. E somem-se na treva...

Há bailes de bebés pelos terraços.
E eu volto a casa só, cheio de pena,
trazendo um sonho morto nos meus braços.

Américo Durão

quarta-feira, 8 de setembro de 2010

AUSÊNCIA

Mais feliz do que eu
nossa mútua ausência
já não te dói.

José Craveirinha

IMPRESSÕES DA RETINA

Feito no corpo, o gesto de amor,
excede a intuição das pálpebras:
a janela d'água, o coito, a tradição hermética.
E a rapariga caminha do canavial
para o lápis do dia.
Desenha na íris o furo da mais alta cana
desce a salamandra
no sentimento, trai o voo
em traços cada vez mais nítidos.

Gil Nozes de Carvalho

UM CÃO LADRA

Um cão ladra, do lado de fora, à minha esquerda.
Desafia outras vozes, que agora distingo
mais humanas.
Está no cio, tem fome, apenas desconfia?
Pergunto-me o que seria do mundo
no instante em que todos os animais se calassem.
O que seria a paciência do mundo
sem esta estima e simpatia
sem esta gelatinosa harmonia.

Pergunto-me o que seria cair do sono todos os dias
sem esta batalha perdida.

José Ilídio

OS BARCOS NA ERICEIRA

Depois do mar frio, antes dos moinhos brancos
que se debruçam como árvores no caminho
dos pássaros, eu sonhei viver. Plantei uma romãzeira
entre as pontes a caminho do norte e dos canaviais,

quando as esplanadas do Inverno fixavam
recados e pombos perdidos na praça.
Sonhei portanto viver enquanto o plátano mais
frondoso viver. Depois disso, nada suportará

a passagem dos navios, a tempestade em tardes
de Outubro, se aí não puder morrer entretanto.

Francisco José Viegas

POEMA PARA TU DECORARES

Para Hortênsia

Eu, feito corsário de aventuras estranhas,
num dia qualquer partirei
numa caravela branca de velas brancas
fazer o meu destino.

Na estrada verde que irei sulcar
as estrelas mostrar-me-ão o brilho dos teus olhos,
o vento, sussurrando, trar-me-á o ruído do teu riso
e outras caravelas brancas de velas brancas
estarão agora à minha procura.

E, assim, nós iremos
quebrar com as nossas mãos árvores seculares,
abrir com os pés os espinhos do nosso caminho...
E se algum dia eu voltar,
numa caravela branca
sem velas, sem mastros nem equipagem,
quando eu chegar ao pé de ti
cansado pelo fragor da luta,
os pés rasgados pelos espinhos do caminho,
as mãos ensaguentadas,
o rosto convulso,
sejam a carícia das tuas mãos
e o beijo da tua boca
um grito para que eu volte
para junto dos meus irmãos
continuar no fragor da luta
para a conquista do mundo...

Tomaz Martins

OS COELHINHOS

Iam dois coelhinhos
andando apressados
para o céu -- com medo
de serem caçados.

E também com medo
de passarem fome.
Pois -- quando não dorme --
o coelhinho come.

E ainda tinha os filhos
que a coelha esperava...
O Céu era longe
e a fome era brava.

Jesus riu, com pena:
fez brotar da Lua
-- para eles -- florestas
de cenoura crua.

Odylo Costa, Filho

terça-feira, 7 de setembro de 2010

O DETRITO DAS ÁGUAS

Neste local,
o rio avoluma-se inesperadamente.
Alarga-se, alaga
terras que deram milho, casas onde
a fome se amontoou
e foram gerados filhos.

Sobre tudo isso o Douro deposita
o detrito das águas.

Cujo peso sujeita lá em baixo
baixios que perderam a validade.

A. M. Pires Cabral

PINHAIS, CHÃOS DE BIBLIOTECAS

1

Peço aos elementos que me tragam
os dias trágicos da infância,
o vento nos pinheiros, as insufladas nuvens
que deixavam no céu um gesto de loucura
que sabia bem apontar com o dedo mínimo.
Ergo a mão direita e abençoo o estilo baço
que a natureza traduz da voz de Deus.
Eu quero abençoar Deus e não me deixam.
Cada quadro rural é um mistério
quase litográfico.
Posso pensar nos animais de pasto
como outros trazem nos seus livros
uma versão romântica, fim de século.
Um cão de caça surge com a baba esbranquiçada
da moral submissa.
Deus teve os seus pastores no mês de junho
mas os furões chiavam no outono
e as matilhas humanas corriam no inverno
para vir ao meu encontro.
Pinhais e bibliotecas. Punhais de chuva
ou livros? Mentir até expulsar o corpo
das águas menstruais, gaseificadas.
Eu tive um tio que era espiritista
e lia Redol deitado no seu tabuleiro
de tuberculoso.
O mar do Baleal sabia-me a manteiga,
a pão e névoa.
Hoje, entre duas bicas, meu tio, reformado
dos plásticos, fala de política
e eu faço que sim com a cabeça.

Armando Silva Carvalho
Amar é desejar o sofrimento
e contentar-se só de ter sofrido
sem um suspiro vão, sem um gemido,
no mal mais doloroso e mais cruento.

É vagar desta vida tão isento
e deste mundo enfim tão esquecido,
é pôr o seu cuidar num só sentido
e todo o seu sentir num só tormento.

É nascer qual humilde carpinteiro,
de rudes pescadores rodeado,
caminhando ao suplício derradeiro.

É viver sem carinho nem agrado,
é ser enfim vendido por dinheiro,
e entre ladrões morrer crucificado.

José Albano
Dá a surpresa de ser.
É alta, de um louro escuro.
Faz bem só pensar em ver
Seu corpo meio maduro.

Seus seios altos parecem
(Se ela estivesse deitada)
Dois montinhos que amanhecem
Sem ter de haver madrugada.

E a mão do seu braço branco
Assenta em palmo espalhado
Sobre a saliência do flanco
Do seu relevo tapado.

Apetece como um barco.
Tem qualquer coisa de gomo.
Meu Deus, quando é que eu embarco?
Ó fome, quando é que eu como?

Fernando Pessoa

CONTESTAÇÃO

9

Eu só queria cantar
a terra ensaguentada mas sagrada,
corpo e alma
carne e sangue
do senhor;
tão real, tão igual e tão perfeitamente
como está neste céu
de sacrifício e dor,
como está neste céu
de martírio e de cor,
como está neste céu
de delírio e de amor.

Queria cantar o povo,
o deus crucificado em todos os momentos,
em todos os tormentos,
ressuscitado continuadamente
no santo sacrifício de ter força
e fé
nos corações.

Cochat Osório
Não sei de outra medida
de outra minúcia de outro olhar

Não sei de outra voz
reclinada na linguagem do ar
ou na cegueira de um astro

Não sei de outra escassez
ou sabor
sem a cal de um ombro. Não sei.

Fernando Jorge Fabião

EUGÉNIO DE ANDRADE

O que de seu tem,
o que tem de mais belo
é grego ou toscano.

A mesma forma
infrangível
de receber as nuvens,
alegria
de estar na terra lavrada,
de tê-la entre mãos
friável,
de encontrar um corpo na noite.

O mesmo gosto de água soterrada,
a mesma paixão pela vida.

Obstinada.

10 de Dezembro de 1972

António Osório

segunda-feira, 6 de setembro de 2010

S PORTUGUÊS

Sertório

Sebastião

Saldanha

Sidónio

Salazar

Spínola

Sá-Carneiro

Soares

Sampaio

Santana

Sócrates

Liberto Cruz
Ai-je été Roi des Deux Siciles
quand les sirènes s'envolaient
en riant aux anges des îles
par les fenêtres du palais

ou bien ce chevalier de Malte
qu'un souvenir de l'Orient
invitait l'instant d'une halte
à croquer la lune en croissant

Rien ne témoigne de mes fables
don't s'enchantèrent les oiseaux
qu'une défroque d'incroyable
oubliée au porte-manteau

Paul Gilson