sexta-feira, 18 de fevereiro de 2011

Love's philosophy

The Fountains mingle with the river               Correm as fontes ao rio
And the rivers with the ocean,                      os rios correm ao mar;
The winds of heaven mix for ever                 num enlace fugidio
With a sweet emotion;                                 prendem-se as brisas no ar...
Nothing in the world is single,                      Nada no mundo é sòzinho:
All things by a law devine                             por sublime lei do Céu,
In one another's being mingle -                     tudo frui noutro carinho...
Why not I with thine?                                  Não hei-de alcançá-lo eu?

See the mountains kiss high heaven            Olha os montes adorando
And the waves clasp one another;              o vasto azul, olha as vagas
No sister-flower would be forgiven            uma a outra se osculando
If it disdain'd its brother:                            todas abraçando as fragas...
And the sunlight clasps the earth,               Vivos rútilos desejos,
And the moonbeams kiss the sea -            no sol ardente os verás:
What are all these kissings worth,              --Que me fazem tantos beijos,
If thou kiss not me?                                   se tu a mim mos não dás?

Shelley
(Luís Cardim)

quinta-feira, 17 de fevereiro de 2011

F. HÖLDERLIN

É de uma tal vaidade, o discurso da poesia.
Por vezes, até nem sinto que as botas que uso
não transportam já consigo o sentido da vida.
E quanto a isso, não há canções, poemas, que o contradigam.
Uma expressão sem rosto, uma frase sem sentido,
a que, a custo, já não se regressa nunca.
Fecha-se então o pensamento, como um pêndulo
à procura do suplício. Ou de uma lição
que não venha nos livros e que, resistindo
interiormente, sobre nós caia e perdure.
Lá fora, só o vento sopra: sôfrego e inseguro.
Fecham-se os olhos, sossobram os esforços -- mas,
na agitação do silêncio, procuram-se apenas os mais puros.

Fernando Guerreiro
Ai madre, ben vos digo:
mentiu-mh o meu amigo:
     sanhuda lh' and' eu.

Do que mh-ouve jurado,
pois mentiu per seu grado,
     sanhuda lh' and' eu.

Non foi u ir avia,
mais ben des aquel dia
     sanhuda lh' and' eu.

Non é de mi partido,
mais por que mh-á mentido,
     sanhuda lh' and' eu.

Pero Garcia Burgalês
Às portas do céu
Um demo espiava.
Uma estrela se deu
Feita sacrifício.
Sobre ele lançou
Um rastro brilhante
De prata e de ouro,
Como um cavaleiro
Que ao galopar
O seu turbante
Viu se desatar
E para trás deixou
Um véu a pairar.

Ibn Sara

(Adalberto Alves)

quarta-feira, 16 de fevereiro de 2011

O poeta que em grã dor não teve parte
chora fingindo, e toca-nos tão fundo!
Quem sofre de verdade não tem arte
para a tristeza revelar ao mundo.

poema sânscrito anónimo

(Jorge de Sena)
É da condição dos seres imperfeitos aspirarem à perfeição.

terça-feira, 15 de fevereiro de 2011

ADAGIO

As folhas d'oiro, uma a uma,
Vão os plátanos despindo;
Ouço-as na álea caindo
Numa cadência de espuma...

Mais uma, negra, se abate,
Como bacante já lassa:
Rolando quase me bate
Num agoiro de desgraça.

Erguem-se agora ligeiras,
Lá partem, rentes do chão,
Todas juntas em fileiras,
Numa brusca emigração.

Sobre as áleas alagadas
Parecem almas sem nome
Que leva pra além dum rio
Caronte de mãos geladas...

Dezembro abre com fome
A goela de vazio...

Alexandre d'Aragão

HOJE FARPADO

A pólvora etérea
na cinza das balas
a história dos homens
nos homens deitados
o tempo em espera
no beijo dos mortos
a história dos homens
nos homens sem corpo
e nós meu amor
em súbito alarme:

um guarda exterior
com olhos de arame.

Fernando Alvarenga

SAUDADE MINHA

Minha saudade as cousas transfigura
Num estranho delírio semelhante
Ao desse eterno cavaleiro-andante
Paladino do sonho e da loucura:

Minha saudade é fonte que murmura
E em seu cantar humilde e marulhante
Mata a sede que abrasa o caminhante
Só de o embalar na líquida ternura...

Minha saudade os mundos alumia,
Os mortos ressuscita e é um sol-nascente
Doirando ainda as trevas da agonia;

Minha saudade é a força misteriosa
Que torna cada cousa em mim presente
E a minha dor presente em cada cousa.

Anrique Paço d'Arcos

segunda-feira, 14 de fevereiro de 2011

Korf inventou uma Arte da Piada
que só produz efeito horas depois.
Ouve-se aquilo com profundo tédio.

Mas, como se um rastilho ardera quieto,
acorda-se de noite, alegremente,
sorrindo-se feliz como um bebé de mama.

Christian Morgenstern

(Jorge de Sena)

À UNE PASSANTE

La rue assourdissante autour de moi hurlait.
Longue, mince, en grand deuil, douleur majestueuse,
Une femme passa, d'une main fastueuse
Soulevant, balançant le feston et l'ourlet;

Agile et noble, avec sa jambe de statue.
Moi, je buvais, crispé comme un extravagant,
Dans son oeil, ciel livide où germe l'ouragan,
La douceur qui fascine et le plaisir qui tue.

Un éclair... puis la nuit! -- Fugitive beauté
Dont le regard m'a fait soudainement renaître,
Ne te verrai-je plus que dans l'éternité?

Ailleurs, bien loin d'ici! trop tard! jamais peut-être!
Car j'ignore où tu fuis, tu ne sais où je vais,
Ô toi que j'eusse aimée, ô toi qui le savais!

Baudelaire

CAIS

Nunca parti deste cais
e tenho o mundo na mão!
Para mim nunca é de mais
responder sim
cinquenta vezes a cada não.

Por cada barco que me negou
cinquenta partem por mim
Mundo pequeno para quem ficou...

Mundo pequeno para quem ficou...

Manuel Lopes

PRESENTES DE ANIVERSÁRIO DO ANO DE 64

uma corda para enforcar-me
caso fosse necessário
em dia de desespero
em dia de aniversário

um peixe morto com a seguinte dedicatória:
«para tua inspiração da tua Frederica» --
o peixe era de prata

a miniatura do meu tamanho
com os cálculos do espaço que ocupo
todos meus sentimentos de culpa
e um rol de pecados inomináveis

as obras completas de Freud
o mapa da ilha do tesouro
um deus embrulhado em celofane
e um escafandro
e uma bússola

(Jheronimus Bosch
deitado sobre o travesseiro
com um sorriso tristonho
foi a maior surpresa)
e num envelope lacrado o dia da minha morte
com um selo de riso solto sem rosto
(posto que era apenas um sorriso triste)

Pedro Garcia

domingo, 13 de fevereiro de 2011

CALÇADA DOS MESTRES

Três velhas e eu,
na última taberna de Campolide.
Falavam de ir "levantar" os maridos,
o que deles resta.
Mas não estão "capazes":
dois anos debaixo da terra
nem sempre é o bastante.
"O meu João era mais forte do que
o teu" -- trabalho de vermes,
apenas. Também "por esta altura
morreu o Joaquim Sapateiro",
recordam. Como se já só
da morte vivessem
(o que não foge demasiado
à verdade geral:
alimentos em preparação -- ou cinzas).

Há quem tenha estado
dez anos debaixo da terra,
antes de poder ser "levantado"
-- e há quem nunca tenha estado vivo,
acrescenta o autor destes versos,
condensando a tarde numa garrafa vazia.

Estão a perceber agora
por que é que eu gosto tanto
de tabernas?
(Não respondam; o poema termina aqui,
porque a Dona Joana tem de ir ao oculista.)

Manuel de Freitas 

SANTO ANTÓNIO DOS CAVALEIROS

Um pequeno cais sem pedra nem saudade
Acaba num jardim de barcos a fingir
Num horizonte de fumo e de castanhas
Entre anúncios, collants e supermercados

(Não vinha ninguém nesta camioneta)
Minutos pesados se passaram entretanto
O néon dos anúncios do prédio em frente
Acorda-nos dum sonho já pouco perfeito

Outras camionetas vão encher o largo
Alguns indianos, chineses sem palavras
Misturam-se com moçambicanos perdidos
No metro que os engole tão pontualmente

E passam por nós casais quase exemplares
Cada um com um filho que dorme ao colo
E cada filho com o sono mais pesado
(Sem outra mão para os sacos de plástico)

Jornais velhos com notícias já perdidas
Chegam devagar aos pés de quem espera
O frio e o vento não perdoam no cais
E (sabemos) não é ainda esta a camioneta

José do Carmo Francisco

sexta-feira, 11 de fevereiro de 2011

Poemas Póstumos

autor: António Gedeão (pseudónimo de Rómulo de Carvalho, Lisboa, 1906-1997)
título: Poemas Póstumos
edição: 5.ª
local: Lisboa
colecção: «Colecção Poética» #1
editora: Edições João Sá da Costa
ano: 2000
págs.: 103
dimensões: 20,6x12,7x0,5 cm. (brochado)
impressão: Tipografia Guerra, Viseu

SERRANILHA

A serra é alta, fria e nevosa;
vi venir serrana, gentil, graciosa.
Vi venir serrana gentil graciosa
cheguei-me per'ela con gran cortezia.
Cheguei-me per'ela com gran cortezia,
disse-lhe: «Senhora, quereis companhia?»
Disse-me: «Escudeiro segui vossa via.»

Gil Vicente

SONETO

Quem te sonhara plasma de água e canto,
Límpida e nua, rosa de cristal,
Substância de silêncio concentrado
Egressa de meu sonho para o azul.

Quem te cantara acima de meu sonho,
-- Quedo este amor -- só puro pensamento
E corpo nu, beleza fabulosa
Que a morte apenas torna perdurável.

Não mais meu canto, que hoje serenado,
Pastor de sombras, te transmuta em símbolos,
Alheio ao tempo, junto a um velho rio.

Não mais o sonho, agora solitário;
Amor não mais, que, a vida alimentando,
Flui subterrâneo, em mito transformado.

Darcy Damasceno

STANZAS FOR MUSIC

Muita mulher tem beleza,
nenhuma a tua magia;
e a tua voz tal riqueza,
que nem a da melodia
por sobre as águas do mar:
quando, num encantamento,
sonhando adormece o vento
e a onda pára um momento
e desfalece, a brilhar...

E a lua no céu fiando
a sua teia, a sorrir;
e o mar brandamente arfando
qual criancinha a dormir:
assim, dentro da minha alma,
eu me inclino, ao encontrar-te,
me suspendo, a escutar-te,
me curvo, para adorar-te:
com funda emoção, mas calma.

George Gordon Byron

(Luís Cardim)

quinta-feira, 10 de fevereiro de 2011

É dever sacro do fogo alastrar
Alar aos astros    falar
Em múltiplas línguas a origem
E sua própria consumação.

Ao homem é dever do fogo
Levá-lo rubro aos metais
Moldar-lhe a mão rupestre
Até à mais branda penugem.

São do fogo e do homem conquistas
Os planaltos    sinais no deserto
E salvação no mar.

José Carlos González
Eu, louçana, en quant' eu viva for,
nunca já mais creerei per amor,
     pois [que] me mentiu o que namorei,
     nunca já mais per amor creerei,
     pois que mi mentiu o que namorei.

E, pois m' el foi a seu grado mentir,
des oimais me quer' eu d'amor partir,
     pois [que] me mentiu o que namorei,
     nunca já mais per amor creerei,
     pois que mi mentiu o que namorei.

E, direi-vos que lhi farei por en:
d'amor non quero seu mal, nen seu ben,
     pois [que] me mentiu o que namorei,
     nunca já mais per amor creerei,
     pois que mi mentiu o que namorei.

Martim de Padroselos
Um áspero deserto me encerra no seu peito
Do qual sou sua pena e palpitar.
Sob a veste da noite por mim arde uma brasa
E luz formosa a túnica do amanhecer.
Dou-me às trevas: cálido vento
Que entre pestanas de nuvens vai passando.
A noite, grandes e negras pupilas,
Cerra-me os olhos
E sorri-me a aurora com soberbos dentes.

Ibn Al-Murahhal 

(Adalberto Alves)

quarta-feira, 9 de fevereiro de 2011

O CÃO É O SEU PRÓPRIO PASTOR

O cão é o seu próprio pastor,
disse-te um dia, cansado de tantas nuvens
sorumbáticas. Um pedaço de broa bem mordida
cresce nos dedos, nesses férteis veios de lágrimas
e pomares.
Grinaldas foram as tripas do cão
antes de as nozes da ceia terem sido
uma madeira patética, leite de cabra a arder.

Não sei se a boca é inválida
ou se um linho de cerejas mutilou os dedos
da tecedeira.
Também o madeiro ficou carbonizado
dos joelhos em febre à fronte.
O fim lógico e justo das robínias
e de todos os materiais de cheiro e mel
é uma surdina,
pedra que bate em pedra e rola
e canta e reza trigos bonitos.

O cão castanho, rasgador de céus
é o seu próprio pastor.

Casel -- 1 de Dezembro de 1990


Fernando  Grade

SOL DE JUNHO

O sol de Junho irradia,
sem se extinguir a moinha
a chover-nos dentro.
Somos atravessados pela melancolia,
choro intenso de lágrimas secas.
Trazemos em nós o próprio feto,
que continuamente violentamos.
VI-2001

CÃTIGUA fUA HA DITA SEÑORA.

   O cuydado muy fentydo
domde morte fe mordena
he caueis de ter marido,
& eu fempre mynha pena.

   E naquyfto contemprando
vay creçendo o defcomforto,
que defmayo em cuydando,
& cayo mil vezes morto.
E fora de meu fentido
com tal morte coal fordena
pera mym veru' marydo,
fem vos verdes mynha pena.

Nuno Pereira

terça-feira, 8 de fevereiro de 2011

A corda tensa que eu sou,
o Senhor Deus é quem
a faz vibrar...

Ai linda longa melodia imensa!...
-- Por mim os dedos passa Deus     e então
já sou menos Som     e não
se sabe mais da corda tensa...

Sebastião da Gama

A ÚLTIMA ESPERANÇA

Chivera
naquela manhã viera
trazer o filho que morria
no armazém do patrão
para receber a guia
do lactário que dá injecção.

Disseram-lhe
que ele não podia
ser dispensado do serviço
só porque o filho tinha feitiço
e não comia há dois dias!

Na outra manhã
Chivera
já não trazia o
filho que morria
mas sim os olhos chorando
a boca muda protestando
a última esperança perdida;

só os sacos de milho
das lavras dos seus irmãos
no armazém esperavam
a hora das suas mãos
para mais um dia de vida...

Carlos Gouveia

PARAGEM

Estou numa encruzilhada.

Tenho um caminho na frente,
E os meus dois braços abertos
Indicam mais dois caminhos.

Se eu soubesse qual dos três
Caminhos é o meu caminho!

Talvez o que vem bater
No meu peito e nos meus olhos...

Talvez aquele que vem
Apertar a minha mão...

Talvez o outro, -- quem sabe?

Dentro de mim, uma voz
Diz-me que só um caminho
Merecerá os meus passos.

Não me diz, porém, qual é.

E, para não perder tempo,
E dar passos escusados
Deixo o tempo ir passando...

Alberto de Serpa

POÉTICA

Poderia dizer que sou um Deus;
que as estrêlas aureolam a minha cabeça imaginativa;
que a todo o instante posso criar
tantos mundos ao sabor dos meus desejos.

Poderia dizer que sou um Deus;
que um gesto meu é capaz de multiplicar os pães
que as multidões mastigarão sofregamente;
que todos os homens vêm para a adoração do meu poder ilimitado.

Poderia dizer que sou um Deus;
que faço surgir nos desertos os trigais ondulantes;
que uma simples palavra minha provoca a fraternidade
entre os homens que se abraçam com um sorriso no rosto.

Mas sou, como os outros, telúrico e humano,
uso o silêncio da galocha, grito,
trabalho e sinto fome, oceânico e lúbrico,
ando com a barba por fazer.

Aluízio Medeiros

segunda-feira, 7 de fevereiro de 2011

ADAGIO CANTABILE

O cego deu à manivela
Da velha e triste pianola
Que era a alegria da vila:
Mas já ninguém vem à janela...
-- Pois vindo davam-lhe esmola
E ocultos podem ouvi-la.

Carlos Queirós

JUNGHÄNEL, 2000

Diferença nenhuma: «Christ lag
in Todes Banden». Ou
tão-só a certeza de não haver,
a esperar-nos, um pai abandonável,

mera carícia de pó
folheando o evangelho.

Manuel de Freitas

É BOA A GUERRA

Não chores, rapariga, é boa a guerra.
Lá porque o teu rapaz ergueu as mãos ao céu
E a galope o cavalo se perdeu,
Não chores, não.
É boa a guerra.

Tambores de regimento rufam roucos,
E esta gente sequiosa de lutar
Nasceu para a recruta e pra morrer.
A inexplicada glória os sobrevoa,
É grande o deus da guerra, e é seu reino
Um campo com milhares a apodrecer.

Não chores criancinha, é boa a guerra.
Porque o teu pai tombou na lama da trincheira,
Esfacelado o peito e já sem vida,
Não chores, não.
É boa a guerra.

Bandeiras crepitando esvoaçantes,
Águias douradas, rubras! Esta gente
Nasceu para a recruta e pra morrer.
Mostrai-lhe as eficácias do massacre,
Dizei-lhe da excelência de matar,
De um campo com milhares a apodrecer.

Mãe cujo amor é qual botão mesquinho
Ne esplêndida mortalha de teu filho,
Não chores, não.
É boa a guerra.

Stephen Crane

SOIRS

Il y a de grands soirs où les villages meurent
Après que les pigeons sont rentrés se coucher.
Ils meurent, doucement, avec le bruit de l'heure
Et le cri bleu des hirondelles au clocher...
Alors, pour les veiller, des lumières s'allument,
Vieilles petites lumières de bonnes soeurs,
Et des lanternes passent, là-bas dans la brume...
Au loin le chemin gris chemine avec douceur...
Les fleurs dans les jardins se sont pelotonnées,
Pour écouter mourir leur village d'antan,
Car elles savent que c'est là qu'elles son nées...
Puis les lumières s'eteignent, cependant
Que les vieux murs habituels ont rendu l'âme,
Tout doux, tout bonnement, comme de vieilles femmes.

Henry Bataille

domingo, 6 de fevereiro de 2011

A CIDADE (NÃO É LISBOA)

Grande como uma aldeia
pequena como gente que não se olha
as praças onde rimos e nos beijamos
os cafés onde conversamos

Tiago Gomes

G. F. H.

E de novo me defronto consigo sem coragem
Repare que não estamos em Dublin
Nem este nevoeiro é o seu nesta manhã
Nem o disco reproduz totalmente a sua escrita.

Encolho-me nas definições de quem percebe
Cito Beethoven com facilidade mas não chega
E a sua perfeição não me provoca qualquer náusea
Antes me atrevo a repetir as audições

Se a perfeição existe você é então perfeito
Os sons arrumados na pauta são desenhos
E a realidade que retratam não existe
Apenas o seu mundo a compreende

José do Carmo Francisco

sábado, 5 de fevereiro de 2011

Às vezes apetece
um pequeno pátio      um sibilar de vento
e aroma de mar
apetece um sulco de giz
no rosto do poema
um laço
uma ponte entre o clamor do vento
e a haste do mundo

às vezes apetece
um mapa
um gesto camponês
lavrando a solidão incendiando a terra

apetece um ofício puro
uma estrela ardida no lugar do coração.

Fernando Jorge Fabião

VIESSES TU POESIA...

Viesses tu, Poesia,
e o mais estava certo.
Viesses no deserto,
viesses na tristeza,
viesses com a Morte...

Que alegria mereço, ou que pomar,
se os não justificar,
Poesia,
a tua vara mágica?

Bem sei: antes de ti foi a Mulher,
foi a Flor, foi o Fruto, foi a Água...
Mas tu é que disseste e os apontaste:
-- Eis a Mulher, a Água, a Flor, o Fruto.
E logo foram graça, aparição, presença,
sinal...

(Sem ti, sem ti que fora
das rosas?)
Mortas, mortas pra sempre na primeira,
morta à primeira hora.)

          Ó Poesia!, viesses
          na hora desolada
          e regressara tudo
          à graça do princípio...

Sebastião da Gama

sexta-feira, 4 de fevereiro de 2011

Poesia de Ontem e de Hoje para o Nosso Povo Ler

título: Poesia de Ontem e de Hoje para o Nosso Povo Ler
antologiador: José Régio (Vila do Conde, 1901-1969)
os poetas: João Roiz de Castelo Branco, Jorge de Aguiar, Sá de Miranda, Luís de Camões, 2 anónimos, Frei Agostinho da Cruz, Francisco Rodrigues Lobo, Nicolau Tolentino, Tomás António Gonzaga, Bocage, António Feliciano de Castilho, Almeida Garrett, Soares de Passos, João de Deus, Antero de Quental, Gonçalves Crespo, Guerra Junqueiro, Gomes Leal, Fernando Caldeira, Cesário Verde, António Nobre, Eugénio de Castro, António Feijó, Afonso Lopes Vieira, António Correia de Oliveira, Augusto Gil, Florbela Espanca, Teixeira de Pascoais, Afonso Duarte, João de Barros, Sebastião da Gama, Fernando Pessoa, Pedro Homem de Melo, Francisco Bugalho, Fausto José, Adolfo Casais Monteiro, Alberto de Serpa, Miguel Torga, Saul Dias, José Régio.
colecção: «Colecção Educativa», Série G, #5
edição: Campanha Nacional de Educação de Adultos
local: [Lisboa]
data: 1956
págs.: 116
dimensões: 16,5x11,3x1,3 cm. (brochado)
impressão: Neogravura, Lisboa
capa e ilustrações: António Vaz Pereira
obs.: o poema de Régio foi incluído pelos organizadores da colecção, e não pelo próprio.
                                                             Invadiu-me uma sensação de calma,
                                                            de tristeza e de fim.
                                                            VIRGINA WOOLF

Ao teu lado, mudo.
Suponho que pousei a mão
No teu ombro, não sei,
Ausentes ambos,
Tu do ombro, eu da mão.
Lá fora, não muito longe
Do vidro, a manhã passa
E é calma, tristeza, fim.

Nuno Rocha Morais

PRELÚDIO

                                                               Para António Aurélio Gonçalves

Quando o descobridor chegou à primeira ilha
nem homens nus
nem mulheres nuas
espreitando
inocentes e medrosos
detrás da vegetação.

Nem setas venenosas vindas no ar
nem gritos de alarme e de guerra
ecoando pelos montes.

Havia somente
as aves de rapina
     de garras afiadas
as aves marítimas
     de voo largo
as aves canoras
     assobiando inéditas melodias.

E a vegetação
cujas sementes vieram presas
nas asas dos pássaros
ao serem arrastadas para cá
pelas fúrias dos temporais.

Quando o descobridor chegou
e saltou da proa do escaler varado na praia
enterrando
o pé direito na areia molhada

e se persignou
receoso ainda e surpreso
pensando n'El-Rei
nessa hora então
nessa hora inicial
começou a cumprir-se
este destino ainda de todos nós.

Jorge Barbosa
Era de noite
Estava com a maria da purificação que falou:
-- aliança perdida no mar dá azar!
-- ou sorte
-- sim...

ouvia-se um trio com trompete de chet baker
-- eu usava aliança quadrada!
-- Ahh essas são antigas! A minha era fininha...

A voz de chet baker a cantar é como uma vadiagem ébria

-- ...aqui ainda é assim; não sei como será lá nas outras bandas!...

era noite a fingir de fantasias entre objectos silenciosos e livros
com dedicatórias de relações que o tempo ultrapassa inventando
outras façanhas d'amores e conversas tantas como nus & loucos
do daqui a pouco nascer do dia

José Andrade (Zan)

quinta-feira, 3 de fevereiro de 2011

CORO

2

Quem não quer morrer não sabe
que a Morte é mais preferida:
-- vive-se à custa da Morte...
-- morre-se à custa da Vida...

Edmundo de Bettencourt

CERNE

Nada a ver com a fonte
mas com a sede

Nada a ver com o repasto
mas com a fome

Nada a ver com o plantio
mas com a semente

Olga Savary

SONETO

Na branda luz do frio, gravo a ternura
De andar sofrendo, pela vez primeira,
O amor que, por engano, a vida inteira
Transforma numa lenta desventura.

Se no ar desta manhã sopra tão pura
A obrigação de respirar-me, à beira
De uma esperança enferma e derradeira,
Vou respirando a flor de uma armadura

Imposta pelo amor. Sobre a incerteza
Do noivo abandonado, sobre a firmeza
De prosseguir lutando, e ardentemente

Este poder desperta o ardor de um canto
No cárcere de vidro onde, inclemente,
O amor confina o amor, como num pranto.

Marcos Konder Reis

CANTIGA DE MANA ZEFA

     Ainda me lembro dela
          matrona forte desengonçada
tinha sempre uma oração nos olhos
          uma canção nos lábios grossos

          dorme menino dorme
     oh! oh! oh! oh! oh!
          cazumbi não está a vir
     mana Zefa tá lh'olhar

          tinha ciúme do menino
     de quem mana Zefa falava com paixão
          um dia perguntei com ansiedade
     se o menino seria assim como eu

mana Zefa olhou-me tristemente
     e com lágrimas na voz cantou
          -- não fala assim meu menino
               Deus não faz filho mulato

Rui Burity da Silva

quarta-feira, 2 de fevereiro de 2011

GOGH UMA ORELHA SEM MESTRE

1

Atravessados de um lado ao outro
como os colhões de Cristo
à aurora --
corpo em forma de prece
-- para não perderem o seu quê
enquanto as beiças lambuzam o deus
de langonha

O VOSSO DEUS CHEIRA A PEIXE
cheira a maná de 90$ o kilo

Ide à igreja lamber as mamas do Padre!
O-pa-dre!!!? -- com que nojo...

SABEM O QUE VOU FAZER?
Falar! Falar! Por aí falar da sarna das freiras
                 conas podres
           e do cheirete a mijo

Vocês curvados pelos cantos da sacristia
para que vos vão ao rabo
vocês a perorarem cá fora
à luz do sol a que não têm sequer direito
a roubar o espaço às crianças e aos automóveis, e às putas
que vocês bem sabem onde são

O CRISTO ESTÁ ENVERGONHADO
(VOCÊS NÃO SABEM O QUE É)
PENDURADO PELOS PÉS, CUIDADO
O vosso Cristo parece um coelho
O vosso Cristo é um coelho

-- Vou dar-lhe dois socos no cachaço
                     e comê-lo

                    com ervilhas

... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ...
... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ...

Bem bom este vosso Cristo

Paulo da Costa Domingos

EPITÁFIO

Meu nome -- minha pátria -- que são para ti?
Se fui nobre ou plebeu -- que diferença faz?
Talvez que eu tenha sido mais que os outros homens.
Talvez que tenha sido menos do que todos.
Contenta-te, estrangeiro, com ter visto um túmulo --
-- Sabes para que serve -- quem jaz nel' não conta.

Paulo Silenciário

(Jorge de Sena)

HUMANIDADE

                                                                                (Depois de ouvir My Buckett Get's A Hole In It)
A doçura daquela
voz a tristeza daqueles
olhos o calor da
trompete de
Armstrong o segregado
desmentindo o ódio
                                                                                                                                                                                                     7-VI-2005

terça-feira, 1 de fevereiro de 2011

à victor brauner

tiens c'est le chat illégal
quoi qu'absolument visible
il allume un feu tout blanc
il vient de jeter de l'eaux aux virgules
père    mère    poire    poète
attention le nain vous respire
fuez ses gants coupez vite le sable
on va être morts sous la table

Mário Cesariny

ROTEIRO DO NOVO-MUNDO

Com duas tábuas fiz
O barco onde navego
E onde sou tão feliz
Que nunca chego.

Meço a altura do sol, fico a sabê-la
Queimando a carne e a vista,
E à noite olho uma estrela
Que já talvez não exista.

Branquinho da Fonseca

SONÊTO DO FACHO IMÓVEL

Queimei as mãos no sol de um casario
Que nem pudera revelar mais puro.
Alto, saudoso, inatingido muro,
Onde com o céu rolei, num calafrio.

Brasa de estrêla, crepitar macio
De facho imóvel no silêncio escuro:
Sonho remoto vindo de um futuro
Que muito mal nas mãos desfaço e crio.

Queimei-as na insofrida claridade
Que desnudava as únicas janelas
Abertas sôbre o beco friorento.

Uma aflição de ausente, uma saudade
De azul perdido e flôres amarelas,
Restos de morte, patamar cinzento...

Alphonsus de Guimaraens Filho