quinta-feira, 30 de junho de 2011

AO LONGE, A VIDA

Agora eu sou a margem indiferente deste rio,
deste rio da Vida, que passa sem me ver...
Agora eu sou um desejo do esperado Fim,
um sonho que ficou por despertar,
uma lágrima apenas que jamais tardou
às chamadas da minha alma doente.
Eu sou o tédio,
O que ambicionou tudo o que não veio...
Eu sou o tédio, eu sou a morte... eu sou o frio...
Alberto de Lacerda

TROVAS A UMA CATIVA

Aquela cativa
Que me tem cativo,
Porque nela vivo
Já não quer que viva.
Eu nunca vi rosa
Em suaves molhos,
Que para meus olhos
Fosse mais formosa.

Nem no campo flores,
Nem no céu estrelas,
Me parecem belas
Como os meus amores.
Rosto singular,
Olhos sossegados,
Pretos e cansados,
Mas não de matar.

Uma graça viva,
Que neles lhe mora,
Para ser senhora
De quem é cativa.
Pretos os cabelos,
Onde o povo vão
Perde opinião
Que os louros são belos.

Pretidão de Amor,
Tão doce a figura,
Que a neve lhe jura
Que trocara a cor.
Leda mansidão
Que o siso acompanha;
Bem parece estranha,
Mas bárbara não.

Presença serena
Que a tormenta amansa;
Nela enfim descansa
Toda a minha pena.
Esta é a minha cativa
Que me tem cativo,
E, pois nela vivo,
É força que viva.

Luís de Camões 

quarta-feira, 29 de junho de 2011

CANÇÃO

A nuvem que passa,
O sorriso que flutua,
Tudo
Quanto intensamente vive, --
O que é eterno e o que é frágil,
-- Detalhe de arquitectura,
Pedaço de céu,
Tudo,
Tem no espelho o mesmo peso,
O mesmo valor,
E a mesma realidade.

Anoitece nos meus olhos.

-- Se vens falar-me de amor,
vê lá bem se isso é verdade.

António Botto

terça-feira, 28 de junho de 2011

MEIO-DIA EM BROCOIÓ

Ante a glória, a esplender, tudo se obumbra!
Multiacende-se a sobremaravilha!
O radiecer frenético esfervilha!
A potência vulcânica deslumbra.

Ouro! Sideração! Não há penumbra!
O amarelo das árvores rebrilha!
A água se achamalota e rebrasilha!
O crisólito côncavo relumbra!

Plenitude! Loureja o meio-dia!
Luciferando, a fúria nos ofusca!
Treme a Terra, a eferver, fulge o flavor!

Apoteose! Ambreia-se a alegria!
A vida canta, a comburir corusca,
ensolarando a Guanabara em flor!

Martins Fontes

CABECINA EN BRONCE D'UNA DIOSA

Bronce head of  a goddess. From
Sadagh, nort-east Turkey.
British Museum

Anda nos tos güeyos la nueche
-- la primer nueche que vieron
los díes grandes de la infancia,
la nueche primordial
de la que faló Hölderlin,
la sencia escuro de la materia.

Falaré tamién del to pelo:
claro como les campes de trigo
de Tracia, digo de Paniceiros,
mesto como la lluz de la lluna
cuando ye marzo y tamos
fuera casa,
con diecinueve años
malapenes recién cumplíos.

Hai una curva de lluz nos tos llabios,
un rictus sensual y distante:
la barbadiella encesa y nidia,
la nariz caricol de llume
na nuche ciego.

Too ello delata les manes, l'artista.
Los güeyos que vieron Troya y la ceniza
nes altes palabres del poeta.

Xuan Bello

segunda-feira, 27 de junho de 2011

LUZ RECENTE

Respiras com cautela a luz
recente.
Deve ter acordado: canta.
Anos e anos a luz adormecida
no fundo da pupila.
Já nem te lembravas
que fora assim tão jovem
e tinha
o nome da alegria.
Agora canta. Canta
em surdina.

Eugénio de Andrade
Quen a sesta quiser dormir,
conselhá-lo-ei a razon:
tanto que jante, pense d'ir
à cozinha do infançon:
e tal cozinha lh' achará,
que tan fria casa non á
na oste, de quantas i son.

Ainda vos en mais direi
eu, que um dia i dormi:
tan bõa sesta nan levei,
des aquel di' an que naci,
como dormir en tal logar,
u nunca Deus quis mosca dar
ena mas fria ren que vi.

E vedes que ben se guisou
de fria cozinha teer
o infançon, ca non mandou
des ogan' i fogo acender;
e, se vinho gaar d'alguen,
ali lho esfriarán ben,
se o frio quiser bever.

Pero da Ponte
Sou Ibn 'Ammar: a minha glória
Não há quem a possa ignorar
A não ser tolos, dos quais não reza a história,
E que nem astros conseguem enxergar.

Se o meu Tempo me despreza
Não é isso motivo para espanto
Notas em livros é o que mais se preza
E nas margens se escrevem, no entanto.

Ibn 'Ammar

(Adalberto Alves)

domingo, 26 de junho de 2011

Fábulas

autor: Curvo Semedo (Montemor-o-Novo, 1766 - Lisboa, 1838)
título: Fábulas
prefácio: H. Zeferino de Albuquerque
colecção: Livros de Bolso Europa-América #395
editora: Publicações Europa-América
local: Mem Martins
ano: s. d.
págs.: 167
dimensões: 17,9x11,4x0,9 cm. (brochado)
impressão: Gráfica Europam, Mira-Sintra

sábado, 25 de junho de 2011

Eu pertenço à sonolência deste azul,
à nudez das estátuas de areia
povoando a solidão nocturna das praias.
Fui com os pescadores e voltei,
volta menino para que os que te amam
não sofram a ansiedade da espera.
Trouxe conchas e peixes de prata,
cachos de estrelas e redes de vento
e mergulhei na água que sabia a óleo
e bebi a aguardente dos náufragos
e acreditei nas histórias da viuvez
das mulheres agachadas nas dunas.
Eu podia ter sido marinheiro,
pescador das pérolas que há no êxtase
da palavra, eu podia ter sido tudo,
mas acabei por desembocar numa baía
com o assombro da infância
a falar-me de sereias e de fadas junto à cama.

José Jorge Letria

sexta-feira, 24 de junho de 2011

CREPÚSCULO

Paira no azul do céu, fino, leve, de espuma,
um dolente languor de mulher tropical.
Há, na sombra que desce, um adejar de pluma...
Choram pelos jardins repuxos de cristal.

Tal um fumo sutil, sobe no espaço a bruma.
Não tarda o luar... pois já no olente laranjal
piscam centelhas de ouro, e ainda, entre as folhas, uma
palpitação fugaz de pedraria ideal.

Calam-se na distância as estivais cigarras,
cruzam morcegos o ar. Que estranha melodia
crava na alma da gente as sibilinas garras!

Que tumultos, que ondear de dúvidas, que vão
desejo de sofrer! Que lágrima sombria
cai no vazio horror do nosso coração!

Ronald de Carvalho

Cãtigua fua q hofereçe aa dyta fenhora com estas rrezões alegadas.

    Que faybaes q huu de nos
fenhora por vos sospira
do cuydado quele tyra,
eu o tenho ja por vos.

    Eu o tenho ja senhora
pera nele padeçer,
quem fe dele tyra fora
mays defeja de vyuer.
Qual mereçe mays de nos,
elle em quoanto fofpira,
ou eu de quem fe nam tyra
cuydado que vem de vos.

Nuno Pereira

quinta-feira, 23 de junho de 2011

os seus cabelos
enganavam os
girassóis tinha os cabelos
loiros e
enganava os girassóis

valter hugo mãe

quarta-feira, 22 de junho de 2011

A PÓSTUMO

Viverás amanhã, sempre me dizes, Póstumo.
Esse amanhã, ó Póstumo, quando virá?
Quão longe mora? E aonde está? Onde buscá-lo?
Esse amanhã mais velho é que Nestor ou Príamo.
Esse amanhã tem preço? Qual o preço? Diz-me.
Viverás amanhã. E viver hoje é tarde.
Aquele é sage, ó Póstumo, que ontem viveu.

Marcial

(Jorge de Sena)
os dias passam por ele
sem que ele dê pelo passar dos dias por ele

adoece e não sabe que é o fim
abana a cauda e sucumbe
ao tiro no crânio
                  com espanto
à injecção letal
                  em paz

27-I-2003

J. B. DIAS, NO LEITO DO HOSPITAL

Tudo aqui é branco
A cama e os lençóis
E o mosaico que brilha...
Tudo aqui é branco
As batas e os enfermeiros
O tecto que não olho
E a arrastadeira...
Escuro aqui só eu
Bola preta que rola
No travesseiro lavado.
Parece-me estar a ouvir os enfermeiros:
O doente do número treze,
O doente do vinte e quatro...
E o doente preto.
Tudo aqui é branco.
Tudo, menos eu.
De manhã a enfermeira
Tira-me a temperatura.
É velha ou nova, bonita ou feia?
É branca.
«Senhora enfermeira, dê-me a sua mão»
Ai o negro de Michael Gold.
Eu não peço a mão à enfermeira.
Aqui tudo é branco
Tudo aqui é branco
Menos esta bola preta
Em que os olhos se escondem.
«Formas alvas, formas brancas...»
Serão assim os versos?
Ah, que importa isso agora?
Julgo que vou morrer
Morrer assim sozinho
Sozinho no meio de tantas coisas brancas
Que giram, que giram à minha volta.
«Formas alvas, formas brancas»
«A sua mão, enfermeira»
Batas brancas, parede, tecto, tudo
Branco, branco, branco...
A morte será branca?

                                                                                                     Coimbra, 1950 (1951?)

Antero Abreu

terça-feira, 21 de junho de 2011

A FORMA JUSTA

Sei que seria possível construir um mundo justo
As cidades poderiam ser claras e lavadas
Pelo canto dos espaços e das fontes
O ar e o mar e a luz estão prontos
A saciar a nossa fome do terrestre
A terra em que estamos se ninguém atraiçoasse proporia
Cada dia a cada um a liberdade e o reino
Na concha na flor no homem e no fruto
Se nada adoecer a própria forma é justa
E no todo se integra como palavra em verso
Sei que seria possível construir a forma justa
De uma cidade humana que fosse
Fiel à perfeição do Universo
Por isso recomeço sem cessar a partir da página em branco
E este é o meu ofício de poeta para a reconstrução do Mundo.

Sophia de Mello Breyner Andresen

MAR PORTUGUÊS

Ó mar salgado, quanto do teu sal
São lágrimas de Portugal!
Por te cruzarmos, quantas mães choraram!
Quantos filhos em vão rezaram!
Quantas noivas ficaram por casar,
Para que fosses nosso, ó mar!

Valeu a pena? Tudo vale a pena
Se a alma não é pequena.
Quem quer passar além do Bojador
Tem que passar além da dor.
Deus ao mar o perigo e o abismo deu
Mas nele é que espelhou o céu.

Fernando Pessoa

segunda-feira, 20 de junho de 2011

Não o sol
que no ar se esquece e aquece
não a lua
que no lago se reflui
mas o frio
mas o vento.

Não o corpo
que com mortes se sustenta
não o rosto
que com rugas se remenda
mas a fonte
mas a vida.

Helder Macedo

ORAÇÕES DO AMOR -- III

Não sei o que tu pensas deste amor,
Nem, sequer, se um momento, um só que fosse,
Desejas dar alívio à imensa dor
                    Que esta paixão me trouxe...

É bem fundo e pesado o meu martírio
Em que a ansiedade é como um negro açoite;
Mas quem pode saber, formoso lírio,
                     O que o Sol pensa da Noite?!

António Fogaça

SONETO

O quanto perco em luz conquisto em sombra.
E é de recusa ao sol que me sustento.
Às estrelas, prefiro o que se esconde
Nos crepúsculos graves dos conventos.

Humildemente envolvo-me na sombra
que veste, à noite, os cegos monumentos
isolados nas praças esquecidas
e vazios de luz e movimento.

Não sei se entendes: em teus olhos nasce
a noite côncava e profunda, enquanto
clara manhã revive em tua face.

Daí amar teus olhos mais que o corpo
com esse escuro e amargo desespero
com que haverei de amar depois de morto.

Carlos Pena Filho

sábado, 18 de junho de 2011

Nobre Arquitectura

autor: António Arnaut (Cumieira, Penela, 1936)
título: Nobre Arquitectura
edição: 3.ª
editora: Hugin
local: Lisboa
ano: 2003
págs.: 89
dimensões: 21,7x12,5x1 cm. (cartonado)
capa: pintura de José Daniel Abrunheiro
fotografia: António Lopes
impressão: C/A Gráfica
obs.: 13 poemas traduzidos para francês e inglês, por José Agusto Seabra e Cristóvão de Aguiar, respectivamente

sexta-feira, 17 de junho de 2011

ORAÇÃO DO ATEU

Ouve meu rogo, Deus que não existes,
em teu nada recolhe as minhas queixas.
Tu, que aos homens mais pobres nunca deixas
sem consolo de enganos. Não resistes

a nosso rogo, e ao nosso anseio assistes.
Quando da minha mente mais te afastas,
eu mais recordo essas palavras castas
com que embalou minha ama as noites tristes.

Que grande és tu, meu Deus! Tu és tão grande
que não passas de Ideia; e é tão estreita
a realidade mesmo se se expande

para abarcar-te. Sofro à tua espreita,
inexistente Deus. Pois se viveras
existiria eu também deveras.

Miguel de Unamuno

(Jorge de Sena)

LA MORT DES OISEAUX

Le soir, au coin du feu, j'ai pensé bien des fois
À la mort d'un oiseau, quelque part dans les bois.
Pendant les tristes jours de l'hiver monotone,
Les pauvres nids déserts, les nids qu'on abandonne,
Se balancent au vent sur un ciel gris de fer.
Oh! comme les oiseaux doivent mourir l'hiver!
Pourtant lorsque viendra le temps des violettes,
Nous ne trouverons pas leurs délicats squelettes
Dans le gazon d'avril où nous irons courir.
Est-ce que les oiseaux se cachent pour mourir?

François Copée

quinta-feira, 16 de junho de 2011

A corcova calva do camelo
me traz o desejo
de incendiar as vogais
e ruminar as cinzas arenosas.

Como a alma acalma o coração?
Talvez com dromedários

Angela de Campos
Queridas pastelarias
queridos pastéis
queridas pessoas
querida fé
querido café

Adília Lopes

quarta-feira, 15 de junho de 2011

MUDEZ

Quando por fim voltares, traz no olhar
a nesga de areal onde algum dia
te encontrei entre a espuma e a maresia,
passeando a surpresa de haver mar.

Traz também nos cabelos o luar
e deixa que o veneno da poesia
nos envenene aos dois em sintonia,
como exige o mistério do lugar.

Talvez assim eu possa finalmente
segredar-te as palavras que não soube
dizer-te no momento em que te vi

pela primeira vez e, de repente,
o mundo foi tão grande que não coube
na minha voz e logo emudeci.

Torquato da Luz 

CAMINHO GRANDE

Fidjinha,
não fiques nunca, à noite, no caminho grande!

Que há correntes que arrastam
cavalos que relincham
macacos que são gente
e capòtónas que surgem por detrás dos barrancos...

E não andes por atalhos...

Que António Pama pode te assaltar
e deixar-te no chão, como uma pomba ferida...

António Nunes
As palavras são como as mulheres: há que saber pegar nelas da melhor maneira. O que nem sempre sucede.

CONTO DE FADAS

O ratão transformara-se num príncipe encantado de pau duro.
A bocetinha falante de Cinderela babava pelos bigodes.

                                   ***

Um reputado economista afirma
que assim como veio
a ditadura vai.
Escuto maravilhado.

                                     ***

12 O Armando é uma Boa Cabeça

Ele é excelente, efetivamente bastante bom
Acho maravilhosa a Luisinha
Não acho que ela seja fascista
Para mim foi-se o tempo
De ler Le Monde e mexer a bunda
Você vai me achar boba
Mas não consigo me livrar
Dos sentimentos românticos
O nosso convívio rendia muito
Minha cuca está fundida
Caralho

Roberto Schwarz

terça-feira, 14 de junho de 2011

EXÍLIO

O búfalo com chifres de prata
        poisa no nenúfar
no nenúfar do exílio
        búfalo ou borboleta

Jorge Lauten

BALLADE

A mansidão vasta
de um tenor
à moda antiga:
com calma e corpo
lentos
medindo os passos
com rigor.

A resposta imediata
de uma ave alta
que brincava de escapar:
rasgando os trilhos
tensos
em risco calculado
a jato.

A volta do velho toque
desafiado trovador
máquina enfurecida:
que brinca de controlar
medindo os riscos
lentos tensos
em trilhos construídos
com rigor a jato.

Frederico Barbosa

segunda-feira, 13 de junho de 2011

o verso fora de época

mudam-se os tempos mudam-se as ternuras

na primeira arcada
o gesto faz seu rio de ar
qual ideia ou brisa de imagens
na segunda arcada
a mão faz seu céu de calor
qual breve verso fora de época
na terceira arcada
(na última estação)
a queda é o voo verde
a escrita é a clave do sexo
E a vida um vago élan de afinação

as ternuras não mudam emudecem

Pedro Ludgero

domingo, 12 de junho de 2011

O Búzio de Cós e Outros Poemas

autor: Sophia de Mello Breyner Andresen (Porto, 6.XI.1919 -- Lisboa, 2.VII.2004)
título: O Búzio de Cós e Outros Poemas
edição: 3.ª (1.ª edição, 1997)
editora: Editorial Caminho
local: Lisboa
ano: 1999
págs.: 40
dimensões: 21x14,6x0,4 cm. (brochado)
capa: José Serrão
impressão: Tipografia Lousanense
tiragem: 2000

sábado, 11 de junho de 2011

EN BATEAU

Um violino geme
Em um barco singrando
No meu sonho tão brando
Como a curva do leme.

Prolonga-lhe a derrota,
De leve espuma um rastro;
E no topo do mastro
Leva uma gaivota...

Mas p'lo fio de espuma
Onde a noite se enreda,
Em um bicho de seda
No meu sonho se esfuma.

E eu acordo pensando
Em como se parece
Minha vida com esse
Leve barco singrando.

Carlos Queirós

ENTARDECER

Adormeceste a olhar o mar
Enquanto o sol se acoitava nas varandas.
Suave, na cortina da tarde,
O piano de águas tocava vagarosamente
Música para um destino branco,
Longínquo, azul e cada vez mais branco.

João Manuel Bretes

quinta-feira, 9 de junho de 2011

NUDEZ

A mentira do amor
Resiste na verdade
Da nudez
Na precisão branca
De uma lágrima

Sobre a madeira
Memórias de sonetos
Irregulares e castos
Deslocam a cor
Da morte à volta
A cidade sou eu
Esquecido em pedra

O cinema envolvendo
A palavra hoje.

João Lopes

SONETO

Eu tenho a pagar 10 e na carteira
Apenas tenho 8. Eis a arrelia.
Eis-me buscando em mente uma maneira
De pagar o que devo em demasia.

E fico às vezes nisto todo o dia,
Um dia inteirinho em estúpida canseira.
Se busco distrair-me, de vigia,
Olha-me a rir a dívida grosseira.

E entretanto na rua vão passando
Carros de luxo, altivos salpicando
O lodaçal dos trilhos sobre mim...

E sinto, na revolta, o algarismo,
Do trono do brutal capitalismo,
A rir de nós, os bobos do festim!

Rui de Noronha

NATUREZA-MORTA COM LOUVADEUS

Foi o último hóspede a sentar-se
no topo da mesa já depois do martírio.
As asas magníficas haviam-lhe sido quebradas
por algum vento. Perdera o rumo
sobre a película cintilante de água
no riacho parado. Tal como poisou
junto de nós, com o belo corpo magro
arquejante, lembrava, ainda segundo o seu nome,
um santo mártir. Enquanto meditávamos,
a morte sobreveio, e a pequena criatura,
que viera partilhar a nossa mesa,
depois de ter sido banida das águas
foi banida da terra. Alguém pegou
no volúvel alado corpo morto
abandonado sem nexo na brancura da toalha
-- que maculava --
e o atirou para qualquer arbusto raro
que o poeta ainda pôde fotografar.

Fiama Hasse Pais Brandão

quarta-feira, 8 de junho de 2011

NO TÚMULO DE UM ASTRÓNOMO

Amei demasiado as estrelas
do céu nu que percorri a dedo,
para que a noite, onde brilham, belas,
em mim seja surto de algum medo.

Eugénio Lisboa

UM SOBREVIVENTE DO TARRAFAL

Vejo-o velho
anarquista digno
e austero casaco
abotoado sem
gravata nem
dentes.


Quase pede licença para falar.


Chega-me um
hálito de morte
com a sua voz
sumida. Não me importa
tanto o que diz
nem como o diz.
A figura é tudo.

24-V-2003

ETERNO SÍMBOLO

Aureolado da opala, o topázio, a ametista
que o sol occíduo põe na agonia da tarde,
o monte que de légua, ou de léguas, se avista,
do amplo juso à cimeira, em pedrarias arde.

À sumptuosa mudez não há olhar que resista,
nem ao quieto esplendor quem se não acobarde.
Um silêncio de luz lhe vai da base à crista:
é o féretro da pompa, é o túmulo do alarde.

Em tal fulguração, translúcido, irradia
e essa translucidez que é apenas ilusória,
deixa ver que há um Além, além da fantasia.

Desce lenta, entretanto, a noite merencória...
Queda-se a natureza, amortalhada e fria,
na saudosa visão de um momento de glória.

Emílio de Meneses

terça-feira, 7 de junho de 2011

LINHA DA MÃO

Hiato na linha da mão
junto à pequena mancha azul
de tinta da última carta.
Paisagem de poros, sulcos
e sombras, mergulhada na água
espessa de um postal sem data
das baías nocturnas
exaustas do vento do mar.
Corte oblíquo na palma húmida
que esmaga a asa
do insecto sobre o vidro
onde a imagem se bifurca
e a boca torna baços, difusos
os rostos que se perdem na distância
de um aceno à despedida.

José Jorge Letria

LA NUECHE EN CASA

Soi esa tarde entre muches tardes,
la qu'escuende de la infancia
un laberintu de lluvia y sol.
Soi'l silenciu d'una alcoba,
hai años, onde escribo inútilmente.
Soi tolos díes que pasé esperando
llonxe, mui llonxe del mar.
Soi la fuyea seca que yo mesmu pañé,
la que depués escaecí
entre les páxines d'un llibru en blancu.
Soi unos versos de Gerardo de Nerval
que güei xustifiquen la mio vida.
Soi la rosa moyada pola lluvia,
secreta y efímera, distante.
Soi la voz del ríu, oculta
tres los fresnos de la infancia.
Soi la mirada, terrible e ayena,
de Vicent van Gogh.
Soi les coses que marchen,
les que nun permanecen.
Soi, fugazmente, estos versos.
Soi tamién tu y aquel otri
que mañana corrixe estos versos.
Soi esta tarde simbólica y triste,
la que miete pa siempre
la nueche en casa.

Xuan Bello
Tôdalas cousas eu vejo partir
do mund' en como soían seer,
e vej' as gentes partir de fazer
ben que soían -- tal tempo nos ven! --
mais non se pod' o coraçon partir
        do meu amigo de mi querer ben.

Pero que ome part' o coraçon
das cousas que ama, per bõa fé,
e parte-s' ome da terra ond' é,
e parte-s' ome du  gran prol ten,
non se pode parti'lo coraçon
        do meu amigo de mi querer ben.


Tôdalas cousas eu vejo mudar:
mudam-s' os tempos e muda-s' o al,
muda-s' a gente en fazer ben ou mal,
mudam-s' os ventos e tod' outra ren,
mais non se pod' o coraçon mudar
        do meu amigo de mi querer ben.


João Airas de Santiago

segunda-feira, 6 de junho de 2011

Eis nuvens...
Que espessas são!
Parecem formadas,
Deste lado do azul do céu,
Do fumo que ao arder
Madeira verde lhes deu.

Vem chuva fina,
        Poalha de prata
        A polvilhar terra ambarina.
Mas se um instante
O sol fica a brilhar
        É como escrava provocante
        Que se mostra a quem a vai comprar.

Ibn 'Ammar

(Adalberto Alves)

VINTE SÉCULOS DE REVOLUÇÃO...

Vinte séculos de revolução
e ainda há fome do pão, que é a poesia.
Quando tento saciá-la, tento em vão:
é meu ritmo perene, noite e dia.

Cristo, quero escutar Teu coração:
pendo a cabeça e escuto-o. Essa agonia
de fazer o poema, essa paixão,
na última Ceia começou. Seria

um de nós... um de nós era suspeito,
um de nós, entre os doze, Te trairia.
E, sob o peso dessa suspeição,

repousei a cabeça no Teu peito.
E esse ritmo de vida que eu ouvia
era o ritmo de fome deste pão.

Jorge de Lima

domingo, 5 de junho de 2011

65 Anos de Poesia

autor: Carlos Drummond de Andrade (Itabira do Mato Dentro, 31.X.1902 -- Rio de Janeiro, 17.VIII.1987)
título: 65 Anos de Poesia
antologiador: Arnaldo Saraiva
edição: 2.ª
editora: O Jornal
local: Lisboa
ano: 1989
págs.: 283
dimensões: 21x14,2x1,3 cm. (brochado)
capa: João Segurado
contracapa: foto de Luiz Augusto B. de Brito e Silva
impressão: Gráfica Europam, Mem Martins
obs.: no interior foto de Drummond e Saraiva (1966); o título da 1.ª edição é 60 Anos de Poesia (1985)

sábado, 4 de junho de 2011

NOVEMBRO

O oiro deste mês é insuportável.

Filho do sol eu não merecia
A abundância destas folhas pelo chão.
2-11-1963

Alberto de Lacerda

sexta-feira, 3 de junho de 2011

Alongado no leito, e a noite silenciosa,
Mal eu cansados olhos ao repouso dava,
Quando o cruel Amor me agarra p'los cabelos,
Me acorda e manda que em su' honra eu vele.
«Ó escravo meu, me diz, ó tu que a mil amaste,
Sòzinho jazes só, ó duro peito, aqui?»
Descalço e semi-nu, atiro-me p'ra fora,
Pelos caminhos vou, sem que caminho encontre.
E sigo sempre, e paro, e no parar hesito
Entre a vergonha de ir e o tédio de voltar.
Calam-se humanas vozes, e da rua os ruídos,
Ave nenhuma canta, e sequer ladram cães.
De tudo, apenas eu me atrevo a estar desperto,
Obedecendo ao império, Grande Amor, de ti.

Petrónio

(Jorge de Sena)

CONFISSÃO

No silêncio pesado do caminho,
ouviu-se um passo, cadenciado
na firmeza das horas decisivas.

A sentinela bradou:
                              -- Quem vem lá?...

O Homem podia ter respondido
qualquer coisa parecida
com: «gente de paz»...

Mas não. Onde a paz,
se no seu peito ardiam agonias
enraivadas,
se nos seus olhos boiavam
visões de fogo e de morte,
e as suas mãos,
(ó belas, generosas mãos!)
vinham ainda tintas
dos sangue dos camaradas?...
Não trocou portanto as falas.

Respondeu simplemente, sombriamente:
                   -- EU!

E a sentinela, varou-o com três balas.

Lisboa, 1949 (Maio)

Alda Lara

quinta-feira, 2 de junho de 2011

LÍRICA PARA UMA AVE

Num céu de chumbo e baionetas
caladas,
sobre uma floresta de sono
e demência,
tonta, esvoaça perdida
uma ave sangrenta.
Na turva e opressa manhã
se anuncia a cólera
do tempo.

Na hora
da aurora,
gemem ventos,
fluem surdos rios.

Cerra os olhos,
cala na garganta
a voz,
acorda audível
o pensamento:

No escuro cerne da floresta,
com sorrisos dependurados à entrada,
degola-se uma ave.
Por enquanto mais nada, senão
o torvo tinir dos talheres
no banquete da morte impossível.

Rui Knopfli

O PARADOXO DO VIAJANTE

Penso nos lugares aonde não mais voltarei:
não para dizer que neles se encerrou
o que deles ou através deles eu poderia ter sido.
Apenas para lembrar
que nunca lhes poderei dizer adeus.

Luís Filipe Castro Mendes

JÚBILO

Há um presságio de júbilo
à sua beira, um tecido
na trama do contrário

Uma rosa de mar
na sua esteira, uma espécie
de ardil em seu afago

Um modo
Um todo
Uma maneira

De misturar
o doce
e o amargo

Maria Teresa Horta

quarta-feira, 1 de junho de 2011

O FUMO

Do meu quarto, que dá sobre uns quintais,
Descubro todo o bairro; e, muita vez,
Vejo, evolar-se o fumo em espirais
                    Das negras chaminés.

Quando vou à janela, ao Sol poente,
Horas em Junho de acender os lares,
Meus olhos vão seguindo longamente
                    O fumo pelos ares.

E penso ver formarem-se na vasta
Imensidade, esplêndidas imagens;
Até que o fumo pelo Azul se gasta
                    Nas mais altas viagens.

Todo este quadro é tão banal, que então
Chego a rir-me de mim, do que resumo
Na minha eterna e doce aspiração...
                    Que se assemelha ao fumo.

António Fogaça

SONETO DO DESMANTELO AZUL

Então, pintei de azul os meus sapatos
por não poder de azul pintar as ruas,
depois, vesti meus gestos insensatos
e colori as minhas mãos e as tuas.

Para extinguir em nós o azul ausente
e aprisionar no azul as coisas gratas,
enfim, nós derramamos simplesmente
azul sobre os vestidos e as gravatas.

E afogados em nós, nem nos lembramos
que no excesso que havia em nosso espaço
pudesse haver de azul também cansaço.

E perdido de azul nos contemplamos
e vimos que entre nós nascia um sul
vertiginosamente azul. Azul.

Carlos Pena Filho