quinta-feira, 31 de março de 2011

CONSTRUÇÃO

Eles são os donos do mundo
e não sabem disso.
Daqui os vejo
bem no alto contra o espaço,
eles vêm e vão
pássaros sérios
deslocando nuvens.
Daqui os vejo criando
essa explosão precisa
de ferro cimento e paciência
-- agora um bem pensado
esqueleto de superpostas vigas.
E a gente fica cismando como é belo
o que eles criam e o simples permanecer
de um operário no alto da sua construção.
O pequeno quadrado (que será elevador)
desce e sobe por ossos de madeira
do poço por eles trabalhado.
Eles constroem o mundo
eles divididos mas tão fortes
eles são o mundo
e não se importam.

Eles levantam os castelos de agora
castelões provisórios no alto de suas torres.

Olga Savary

ODE À FLOR DE AMEIXIEIRA

O vento e a chuva apressam-se a afugentar a partida da Primavera,
Os flocos de neve, esvoaçando, chamam por ela,
Para lhe dar as boas-vindas.
As altas montanhas estão cobertas de um manto de gelo,
Mas a linda ameixieira continua ainda em flor.
Linda sim, apesar de incompatível com a Primavera,
Ela mal pressente a sua volta
E espera que as flores nos montes floresçam todas
Para sorrir no meio delas.

Mao Tsé Tung

(José de Freitas)

O PESCADOR VELHO

Pescador vindo do largo
com teu calçado de algas
diz-me o que trazes no barco
donde levantas a face

a tua face marcada
pelo sal de horas choradas
dá-me o teu peixe pescado
bem lá no fundo do mar

-- nesta água não tem peixe --

pescador dá-me um só peixe
nem garoupa nem xaréu
só um peixinho de prata

-- nesta água não tem peixe
foi tudo procurar deus
prò lado do Zanzibar.

Glória de Sant'Anna

quarta-feira, 30 de março de 2011

CANTIGA

Descalça vai para a fonte
Leonor pela verdura,
Vai formosa e não segura.

A talha leva pedrada,
Pucarinho de feição,
Saia de cor de limão,
Beatilha soqueixada;
Cantando de madrugada
Pisa as flores na verdura:
Vai formosa e não segura.

Leva na mão a rodilha
Feita da sua toalha,
Com uma sustenta a talha,
Ergue com outra a fradilha;
Mostra os pés por maravilha,
Que a neve deixam escura:
Vai formosa, e não segura.

As flores por onde passa,
Se o pé lhe acerta de pôr,
Ficam de inveja sem cor
E de vergonha com graça;
Qualquer pegada que faça
Faz florescer a verdura:
Vai formosa, e não segura.

Não na ver o Sol lhe val,
Por não ter novo inimigo,
Mas ela corre perigo
Se na fonte se vê tal;
Descuidada deste mal
Se vai ver na fonte pura:
Vai formosa, e não segura.

Francisco Rodrigues Lobo
Fatigado da calma se acolhia
Junto o rebanho à sombra dos salgueiros;
E o sol, queimando os ásperos oiteiros,
Com violência maior no campo ardia.

Sufocava-se o vento que gemia
Entre o verde matiz dos sovereiros;
E tanto ao gado, como aos pegureiros
Desmaiava o calor do intenso dia.

Nesta ardente estação, de fino amante
Dando mostras Daliso, atravessava
O campo todo em busca de Violante.

Seu descuido em seu fogo se desculpava;
Que mal feria o sol tão penetrante,
Onde maior incêndio a alma abrasava.

Cláudio Manuel da Costa
Não há deus que resista à iniquidade dos homens.

DAYBREAK

Ergueu-se o vento lá do mar,
e disse às brumas: «Destroçar!»

Ao marinheiros: «Velejai!
Arriba! A noite já lá vai...»

Foi terra dentro, em correria,
sempre a bradar: «É dia! É dia»

E os arvoredos jubilaram:
logo de verde embandeiraram...

E disse às aves pequeninas:
«Orai! Cantai vossas matinas!»

Foi aos casais, chamou o galo:
O dono, é tempo de acordá-lo!...»

E alou às messes, brandamente:
«Curvai-vos ante o sol nascente!

Gritou enfim ao alto sino:
«Vamos: proclama o sol divino!»

...Mas disse aos mortos, num segredo:
«Dormi, dormi! Ainda é cedo.»

Henry Wadsworth Longfellow

(Luís Cardim)

terça-feira, 29 de março de 2011

O JOGO É UM ITINERÁRIO

Na minha oficina herética
o labirinto contraria o linear:
percorre-me
como se fosse uma veia
segura em seus meandros

A não-necessidade, o que seria?
que nova desordem criaria?
que outras descobertas?

A fugaz eternidade das ideias-mestras
incessante refaz os jogos da racionalidade
mas o jogo é um itinerário
e a sedução do rigor
recoloca-nos incessante na senda do desejo

Ana Hatherly
Filha, o que queredes ben
partiu-s' agora d'aquen
e non vos quiso veer;
     e ides vós ben querer
     a quen vos non quer veer?

Filha, que mal baratades
que o, sen meu grad', amades,
pois que vos non quer veer;
     e ides vós ben querer
     a quen vos non quer veer?

Andades por el chorando,
e foi ora a San Servando
e non vos quiso veer;
     e ides vós ben querer
     a quen vos non quer veer?

Joan Servando
Ó noite inolvidável
Feita abraço
Que nos misturou inteiramente
Até que o dorso da treva se vergou
E na face da idade embranqueceu.
Foi então
     Que o manto fino da brisa
     Tapou teus ombros, ó Noite,
     Com a delicadeza do orvalho.

Ibn 'Abdun

(Adalberto Alves)

CANTIGA SUA EM FAVOR DO CUIDADO.

    Leuo gofto em padeçer,
leuo gosto em fofpyrar,
leuo gosto em me perder,
mas cuidar no qua de ffer
dante mão me quer matar.

    Mas nunca farey mudãça,
porque quanto mais penar,
tanto muy mayor lembrança
leyxarey quando leyxar
vyda tam fem efperança.
Cuydar faz adoeçer,
cuydado defefperar,
cuydado me faz morrer,
mas porem torno a vyuer,
como poffo fofpyrar.

D. Joam de Meneses

segunda-feira, 28 de março de 2011

De um Trácio é agora o meu belo escudo.
Que havia eu de fazer? Perdi-o na floresta-
Mas salvei a minha pele, no aceso da luta.
Sei bem onde comprar um escudo novo.

Arquíloco

(Jorge de Sena)

EIS-ME NAVEGADOR...

Eis-me navegador. Um sonho abarco.
A Vida é Mar, a Vida é toda um Mar.
E quem tem alma e sabe o que é sonhar
-- há-de lançar às águas o seu barco.

Heróis -- Fernão, Colombo, Gama, Zarco!
Mistério, assombro, -- a vaga, a noite, o luar,
o espaço, o vento, a chuva, a nuvem, o ar...
-- Adonde a calma, o rumo, o porto, o marco? --

Mas uma força interna me estimula
para que eu vença a onda e o vendaval,
tanto mais quando o vento brame, ulula

e o Mar ameaça abrir o hiante seio...
Eu tenho a fé e o sonho de Cabral
em busca do Brasil do meu anseio!

Geraldo Bessa Victor

LÁGRIMAS

As cristalinas lágrimas vertidas
Pela noite nas águas tenebrosas
São no abismo profundo convertidas
          Em pérolas radiosas...
Mas as pérfidas lágrimas caídas
Desses teus olhos lânguidos e ardentes,
No meu peito amoroso recolhidas,
          Só geraram serpentes...

António Feijó

domingo, 27 de março de 2011

CANÇÃO

Vem surgindo a madrugada.
Entro agora num dancing.

Numa guitarra que tange
Oiço a mágoa do meu sonho.

Há vestígios de batalha:
Nódoas de vinho,
E alguns pratos
Com restos de carne, -- e o cheiro
A tabaco e a febre e a flores
Paira
Na sala como um cansaço...

Triste,
Vou lembrando os meus amores.

Além,
Naquela mesa do fundo,
Naquela mesa redonda,
Um homem
Descasca uma tangerina
E vai beijando e mordendo
A mulher franzina e feia
Que ao pé dele fuma e sorri...

Vou lembrando os meus amores!

E até me lembro
Daqueles
Que partiram para sempre...

--Mas, não me lembro de ti.

António Botto 

Cafurnas


autor: m. parissy (pseudónimo de Mário Galego, Nazaré, 1969)
título: Cafurnas
prefácio: Jaime Rocha
edição: do Autor
local: Nazaré
ano: 2002
págs.: não numeradas [24]
dimensões: 18x14,5x0,2 cm. (brochado)
capa: foto de José Delgado
impressão: Graficar, Carvalhos
tiragem: 500
obs.: duas fotos em extratexto: Jaime Rocha com Lawrence Ferlinghetti na Rua da Bonança; "Mizé Gandaio observando pinturas de Silvino Espalha"; exemplar numerado: 256 / 500

sábado, 26 de março de 2011

O LIMITE

Limita-se um país pelas fronteiras;
limita-se a falhar quem não acerta;
limita-se o meu céu a ter três letras;
limita-se o farelo nas peneiras.

Limita-se uma vida ao seu destino;
limita-se o trabalho ao seu efeito;
limita-se o Meu Deus a ser perfeito;
limita-se a ser Deus quem é divino.

Limita-se esta noite se me deito;
limita-se a palavra ao som do ritmo;
limita-se o instinto ao preconceito.

Limita-se esta dor se não a grito;
limita-se o amor depois de eleito;
limita-se uma recta ao Infinito!

Ulisses Duarte
Pela manhã o gato estende-se
vagaroso neste impreciso lugar
em que luz e sombra
se entretecem. Nas pedras
rondantes do que sempre chamámos
a nossa casa, esse sonho
de irmos por detrás das janelas
encarcerados nas agrestes
paredes do amor.

Todas as manhãs, enquanto
a escola me espera, o
gato é tão certo como os passos
que dele se desviam. Um mero
olhar, a melancolia
de depois te dizer já sem o mesmo encanto
a sua negra quietude, o silêncio
em que se move.

Estamos todos, eu tu e o gato,
neste estranho sossego
de a morte ser um dia destes,
entre luz e sombra.

Manuel de Freitas

sexta-feira, 25 de março de 2011

FIM DO MUNDO

Todos os jornais darão edições especiais
E ainda um bonde terá tempo de colhêr um transeunte.
O Presidente dirá palavras de confôrto à Nação.
Os bombeiros ficarão a postos
Como à espera dos grandes cataclismos.
À falta de luz eléctrica os homens usarão querosene
Em candieiros alados.
O poeta se perderá em cogitações
De interêsse particular.
Um telegrama esclarecerá pequenos detalhes:
-- As agulhas das bússolas ficarão desnorteadas
E os sinais telegráficos perder-se-ão no espaço.
Além do mais algumas estrêlas cairão sôbre o mar
-- Parnasianas.
E entre palmas e gritos dos espectadores
A ressurreição da carne será anunciada.

Antônio Rangel Bandeira
De manhã, pela manhã,
No feliz campo de feno,
Oh, fitaram-se um ao outro
À luz do dia sereno.

Na manhã de azul e prata
Sobre o feno se deitavam,
Oh, fitaram-se um ao outro,
E seus olhares desviavam.

A. E. Housman


(Jorge de Sena)

PARFUMS EXOTIQUES

Quand, les deux yuex fermés, en un chaud soir d'automne,
Je respire l'odeur de ton sein chaleureux,
Je vois se dérouler des rivages heureux
Qu'éblouissent les feux d'un soleil monotone;

Une île paresseuse où la nature donne
Des arbres singuliers et des fruits savoureux;
Des hommes dont le corps est mince et vigoreux,
Et des femmes dont l'oeil para sa franchise étonne.

Guidé par ton odeur vers de charmants climats,
Je vois un port rempli de voiles et des mâts
Encor tout fatigués par la vague marine,

Pendant que le parfum des verts tamariniers,
Qui circule dans l'air et m'enfle la narine,
Se mêle dans mon âme au chant des mariniers.

 Charles Baudelaire

quinta-feira, 24 de março de 2011

GIRASSÓIS EM CHAMAS

dorso de touro, tigre
listas camufladas:

um salto súbito e o sangue jorra
vinho na relva, patas em convulsão

carcaça, deserto
chifres contra o fundo

de uma moldura árida

mas a brisa, mesmo seca,
sibila algo, escute:

ali se travou uma batalha.

pior a serpente
com seu veneno diário

gota a gota, amortecendo

a fúria, a força
o roçar de pétalas

até que reste só
o girassol em chamas

no fundo do quintal

Ademir Assunção

Degradação

Toda a gente foi domingo
alguma vez.

Depois nas fezes aparecem
sinais de sangue, ou na urina.
Declaram-se abcessos,
coágulos, tumores.

Passam então a ser uma sombria,
pesada, intransitiva
segunda-feira.

A. M. Pires Cabral

NAUFRÁGIO

Ai a tristeza do vento
chorando...
Ai as nuvens indo à solta
em louca corrida
medrosas, fugindo à mão estendida...
Ai a solidão dos montes
despidos, à nossa volta
onde a vida aos poucos se consome
-- seios nus ensaguentados
onde as raízes
morrem de fome...

... E nos rostos ensombrados
rondam saudades: -- países
navegam velas: -- distâncias...
Gestos parados
caladas ânsias
gritos sem voz...

Dorme o Nosso Senhor Só
dentro de cada um de nós,
envolvido pelo pó
que o vento remexeu e levantou.

Ai este Atlântico triste
que nos deu a nostalgia
dum mundo que só existe
no sonho que ele provocou...

Manuel Lopes

AVISO DE DESPEJO

O poeta mente quando diz
que o amor é uma flor rara,
colhida nos verdejantes jardins da vida.

O amor, deveria ele dizer,
é o ato de desespero
no qual o homem se agarra:
é o chão que anseia o suicida –
mas embaixoapenas abismo e caos.

Mente o poeta quando diz que o amor
é o porto seguro onde se ancora
e mente duplamente quando diz que Deus
nos fez para amarmos uns aos outros.

O amor, deveria ele dizer,
é a bóia que anseia o afogado,
masapenas água
e mais água em sua ânsia de boiar
acima um pouco de céu sem fundo
à baixo um universo de barro e lodo.

Amor é um cio estragado.


sentado
tinha uma bela mulher debaixo de cada braço
negras
o turista branco, medroso, aproximou-se
como se ele fosse um Papa que era
pediu-lhe um autógrafo
Charlie, lá do alto da sua merecida imponência, mediu-o
olhar curioso, desprezante
'que estás a qui a fazer no 'Baron's, em Harlem?'
'vim ouvir Gene Ammons'
sorriu pouco
desamparou uma negra
assinou o papel
Mingus esqueceu o turista
o turista não esqueceu Mingus

José Duarte

quarta-feira, 23 de março de 2011

Nem toda a gente tem o mar em casa
por setembro
no lento alegre dia de setembro. O mar de Peniche
clareando a luz do dia, um fogo azul. Azul
com seu halo de claridade espalha o azul
sob o peso do dia branco
por setembro
pelo espanto azul claro de setembro
arde azul nos muros de Peniche. Um mar assim
areia dividida deste fogo
desta luz ardendo no terraço
cada vez mais azul onde o azul clarece em azul
onde o sol vai do setembro saindo.
Apenas um mar uma luz única
visível cor atravessada de um azul denso
entre o esplendor do fogo azul sobre a noite quase.

João Miguel Fernandes Jorge

Sextilha Camoniana

Daqui dou o viver já por vivido.
Quero estar quieta, sozinha agora,
igual uma cobra de cabeça chata,
ficar sentada sobre os meus joelhos
como alguém coagulado em outra margem.
Daqui dou o viver já por vivido.

Olga Savary

O futebol brasileiro evocado na Europa

A bola não é a inimiga
como o touro, numa corrida;
e embora seja um utensílio
caseiro e que se usa sem risco,
não é o utensílio impessoal,
sempre manso, de gesto usual:
é um utensílio semivivo,
de reações próprias como bicho,
e que, como bicho, é mister
(mais que bicho, como mulher)
usar com malícia e atenção
dando aos pés astúcias de mão.

João Cabral de Melo Neto
Ao meu coração um peso de ferro
Eu hei-de prender na volta do mar.
Ao meu coração um peso de ferro...
      Lançá-lo ao mar.

Quem vai embarcar, que vai degredado,
As penas do amor não queira levar...
Marujos, erguei o cofre pesado,
      Lançai-o ao mar.

E hei-de mercar um fecho de prata.
O meu coração é o cofre selado.
A sete chaves: tem dentro uma carta...
-- A última, de antes do teu noivado.

A sete chaves, -- a carta encantada!
E um lenço bordado... Esse hei-de o levar.
Que é para o molhar na água salgada
No dia em que enfim deixar de chorar.

Camilo Pessanha

terça-feira, 22 de março de 2011

AOS AFECTOS, E LÁGRIMAS DERRAMADAS NA AUSÊNCIA DA DAMA A QUEM QUERIA BEM

Ardor em firme Coração nascido;
pranto por belos olhos derramados;
incêndio em marés de águas disfarçado;
rio de neve em fogo convertido;

tu, que em um peito abrasas escondido;
tu, que em um rosto corres desatado;
quando fogo em cristais aprisionado;
quando cristal em chamas derretido.

Se és fogo, como passas brandamente,
se és neve, como queimas com porfia?
Mas ai, que andou Amor em ti prudente!

Pois para temperar a tirania,
como quis que aqui fosse neve ardente,
permitiu parecesse a chama fria.

Gregório de Matos

Death takes us by surprise

(excerto)
À memória de Leonardo Coimbra

De surpresa a morte vem,
no caminho nos detém:
parece o plano -- frustrado --
e o viver -- inacabado...

Mas só no Além se projecta,
perfeita, a curva completa:
é como um arco de ponte
que nas águas se defronte...

O que importam Vida e Morte
sempre que a Vida é mais forte,
-- e a mensagem que ficou
em mil vidas perdurou?

Quando se apaga uma estrela
continuamos a vê-la:
a sua luz, como um grito,
vai correndo o infinito...

E quando uma voz se cala
não cessamos de escutá-la:
ressoa em nós, tempos fora
com o fulgor duma aurora!

Henry Wadsworth Longfellow

(Luís Cardim)

segunda-feira, 21 de março de 2011

HISTÓRIA COM DENTES DE LOBO

Às vezes, acordo muito feliz
sinto-me um verdadeiro campeão:
o meu pai viveu mais tempo que a rainha Vitória.


Fernando Grade
Madre velida, meu amigo vi;
non lhi falei e con el me perdi,
     e moir' agora, querendo-lhi ben;
     non lhi falei, ca o tiv' en desden;
     moiro eu, madre, querendo-lhi ben.

Se lh' eu fiz torto, lazerar-mh-o-ei
con gran dereito, ca lhi non falei;
     e moir' agora, querendo-lhi ben;
     non lhi falei, ca o tiv' en desden;
     moiro eu, madre, querendo-lhi ben.

Madre velida, ide-lhi dizer
que faça ben e me venha veer;
     e moir' agora, querendo-lhi ben;
     non lhi falei, ca o tiv'en desden;
     moiro eu, madre, querendo-lhi ben.

Airas Corpancho
Regaram-no as chuvas da abastança:
E saudosas frases me vêm à lembrança.

Cumes cobertos de moitas floridas
De bordados mantos sendas não esquecidas.

Sim, como esquecer-me das horas passadas
No tropel louco de ingénuas cavalgadas?

Ai como era doce esse meu folguedo,
Passarinho à toa esvoaçando ledo.

Dias tão felizes, bordados em flor,
Vento em minhas vestes murmurando amor.

Ibn 'Abdun

(Adalberto Alves)

3 visões do terror

 

O terror não chora.
Camilo Castelo Branco

Africanos a bordo de um navio negreiro, chegados a porto deconhecido.
Índios num quotidiano de reserva, tentando juntar fragmentos estilhaçados duma ancestralidade perdida.
Espectros silenciosos de judeus nos campos de extermínio nazi, aguardando a entrada de tropas Aliadas.

domingo, 20 de março de 2011

MINHA SENHORA DE MIM

Comigo me desavim
minha senhora
de mim

sem ser dor ou ser cansaço
nem o corpo que disfarço

Comigo me desavim
minha senhora
de mim

nunca dizendo comigo
o amigo nos meus braços

Comigo me desavim
minha senhora
de mim

recusando o que é desfeito
no interior do meu peito

Maria Teresa Horta

sábado, 19 de março de 2011

A ESCRITALIDADE

A idade da escrita é a minha idade:
a idade que passa
a idade percurso
            o percurso recurso

Não tenho outro recurso

A idade da escrita é a idade muda:
a idade que olha
            que fala para ver
            que olha para saber

Não escrevo para dizer:
               escrevo para dizer o que não pode ser dito

Ana Hatherly

A VISTA

A vista é um ar, um intento,
a repassar a amplidão,
uma única extensão
sem dimensão nem assento.

É como rastro de estrela
que no ar se risca à flux
que por ser tira de luz
pesa menos que não sê-la.

Ou como coisa mais bela
que o seu peso vai perdendo
à medida que correndo
mais coisa ganha em perdê-la.

Ou puramente Existência,
que nada pode existir
ao de lá do meu sentir
que é toda a própria Existência.

Tudo o que existe coexiste,
porque o que existe em redor
é porque existe em redor
de qualquer coisa que existe.

Portanto nada existiu
nem nunca pôde existir
sem um centro coexistir
em volta do qual se viu.

As coisas não são por elas
são por ser excentricidade;
são, portanto, na verdade,
não elas, mas centro delas!

sexta-feira, 18 de março de 2011

A Noite Dividida

autor: Sebastião Alba (Braga, 11.III.1940 -- 14.X.2000)
título: A Noite Dividida
colecção: «Peninsulares / Literatura» #48
editora: Assírio & Alvim
local: Lisboa
ano: 1996
págs.: 158
dimensões: 20,6x13,5x0,9 cm. (brochado)
impressão: Guide - Artes Gráfica, Lisboa
Ai quantas vezes,
ai quantas, quantas
no turvo mar,
o mar penteado
pelas rajadas
como a desordem
da cabeleira
de uma mulher,
eu suspirei,
morto em saudade,
pela doçura
de regressar.

Arquíloco

(Jorge de Sena)

VOZ IMORTAL

Fui hoje dedilhar meu antigo quissange,
que abandonara um dia...
Milagre: já não tange
o choro das antigas vibrações,
mas sim novas canções e novos hinos
de dor e de alegria!

Bati no bumbo roto,
que eu já deitara fora.
-- Nasceu um som potente,
mais belo do que outrora,
entrando mais no espírito da gente.

Geraldo Bessa Victor

A FOLHA DE SALGUEIRO

Adoro essa mulher moça e formosa,
Que à janela, a sonhar, vejo esquecida,
Não por ter uma casa sumptuosa
Junto ao Rio Amarelo construída...
-- Amo-a porque uma folha melindrosa
Deixou cair nas águas, distraída.

Também adoro a brisa do Levante,
Não por trazer a essência virginal
Do pessegueiro que floriu distante,
No pendor da Montanha Oriental...
Amo-a porque impeliu a folha errante
Ao meu batel, no lago de cristal.

E adoro a folha, não por ter lembrado
A nova primavera que rompeu,
Mas por causa do nome idolatrado
Que essa jovem mulher nela escreveu
Com a doirada agulha do bordado...
          E esse nome... era o meu!

António Feijó

quinta-feira, 17 de março de 2011

ELEGIA

Não fales no filho
que não conheci.
Os olhos, disseram,
como os do pai
eram tristes;
da mãe tinha a boca
o nariz também.
Por três segundos
respirou, disseram.
Morreu depois.
O mundo deixou-lhe
a marca, disseram,
numa injeção que tomou.
Coberto de lágrimas
foi e não voltou.
Não fales no filho
que não conheci.

Aluízio Medeiros

IN TENEBRIS

Tempo de inverno corre:
mas a dor do separar
essa não pode voltar:
duas vezes não se morre.

Voam pétalas de flor;
mas por já acontecido
este partir revivido
não pode trazer-me dor.

Aves desmaiam de medo:
que força pode perder
no negro frio a correr
quem perdeu dela o segredo?

As folhas gelam no frio;
mas que amizades amantes
podem gelar como dantes
quem no Inverno sumiu?

Que nos firam temporais;
mas o amor já não tortura
um coração que não dura:
este Inverno é como os mais.

Da noite o negro é limiar,
mas a noite não aterra
quem sem dúvidas se cerra
e só espera sem esperar.

Thomas Hardy

(Jorge de Sena)

À MA MÈRE

Lorsque ma soeur et moi, dans les forêts profondes,
Nous avions déchiré nos pieds sur les cailloux,
En nous baisant au front tu nous appelais fous,
Après avoir maudit nos courses vagabondes.

Puis, comme un vent d'été confond les fraîches ondes
De deux petits ruisseaux sur un lit calme et doux,
Lorsque tu nous tenais tous deux sur tes genoux,
Tu mêlais en riant nos chevelures blondes.

Et pendant bien longtemps nous restions là blottis,
Heureux, et tu disia parfois: Ô chers petits!
Un jour vous serez grands, et moi je serai vieille!

Les jours se sont enfuis, d'un vol mystérieux,
Mais toujours la jeunesse éclatante et vermeille
Fleurit dans ton sourire et brille dand tes yeux.

Théodore de Banville

quarta-feira, 16 de março de 2011

PRÓLOGO

O tempo, esse pequeno escultor,
prolongou-te os gestos
até à exaustão, ao limite do escárnio,
ao inoportuno reclame daquele
que vai morrer e não morre
e fala demasiado sobre o silêncio do seu grito.

Paciência. Não poderia ter sido de outra
maneira. Há uma infância parada,
onde o cadáver de deus
nada quer dizer. Sim, tem chovido muito.
Mas que saberá destas mesmas horas
o gato negro que a tua mão já não encontra?

Deténs-te, usas palavras vãs, despedes-te.
Sabes que foi sempre assim.

Manuel de Freitas

5 DIAS PARA MORRER

                                                                       para hector babenco

morreremos loucos, Ana

os sapatos
novos
em cima da mala
-- mala notte
o dia, a pior
foto: olhos úmidos
no vídeo
flashbacks:
a virilha imunda
do marinheiro
os eletrodos frios
nas têmporas
as pílulas coloridas
peixes
num aquário
cujo vidro
quase se quebra
toda vez
que o tocamos

sim, Ana
morreremos loucos
mas
esta noite
dormiremos
juntos

Ademir Assunção

franja

A franja esconde
-te os olhos grandes.
O vestido justo molda
-te as coxas exuberantes,
tão descaradas como
os teus grandes olhos
escondidos pela franja.
VI-2003

Velha entrevada

Aquele que não conhece a doença
nem o progresso nem o desfecho dela
mal saberá que mal alumiado
poço de angústias é uma velha entrevada
disposta em cama de palha
que não lhe retarda -- antes fomenta --
a podridão,

na esperança e no terror
de que tudo acabe em breve.

A. M. Pires Cabral

terça-feira, 15 de março de 2011

ABANDONO

A catástrofe das vidas que tive e que perdi
Mói-me lentamente a vida que eu tenho.
Venho
De longe, a buscar aquilo que esqueci.

                         E canto
                         E choro
                         E gemo
                         E tremo
               Diante das mil vidas
               Que novamente hei-de ganhar.

                         Olalá! Olalá!
               Mil vidas perdidas
                         Conseguidas
               À força de querer!...
                         (Nem canto
                         Nem pranto.)

                         Nem gemo
                         Nem tremo...
Eu vou deixar-me embalar...

Pedro Corsino Azevedo

QUARTO E SALA

Usando o mesmo banheiro com sua empregada você já está doente qualquer hora acaba pegando ainda a doença de uma negra dessas depois da tragédia que o acometeu nunca mais se viu frente ao espelho e as suas fantasias homossexuais a melhor arma para assaltar banco é o fuzil e a baioneta você acha que vai morrer de quê do coração e eu de câncer no pulmão.

Francisco Alvim

NEGRA

Gentes estranhas com seus olhos cheios doutros mundos
quiseram cantar teus encantos
para elas só de mistérios profundos,
de delírios e feitiçarias...
Teus encantos profundos de África.

Mas não puderam.
Em seus formais e rendilhados cantos,
ausentes de emoção e sinceridade,
quedas-te longínqua, inatingível,
virgem de contactos mais fundos.
E te mascararam de esfinge de ébano, amante sensual
jarra etrusca, exotismo tropical,
demência, atracção, crueldade,
animalidade, magia...
e não sabemos quantas outras palavras vistosas e vazias.

Em seus formais cantos rendilhados
foste tudo, negra...
menos tu.

E ainda bem.
Ainda bem que nos deixaram a nós,
do mesmo sangue, mesmos nervos, carne, alma,
sofrimento,
a glória única e sentida de te cantar
com emoção verdadeira e radical,
a glória comovida de te cantar, toda amassada,
moldada, vazada nesta sílaba imensa e luminosa: MÃE

Noémia de Sousa

segunda-feira, 14 de março de 2011

CANTIGA

Não sou casado, senhora,
pois ainda que dei a mão
não casei o coração.

Antes que vos conhecesse,
sem errar contra vós nada,
uma só mão fiz casada,
sem que mais nisso metesse.
Dou-lhe que ela se perdesse;
solteiros e vossos são
os olhos e o coração.

Dizem que o bom casamento
se há-de fazer de vontade.
Eu a vós a liberdade
vos dei, e o pensamento.
Nisto só me achei contento,
que, se a outrem dei a mão,
dei a vós o coração.

Como, senhora, vos vi,
Sem palavras de presente
na alma vos recebi,
onde estarei para sempre,
não dei palavra somente.
Nem fiz mais que dar a mão;
guardando-vos o coração.

Casei-me com meu cuidado
e com vosso desejar.
Senhora não sou casado,
no mo queirais acuitar;
que servir-vos e amar
me nasceu do coração
que tendes em vossa mão.

O casar não fez mudança
em meu antigo cuidado
nem me negou esperança
do galardão esperado.
Não me enjeiteis por casado,
que, se a outra dei a mão,
a vós dei o coração.

Bernardim Ribeiro
Os anos vêm e vão,
gerações baixam à terra,
mas nunca em meu coração
fenece o amor que ele encerra...

E só quisera, ao morrer,
quando a esperança é já finda,
de joelhos vos dizer:
Senhora, eu vos amo ainda!

Heinrich Heine

(Luís Cardim)
Por Deus, amigo, quen cuidaria
que vós nunca ouvéssedes poder
de tan longo tempo sem mi viver!
E des omais, par Santa Maria,
     nunca molher deve, ben vos digo,
     muit' a creer per juras d'amigo.

Dissestes-mi, u vos de min quitastes:
«Log' aqui serei con vosco, senhor»,
e jurastes-mi polo meu amor,
e des omais, pois vos perjurastes,
     nunca molher deve, ben vos digo,
     muit' a creer per juras d'amigo.

Jurastes-m' enton muit' aficado
que logo logo, sen outro tardar,
vo queríades pera mi tornar,
e des oimais, ai, meu perjurado,
     nunca molher deve, ben vos digo,
     muit' a creer per juras d'amigo.

E assim farei eu, ben vos digo,
por quanto vós passastes comigo.

D. Dinis

domingo, 13 de março de 2011

Alguém parte uma laranja em silêncio, à entrada
de noites fabulosas.
Mergulha os polegares até onde a laranja
pensa velozmente, e se desenvolve, e aniquila, e depois
renasce. Alguém descasca uma pêra, come
um bago de uva, devota-se
aos frutos. E eu faço uma canção arguta
para entender.
Inclino-me para as mãos ocupadas, as bocas,
as línguas que devoram pela atenção dentro.
Eu queria saber como se acrescenta assim
a fábula das noites. Como o silêncio
se engrandece, ou se transforma com as coisas. Escrevo
uma canção para ser inteligente dos frutos
na língua, por canais subtis, até
uma emoção escura.

Porque o amor também recolhe as cascas
e o mover dos dedos
e a suspensão da boca sobre o gosto
confuso. Também o amor se coloca às portas
das noites ferozes
e procura entender como elas imaginam seu
poder estrangeiro.
Aniquilar os frutos para saber, contra
a paixão do gosto, que a terra trabalha a sua
solidão -- é devotar-se,
esgotar a amada, para ver como o amor
trabalha na sua loucura.

Uma canção de agora dirá que as noites
esmagam
o coração. Dirá que o amor aproxima
a eternidade, ou que o gosto
revela os ritmos diuturnos, os segredos
da escuridão.
Porque é com nomes que alguém sabe
onde estar um corpo
por uma ideia, onde um pensamento
faz a vez da língua.
-- É com as vozes que o silêncio ganha.

Herberto Helder

CHARANGA

Estes soldados de azul passaram para baixo
a ganga frenética, os olhos com ferrugem de rio.
As botas batiam no solo ao som da música,
havia as árvores em fuga e os pássaros,
uma criança de caracóis (o bibe verde...)
levantava voo no açúcar de um sorvete.

Máquinas festivas tecidas de pulmão e trevo
a infância chegava em estátua de barro
um cheiro musguento a uvas e
os trombones subiam na rede, as flautas
rasgavam o medo, as mãos ágeis poisadas
em abeto imaginário: o coração à solta.

Estes corpos suados e com galochas
trazem sargaços no tocar: há uma salsugem
solitária a muitos, beijos de sal que
(rompendo os saxes) adoçam os gestos,
desfazem a mínima gravata e atingem a água
com radar de serpente, água música.

Charanga de metal e sustos onde a pedra rei é mulher
e os soldados vingam-se em saliva de sons.
-- Quem deitou fogo ao piano que não há?

Fernando Grade 

sábado, 12 de março de 2011

Este é o livro que procuraste. Vês como são leves
as folhas. As palavras encontram-se apagadas; ficaram
perdidas as últimas páginas. O silêncio espalha-se
pelas outras e os teus olhos conservam-se fechados. A névoa
desce, vem agora pesar sobre o teu corpo que permanece
um pouco inclinado sobre uma mesa vazia. Assim chegaste
junto dela e principias a ler este livro que não existe.

Fernando Guimarães
A criança passeia pelo campo. Pára diante de um portão entreaberto. É o portão de uma grande quinta. A criança entra. Lá dentro está um cão enorme.

Ana Hatherly

sexta-feira, 11 de março de 2011

Cais de Poemas

título: Cais de Poemas
antologiador: omisso
os poetas: Luísa Dacosta, Joaquim-Francisco Coelho, José Jorge Letria, Vasco Graça Moura, Eugénio de Andrade, Maria Alberta Menéres, José Bento, João Miguel Fernandes Jorge, A. M. Pires Cabral e Vitorino Nemésio.
editora: Edições Asa
local: Porto
ano: s. d.
págs.; 22 (+26)
dimensões: 18,5x11x0,2 cm. (brochado)
impressão: Grafiasa
obs.: edição incluída nos manuais escolares de Língua Portuguesa, do 8.º ano, das Edições Asa;  dois livros em um: no verso, invertido, a peça Antes de Começar, de Almada Negreiros.
Desobedeceste-lhe,
     Sabendo o quanto és contigente.
Que farias,
     Se te soubesses necessário?
Ao morreres esperas, talvez, algum refúgio
Que do Éden te exclua, ou do Fogo.
será que contas que alguém
Te possa livrar de Deus?

Ibn As-Sid

(Adalberto Alves)

OLHANDO COM TRISTEZA A LUA

Nesta pura primavera
houve um pinheiro
para ensombrar dez mil anos.
A lua treme
nas ondas crespas.
O luar avança
pela janela.

Num vácuo de alma
sento-me e canto
e penso em ti
profundamente.
Não nos veremos.
O gozo é morto.
É indizível
a dor que está
no coração
do homem.

Li Po (ou Li Bai)

(Jorge de Sena)

NOCTURNO EM CONTRAPONTO

Luanda e a noite
arrojada ao mar,
a escorrer cores na baía
negra clara
de mil olhos bela
mil olhos sal e luz
mil peixes festões
acesos
em cardumes    em velas
saltos salgados     barrocas mil
de febre   de ouro

Tábuas e barro
de musseques amassados
milhões em suor
de ouro   mão negras
em carne   ó noites
de repouso   ó sonhos prateados!
Andante interior
de onças de sol   em braços levantados
E calor escorrendo   e calor bebendo
na baía
encantos de mil lados

António Bellini Jara

quinta-feira, 10 de março de 2011

SONETO

Tocado de Má-Hora, ao lívido luar,
erro, sinistramente, porta em porta;
levo a alma nos braços, quase morta
e não sei onde a hei-de agasalhar...

Talvez que lá em baixo, junto ao mar,
Na ressaca das ondas e da espuma,
a possa descansar... E, uma a uma,
as passadas da Morte, dou, p´ra o mar!...

Mas as águas são torvas e spectrais,
Sinistras de insondável e maldito
-- no sentido pior do que está escrito! --

E novamente vou, de porta em porta,
em trôpegos passos desiguais,
levando no regaço a Alma-morta...

Augusto Ferreira Gomes

A TUA SOMBRA

A tua sombra mística e serena
É um refrigério ideal que me regala,
Quando a sombra do mundo me condena,
A tua sombra, Mãe, me absorve e embala.

A tempestade ulula? A Dor estala?
A tua sombra é lindo véu que acena.
-- Sombra que reza, que tem voz, que fala!...
A sombra do teu vulto de açucena!

Sinto-a pairar, em forma de asa aberta,
Por sobre o pó da minha estrada incerta,
Amenizando as pedras e os abrolhos.

Beijo-a como quem beija o azul dos céus,
Amo-a como quem ama a luz de Deus,
Infinita doçura dos meus olhos!

Moreira das Neves 
Heureux qui, comme Ulysse, a fait un beau voyage,
Ou comme cestui-là qui conquit la Toison,
Et puis s'en retourné, plein d'usage et raison,
Vivre entre ses parents le reste de son âge!

Quand reverrai-je, hélas! de mon petit village
Fumer la cheminée, et en quelle saison
Reverrais-je le clos de ma pauvre maison,
Qui m'est une province et beaucoup davantage?

Plus me plaît le séjour qu'ont bâti mes aïeux,
Que des palais romains le front audacieux;
Plus que le marble dur me plaît l'ardoise fine,

Plus mon Loire gaulois que le Tibre latin,
Plus mon petit Liré que le Mont-Palatin,
Et plus que l'air marin la doceur angevine.

Joachim du Bellay

quarta-feira, 9 de março de 2011

OS LEÕES ESTÃO BRINCANDO NO JARDIM

Dentes gelados, unhas à mostra

o leão arranha levemente

a pele de puro gesso: estátua branca

Peônias farfalham mudas

ante a imaginação selvagem e furiosa

vento vento vento

na tarde de abismos, constelações

de leões, centauros prontos para o bote,

o amor perigoso, atado ao tudo

ou nada: um par de olhos diante

de sua máscara de oxigênio

Ademir Assunção 

"AZNAR, BUSH E BLAIR"*

 

Quando eu era jovem, as massas industriaram-me na poesia
                                                                         [popular.
SOARES LADRÃO / ROUBA O PÃO
alertavam-me as paredes
com a força das convicções
e dos erros ortográficos.
Por vezes os versos eram brancos
embora vermelhos
por vezes eram brancos.
Assim o muro da recta do Dafundo:
SOARES LADRÃO AMDA A ROUBAR O DINHEIRO DO POVO GATUNO
                                                              [VAI PARA A RUA JÁ!
podíamos ler nos idos de 70
e até algum 80.

Ainda hoje a poesia popular me persegue.

3-VII-2003
*palavra-de-ordem na manifestação contra a guerra no Iraque:
"aznar,bush & blair / esta guerra ninguém quer!"

terça-feira, 8 de março de 2011

URINOL

As melhores horas da nossa vida,
as mais contentes, passámo-las
num urinol qualquer, vendo correr o mijo
capaz e fluente numa certeza de louça
branca, amarela ou cinzenta.
Instantes de pouca opressão,
cumprindo embora um estúpido dever,
desses do corpo, sob o silêncio infecto de Deus
-- que talvez fosse aquele puxador
de autoclismo que um dia me ficou na mão,
numa taberna discreta ao Poço dos Negros.
Guardei-o ainda alguns meses, mas de Deus
como de um autoclismo, de tudo
acabamos por nos cansar. Até de poemas.

São ruas velhas assim, onde paira
a suposição grosseira de um urinol
divino e sombrio, que nos fazem aceitar
esta voraz forma de extermínio. O nosso,
incandescente, num apogeu de melancólicas
retretes onde os insectos e bactérias do acaso
nos distraem o olhar
embaciado pelo abuso da lixívia.

Uma lucidez pegajosa, toldando a idade
das mãos invariavelmente senis.
Como se bastassem, ou fossem mesmo
excessivas, certas baixas certezas de cão,
desastres menores. Sabendo-se de fonte
segura que o mijo pode ser um poema.
Um poema cansado do que antes foi vinho,
a suicidar-se agora -- contente e tão triste --
no vazio evidente de uma louça
branca, amarela, sagrada.

Pequenas alegrias e no entanto as maiores,
essas mesmas que bastarão,
que terão de bastar
no dia
em que formos
morrer.

Manuel de Freitas

MÊS DE MAIO

Maio de 68
houve só um
Maios de 69
são quando um homem quiser

Dick Hard

segunda-feira, 7 de março de 2011

FALA DO ADVOGADO ENQUANTO DON JUAN

Só fico satisfeito
quando as partes se beijam.

Fernando Grade
Que limites existem para a luz? Veio alguém acender
esta candeia. À nossa volta, uma pequena chama
principia a erguer-se, mas é em vão que ela se conserva
perto de nós, quando abrimos devagar as leves
páginas cujo sentido se ignora e as fechamos depois
sem esperança, como se fosse este o seu destino no interior
da noite. Estamos ali adormecidos e havemos de encontrar
uma outra luz, maior, que as permita ler.

Fernando Guimarães

domingo, 6 de março de 2011

REGIME ALIMENTAR

Há animais herbívoros,
há plantas carnívoras
e há pessoas pagívoras.
Como...?! Como...?!
Comem de entrada um acepipe:
um livro fresco de poemas.
Depois como prato principal,
um dicionário bem recheado.
E, à sobremesa, um livro infantil ilustrado.
Este regime alimentar, à base de massa
folhada e paginada, é bastante salutar:
não há registo de pagívoros enfartados ou adoentados.

Teresa Guedes

CRÂNIO

          AO JOSÉ RÉGIO

Esmigalhem meu crânio e que as legiões
passem sobre ele; e que um novo Átila renasça
e passe também sobre ele; ou que ele seja a taça
que mitigue a sede aos que tenham sede, seja

do que for, e que toda a treva nele se afunde
e o mundo, quando for maior, caiba também
dentro dele, e que ele seja o mal e seja o bem
-- strutura universal onde tudo se funde.

A alma de Baudelaire, sedenta, beba por
ele absinto e a de Giles de Rai -- oh! beba sangue.
Salomé, Taïs, ou Safo, os filtros do amor

e da morte. Que dentro dele o Universo é
mesquinho e Deus, meu Deus!, não tens força, és exangue
para nas mãos o teres com unção e com fé.

António de Navarro

sábado, 5 de março de 2011

GAME OVER

O corpo.
Uma duração precisa,
que se despede informalmente
nos beijos que já não dá.
Ó meu bom Jesus de Braga,
eu não saberia como ficar,
remendando os dias
com o apressado amor das coisas.

Tudo finalmente finda.
Na calamidade das mãos,
um cigarro que arde impróprio
sobre as manhãs exaustas.
E ninguém me quis,
pelo menos.

De que vos falarei,
com palavras póstumas
onde o rancor se apaga?
Era uma vez


aquele jogo triste que não sei jogar.

Manuel de Freitas

SUPERMERCADO

Corre perigo a minha qualidade de vida
Pensei nisso maduramente no supermercado hoje
Sinto que a qualidade não é a mesma e foge
E que pouco falta para que fique perdida

Lembro-me do rio que passa na minha terra
Porque comparo a esta enorme porcaria
Em que se transformou a antiga alegria
De o atravessar num tempo sem paz nem guerra

E quando as crianças empurram os carrinhos
Com uma devoção espantosa pelos corredores
Eu recordo bem com todos os pormenores
As demoradas procissões com muitos anjinhos

E não havia iogurtes nem sequer supermercados
Nem demonstradoras empenhadas em demonstrar
Não os pontos fortes de quem lhes vai pagar
Mas que estão tão cansadas como nós cansados

Se a vida fosse lógica deveria muito tempo sobrar
Quando se fazem estas refeições congeladas
Porque o tempo que se ganha sendo preparadas
Deveria ser para parar um pouco e para pensar

José do  Carmo Francisco

sexta-feira, 4 de março de 2011

José Afonso

autor: José Afonso (Aveiro, 2.VIII.1929 - Setúbal, 23.II.1987)
título: José Afonso
coordenador: José Viale Moutinho
textos: A. F., António Cabral, António Rebordão Navarro, Bernardo Santareno, Cáceres Monteiro, Daniel Ricardo, Fernando Assis Pacheco, José Afonso, José Armando Carvalho, José Jorge Letria, Manuel Simões, Urbano Tavares Rodrigues.
colecção: «Vozes Livres» #1
editora: Livraria Paisagem
local: Porto
ano: 1972
págs.: 125
dimensões: 20x12,5x0,6 cm. (brochado)
capa: Sousa Pereira sobre fotografia de Viseu Caldeira
impressão: Gráfica Firmeza, Porto

A ARTE DA FUGA / I

Sempre lhe é possível
olhar-te de outra forma.
Vê como se inclina,
como toma a pressa de um café
na bancada quase suja,
como corre para teu olhar
na esperança da ignorância.
Quem és tu?
Houve um momento
em que quase estiveste aqui,
quando o sol fez janelas
no reflexo do teu relógio.
Fala devagar.
Pronuncia cada palavra,
ambíguo,
fazendo banalidades
com música de judeu,
fazendo circo, trapézios
no desleixo de teu cabelo.
Ignoras esse que te contempla
no canto do olho, sereno,
enredado no seu novelo,
gato por brincar contigo.

Pedro Braga Falcão

MAR

És estrela e única vida.
Vida que sobe das esquinas ocultas
no mar sem águas, no mar
com águas sem sal que vêm a diluir-se
lá no fundo das distâncias mágicas!

Vida para quê?
Ó distância da vida pouco e pouco escoando-se.
Mistério do caminho cada vez mais certo?
E as auroras que eu via
e nelas me alava para as viagens futuras!

Mas não esta viagem em limite,
de passadas mutiladas.

Mar, tu és o que fica.

Osvaldo Alcântara

quinta-feira, 3 de março de 2011

A MATÉRIA DO SONETO

                                         à memória de Artur António da Silva Lino
                                        ao camarada
                                        ao amigo

Este soneto é feito de vertigens,
curvo corvo mordido pelo fogo.
Doze bocas de cidra são virgens
que não voltam mas dizem até logo.

Há corpos enforcados em carroças,
ombros gráceis a arder por sob as tranças.
E mulheres que nunca foram moças
deitam sapos nos olhos das crianças.

Este soneto é beco de poetas,
um pouco de veneno nas tabernas;
aqui rangem fantasmas, morre gente.

Este soneto cheira a meias pretas:
é papoila de cal, sebo das pernas,
oh flor sangrada, ovos de serpente.

Fernando Grade

PAÍS NATAL

Um sentimento de amor pátrio sobe no meu coração,
Em espírito demando o meu país natal,
E lembro aquela floresta africana,
Cheia de caça e de verdura;
Lembro as suas imensas árvores gigantes,
A folhagem verde ou amarela
Que nos perfuma.
Revejo a minha infância,
Toda cheia de alegrias:
Eu corria pelo mato,
Espiava os animais selvagens,
Sem medo;
E olhava os lavradores nos campos,
E, no mar, os pescadores,
Que lutavam contra o vento, para agarrar o peixe,
E que eu, atento, seguia com o olhar:
Como gostava de o ver no oceano
Domar as vagas, que lhes queriam virar as barcas!
(Ah!, bem me lembro, bem me lembro do meu país natal!)

António Baticã Ferreira

OFÍCIO DE VIVER

Vou sempre além de mim mesmo
em teu dorso, ó verso.
O que não sou nasce em mim
e, máscara mais verdadeira
do que o rosto, toma conta
de meus símbolos terrestres.
Imaginação! teu véu
envolve humildes objetos
que na sombra resplandecem.
Vestíbulo do informulável,
poesia, és como a carne,
atrás de ti é que existes.
E as palavras são moedas.
Com elas, tudo compramos,
a árvore que nasce no espaço
e o mar que não escutamos,
formas tangíveis de um corpo
e a terra em que não pisamos.

Se inventar é o meu destino,
invento e invento-me. Canto.

Ledo Ivo

quarta-feira, 2 de março de 2011

DOS MORCEGOS

Em aparecendo os morcegos
tudo se volta do avesso,
com vento sudoeste as nuvens
cavalgam sem tom nem som.

Cinzento céu, fazes passar
uma ideia fantástica do mar.
Vento fustigante, sabes decorar
as memórias inexactas do tempo.

Vento violento, rente ao mar
no Março findo, cheio de viúvas
e candente de estrelas ao alvorecer.

Dos morcegos a cega sinfonia
corre pelos telhados, onde iria
um monge de costas tentar ver.

José Carlos González