terça-feira, 31 de maio de 2011

A SERPENTE

Muito comprida.

Jules Renard
(Jorge de Sena)

RUINES DU COEUR

Mon coeur était jadis jadis comme un palais romain,
Tout costruit de granits choisis, de marbres rares.
Bientôt les passions, comme un flot de barbares,
L'envahirent, la hache ou la torche à la main.

Ce fut une ruine alors. Nul bruit humain.
Vipères et hiboux. Terrains de fleurs avares.
Partout gisaient, brisés, porphyres et carrares;
Et les ronces avaient effacé le chemin.

Je suis resté longtemps seul, devant mon désastre.
Des midis sans soleil, des minuits sans un astre,
Passèrent, et j'ai, là, vécu d'horribles jours;

Mais tu parus enfin, blanche dans la lumière,
Et, bravement, afin de loger nos amours,
Des debris du palais j'ai bâti ma chaumière.

François Coppée

segunda-feira, 30 de maio de 2011

NARCISO

a água cala
e lisa pára o múltiplo reflexo
por segundos
abre um sono de prata
em pedra e gota
a imagem se esquece
na pétala que decepa
olho por olho

Angela de Campos
(com palavras de Cecília Meireles)

A vida completa e bela e terna
está aqui já
mas não é desnecessário
escrever poemas

Adília Lopes

domingo, 29 de maio de 2011

BLEU OUTREMER

Il y a des chansons de mon pays,
-- de pauvres chansons en deuil! --
qui resonnent encore á mon oreille
dans les boulevards á Paris...

Et quoique j'aie un coeur sensible,
je n'ai jamais aimé
ces chansons nostalgiques...
-- Pauvres amours,
qui rôdent autour
de mon âme invisible!...

Oh! sur le pont métalique,
ces yeux qui se perdent
dans un remous!...

Le sauver?!
Pourqui faire?!
-- Laissons mourir le fou!...

Au jardin d'Hiver
J'ai vu les acrobates nus!

Au premier rang:
Jean Cocteau!...

Il y avait de l'eau
salée dan ses yeux francs,
et le souvenir lointain,
anormal,
d'un baiser maritime...

                           Paris, 1926


Olavo d'Eça Leal

sábado, 28 de maio de 2011

Sonetos de Amor Ilhéu

autor: Cristóvão de Aguiar (Pico da Pedra, 1941)
título: Sonetos de Amor Ilhéu
edição: do Autor
local: Coimbra
ano: 1992
págs.: 23
dimensões: 20x12,6x0,2 cm. (brochado)
impressão: Ediliber, Coimbra
tiragem: 250

O TEU NOME

Olho-te, a esta distância,
E recordo ainda o teu nome
Desenhado a lápis
No caderno escolar.

Vejo-o a brilhar,
Como se fossem de oiro
Todos os nomes da infância.

João Manuel Bretes

sexta-feira, 27 de maio de 2011

NEM NAVIO

Nem navio nem sombra de nuvem no mar
para um adeus de largada...

             Esta saudade infinita
             é uma ilusão que se disfarça.

Grita
que a dor passa!

-- Saudade é voz ancorada...

Manuel Lopes

POSTAL DE CABO FRIO

o céu
o sol
o vento o mar o sal.

tirando o que é rendoso
pertence o mais a todos.

o de sempre:
o sal entra na pele dos turistas
e sai pelo suor dos homens da salina.

operários do sal e concretismo
sal / saliva
sal / salário
no sal do saldo pouco: sal de assalto.

vento sopra nos estanques:
água-mãe (é mãe, coitada)
volta ao mar envergonhada.

Mário de Oliveira

quinta-feira, 26 de maio de 2011

SÃO MEUS ESTES RIOS

São meus estes rios
que buscam caminho
rastejando entre luar e silêncio,
sombra e madrugada,
até ao seu fim marítimo.

A minha alma está neles,
líquida e sonora
como a água entre o quissange das pedras,
o anoitecer das fontes.

Tenho rios vermelhos e quentes
na minha dimensão física,
rios remotos, remotos como eu.

Manuel Lima

NIGHT IN TUNISIA

Um piano corre solto
como um louco no deserto.

Cada palavra em pó se espalha
a noite cai como um consolo.

Treme túnica rouca
na aventura dessa estrada.

Um murmúrio exato enterra
no deserto a noite clara.

Palavra vaga e falha
um noite em lua brada.

Trama toada louca
na raia atormentada.

Um sábio exótico se devora
enquanto o sol chove lá fora.

Frederico Barbosa

quarta-feira, 25 de maio de 2011

À TARDE

Não sei o que há de indefinível, vago,
          Na morna luz da tarde,
Que nos envolve de um etéreo afago
          E como que nos arde.

De nós então parece que se evola
          Um fumo de ansiedade
Que tímido cantando ascende e rola
          Em busca da Verdade...

Rui de Noronha
Houve tempo em que julguei não ter tempo para ler.
E a minha máxima ambição foi então a de dispor de tempo para ler.
Uma página por dia.
Uma página de boa prosa.
Uma pauta de sinfonia aquiliniana, um fresco dum vasto painel de Paço
                                                                          [d'Arcos (Joaquim).
Ler, ler, ler -- era só o que eu queria.
Na paragem da Carris, podia ser.
Foi nessa altura que ganhei o hábito de fugir ao almoço.
Para ler, ler, ler.
Voltado para a parede, para não aturar chatos e ler a sós com o meu livro.
Depois, deixei de saber falar.
Cada encontro um contratempo, uma irritação, um aborrecimento.
Ler, ler, leer!
Mas pouco para dizer, e nada para escrever.

30-X-2006

HISTÓRIA DE CÃO

eu tinha um velho tormento
eu tinha um sorriso triste
eu tinha um pressentimento

tu tinhas os olhos puros
os teus olhos rasos de água
como dois mundos futuros

entre parada e parada
havia um cão de permeio
no meio ficava a estrada

depois tudo se abarcou
fomos iguais um momento
esse momento parou

ainda existe a extensa praia
e a grande casa amarela
aonde a rua desmaia

estão ainda a noite e o ar
da mesma maneira aquela
com que te viam passar

e os carreiros sem fundo
azul e branca janela
onde pusemos o mundo

o cão atesta esta história
sentado no meio da estrada
mas de nós não há memória

dos lados não ficou nada

Mário Cesariny

terça-feira, 24 de maio de 2011

FOLHA SOLTA

Não me culpeis a mim de amar-vos tanto,
mas a vós mesma e à vossa formosura,
pois se vos aborrece, me tortura
ver-me cativo assim do vosso encanto.

Enfadais-vos; parece-vos que, enquanto
meu amor se lastima, vos censura;
mas sendo vós comigo áspera e dura,
que eu por mim brade aos céus não causa espanto.

Se me quereis diverso do que agora
eu sou, mudai; mudai vós mesma, pois
ido o rigor que em vosso peito mora,

a mudança será para nós dois:
e então, podereis ver, minha senhora,
que eu sou quem sou por serdes vós quem sois.

Vicente de Carvalho

LES MAÑANES

Toles mañanes ye igual: una muyer
en bata asomando a la ventana.
Una muyer que ve coches aparcaos,
el carteru que vien cargáu
coles factures del bancu,
la plaza onde la vida
vei reblincar más tarde,
cuando de la escuela
lleguen los nenos
y la tarde vaya siendo
la promesa d'un mañana cotidiano
-- hermano del calor y la ropa fresco.

Pero un día acordar del sueñu
vai tener taste a nada,
a llechi rancio, a casa hai años zarrada
y que naide quixo alquilar.

El que sala a la ventana vei ver
cómo los díes encubrieron el cielu,
como pela plaza pasea, impúdica,
la estraña figura de la muerte.

Xuan Bello

segunda-feira, 23 de maio de 2011

Sedia la fremosa seu sirgo torcendo,
sa voz manselinha fremoso dizendo
               cantigas d'amigo.

Sedia la fremosa seu sirgo lavrando,
sa voz manselinha fremoso cantando
               cantigas d'amigo.

-- Par Deus de Cruz, dona, sei eu que avedes
amor mui coitado, que tan ben dizedes
               cantigas d'amigo.

Par Deus de Cruz, dona, sei [eu] que andades
d'amor mui coitada, que tan ben cantades
               cantigas d'amigo.

-- Avuitor comestes, que adevinhades.

Estêvão Coelho
Minha alma quer-te, ainda que em tortura,
E sigo-te alegre na ânsia de procura.
Que estranho, ser defesa a nossa ligação,
Se os desejos ambos concordaram!
Que quereria mais o coração
Quando amargurado te buscou em vão
E meus olhos te viram e amaram?
Como desejo que quem tem poder
Sobre ti em nosso encontro não esteja!
Só assim a minha sede se vai beber
Em doce fonte se teus lábios beija.

Ibn 'Ammar
(Adalberto Alves)

domingo, 22 de maio de 2011

ERA UMA VEZ...

À noite para adormecer
O lobinho na floresta,
A mãe loba conta histórias
E outro dia contou esta
O Capuchinho Vermelho
Certo dia, indo só
Atravessou a floresta
P'ra ir visitar a avó
Entreteve-se a falar
Com uns bichos brincalhões
Apareceu um grande lobo
E viu-se em complicações
E a mãe loba terminou
A história já conhecida
Em que o lobo por ser mau
Com um tiro perde a vida
Assustadinho a valer
Diz que já não quer crescer
Deitadinho ao pé da mãe
É que o lobinho está bem.

Isabel Lamas

sábado, 21 de maio de 2011

Cidades de Refúgio

autor: Mário Avelar (Lisboa, 1956)
título: Cidades de Refúgio
colecção: «The Impossible Papers»
editora: Black Sun Editores
local: Lisboa
ano: 1991
págs.: 24
dimensões: 17x12,60,2 cm. (brochado)
capa: Baptism in Kansas, de John Stewart Curry (reprodução parcial)
impressão: Tipografia Freitas Brito, Lisboa
tiragem: 300

sexta-feira, 20 de maio de 2011

É um mal a morte,
E os deuses assim pensam:
Ou já estariam mortos,
Há muito, muito tempo...

Safo

(Jorge de Sena)

MOMENTO

Nos olhos dos fuzilados,
dos sete corpos tombados
de borco, no chão impuro,
eis!
...sete mães soluçando...

Nas faces dos fuzilados,
nas sete faces torcidas
de espanto ainda, e receio,
...sete noivas implorando...

E do ventre de além-mundo,
sete crianças gritando
na boca dos fuzilados...

sete crianças gritando
ecos de dor e renúncia
pela vida que não veio...

Na boca dos fuzilados
vermelha de baba e sangue,
...sete crianças gritando!

Alda Lara

AUSÊNCIA

Desde que, por não te ver,
Vejo em tudo... noite escura,
Resta-me só a ventura
De duvidar em dizer:

-- Qual mais custa: se a tristeza
Dum adeus amargurado,
Se a dura e firme certeza
De estar penando a teu lado.

Manuel da Silva Gaio

SONETO QUASE MARÍTIMO

Nos ares formas de longínquo porto
E a precária presença do afogado,
Serpenteando pelo chão molhado
Constantes de agonia e desconforto.

Do ponteiro a uma flor passo absorto,
Punhos perfuram gritos no telhado,
Na moldura o retrato inacabado
Espera a fuga de um amigo morto.

Os últimos passantes são as almas
Dos marinheiros que, em ansiedade,
Procuram na viela a rua impura.

Que importam, na memória, noites calmas,
Se o mar está presente na cidade
E se eu já estou perdido em Singapura.

Carlos Moreira

O CORVO

-- Quê? quê? quê?...
-- Nada.

Jules Renard
(Jorge de Sena)

MA SEULE AMOUR

Ma seule amour, ma joie et ma Maîtresse,
Puisqu'il me faut loin de vous demeurer,
Je n'ai plus rien, à me réconforter,
Qu'un souvenir pour retenir liesse.

En allégeant par Espoir ma détresse,
Me conviendra le temps ainsi passer,
Ma seule amour, ma joie et ma Maîtresse,
Puisqu'il me faut loin de vous demeurer.

Car mon coeur las, bien garni de tristesse,
S'en est voulu avecques vous aller,
Et ne pourrai jamais le recouvrer
Jusques verrai votre belle jeunesse,
Ma seule amour, ma joie et ma Maîtresse.

Charles d'Orléans

quinta-feira, 19 de maio de 2011

O estado de iluminação não existe,
é um equívoco da sombra,
um momentâneo desvario da luz
quando hesita entre a cal  a cinza,
entre a atmosfera saturada
dos exíguos quartos interiores
e o sufoco das rosas, das camélias,
nas redomas escondidas, ocultas
que o tempo ofusca e embacia, meticuloso
artífice do envelhecimento das coisas.

José Jorge Letria

PARECEU-ME UM

pareceu-me um folgado gato na sesta
inquietou-me como uma coisa semimorta
apavorou-me como uma imensa asa desmaiada
lembrou-me um longínquo e achatado ente negro
assustou-me como um velho cágado triste
turvou-me como uma estopa de pôr carvão
aterrorizou-me como um paletó defunto
afigurou-se-me um vivente doméstico
encantou-me como um leque de nada
: retrocedi, e então vi
(era apenas seu
short preto
jogado sobre
a pia, seu
short-você
sem suas
pernas)

Anelito de Oliveira
Papagaios verdes
nas árvores de Lisboa
que estranho!
que maravilha!
                        12.2.09
Adília Lopes

quarta-feira, 18 de maio de 2011

IMPROMPTU

E assim te foste, luz de vaga-lume,
feita de segredo e brevidade.
Impossível definir aquele perfume
que o teu surgir me trouxe nessa tarde.

Alberto de Lacerda

RUÍNA

Mar parado na tarde incerta.
No horizonte, uma vela que se perde
atrás da rocha com cara de gente.
Voz sem boca
canta morna monocordicamente
quando o Sol diz adeus no raio verde.

A tarde é morta
na praia deserta.
A voz rouca.
O céu é sangue ou brasa.

Mão decepada acena ao sol ausente
inútil adeus pela porta
que ficou aberta
num muro que já foi casa...

Manuel Lopes
Fazer nome à custa dos grandes autores é uma forma de parasitismo. Mesmo pelas melhores intenções, por mais satisfatórios que sejam os resultados.

terça-feira, 17 de maio de 2011

O MONHÉ DAS COBRAS

Manhã gloriosa, imobilizada na distância,
no extremo da caixa de areia branca
onde, agachado, anónimo e ascético,
envolto em alvos panos e silêncio,
está. O pudvém cobre-lhe o escroto

e sobraça-lhe as pernas magras e finas
de esquálido aracnídeo. No topo o turbante
e a barba anciã oscilam na brisa matinal.
Principia, então, a enfeitiçar o dia,
com exactos gestos rituais. Ergue-se,

por fim, plangente e implorativo,
o sinuoso som, para revelar, em
lentos arabescos, os assombros guardados
no sábio cesto de vime. Obedientes,
as cobras capelo encenam, à maneira,

seu acto, a coberto da enganosa pintura.
Húmidas, dardejam ao sol, rápidas,
coruscantes e fatais línguas bífidas.
Nós, meninos, paralisados de medo
e espanto. A esteira irá perder-se

no longe da areia, gasto tapete voador
voando imóvel no céu profundo
da imaginação. Privilegiado observador
desta vigília acesa debruando já,
de mansinho, as margens do sono.


Rui Knopfli

ADUBO

O talento dos autores que estudamos é uma espécie de adubo que nos faz medrar. A nossa pequena notoriedade ganha-se à sua custa.

ROSA MÍSTICA

               Hour of love.
               Byron. Parisina

Do pôr-do-sol àquela luz sagrada,
Eu perdia-me... ó hora doce e breve!...
Meu peito junto ao seu colo de neve,
-- Numa contemplação vaga e elevada

Nossas almas s'erguiam, como deve
Erguer-se uma alma à Luz afortunada.
Do mar se ouvia a grande voz chorada.
-- Palpitavam as pombas no ar leve.

Eu então perguntei-lhe, baixo e brando:
Em que mundo de luz é que caminhas?
Que torre está tua alma arquitectando?...

-- Ela, travando as suas mãos nas minhas,
Me disse, ingénua, então: -- Estou cismando
No que dirão, no ar, as andorinhas.

Gomes Leal

UMA DE NOME EMÍLIA

uma mulher nasceu em Trás-os-Montes
e veio dar-me à luz cá no Brasil
dela só soube o nome (e era Emília)
antes que eu mais soubesse, ela partiu.

deixou porém vagando no meu sangue
caravelas herdadas a Cabral
que inflando suas velas invisíveis
me pedem mar... distâncias... Portugal.

trazem-me estranhas, vagas nostalgias
daquilo que eu não vi nem foi sonhado,
de gentes que eu amei sem tê-las visto,
de campos que eu cruzei sem ter cruzado.

leva-me às vezes com tal força o vento
na direcção do mar, daquelas terras,
que em pensamento parto na procura
do que ficou em mim além das serras.

caminho então por vilas abstractas
em que há ruas e casas de neblina
e espero ver um vulto que me chame
detrás de alguma porta, de uma esquina.

mas nada vejo dessa sombra antiga
que o deslizar do tempo consumiu,
nada que lembre certa transmontana
que teve certo filho no Brasil.

Mário de Oliveira

TEUS OLHOS

Teus olhos, Honorine, cruzaram oceanos,
longamente tristes, sequiosos,
como flor aberta nas sombras em busca do sol.
Vieram com o vento e com as ondas
através dos campos e bosques da beira-mar.
Vieram até mim, estudante triste,
Dum país do sul.

Ruy Cinatti

segunda-feira, 16 de maio de 2011

MOONLIGHT IN VERMONT

Pérolas às poças,
telegramas na água.
Encontros românticos
sob folhas de luar.

Venenos de Verlaine
espelhadas em Vermont.
Ventos de outono no verão,
raios de neves marrom.

Uma letra é uma letra,
mas a voz Ella penetra
em flecha a nota certa.

Encontra a rota aberta
no rio das notas Oscar,
ar que a luz-voz refresca.

Frederico Barbosa

MAVÍKIS

De manhãzinha, a mata ainda escura,
Ainda dormindo os colibris nos ninhos,
Partem cantando uma canção obscura,
Em variados grupos, ou sozinhos.

Segura a mão calosa a moca dura.
E eles a cantar pelos caminhos
Antigas tradições de ida bravura,
Canções obscenas, ritos de adivinhos...

Já fogem as estrelas derradeiras,
E acendem-se as grotescas maçaleiras
À luz do sol fecunda e abrasadora.

Já chegam à cidade, -- mas o canto,
Que os trouxe de tão longe, irá entanto
Suavizando a faina o dia fora...

Rui de Noronha

domingo, 15 de maio de 2011

Amor   é fogo que arde e se vê
        em ti
        em mim
        em tudo o que consome
Cegos
        surdos
               apenas te sabemos
            apenas te queremos
                          fatal fome

Ana Hatherly

sexta-feira, 13 de maio de 2011

SONETO

Pára-me de repente o pensamento
Como que de repente refreado,
Na doida correria em que levado
Ia em busca da paz do esquecimento.
Pára surpreso, escutando, atento,
Como pára um cavalo alucinado
Ante um abismo súbito rasgado:
Pára e fica; na doida correria
Pára à beira do abismo e se demora:
E mergulha na noite escura e fria
Um olhar d'aço que essa noite explora;
Mas a espora da dor seu flanco estria
E ele galga e prossegue sob a espora.

Ângelo de Lima

quarta-feira, 11 de maio de 2011

LÍNGUA PORTUGUESA

Última flor do Lácio, inculta e bela,
És, a um tempo, esplendor e sepultura:
Ouro nativo, que na ganga impura
A bruta mina entre os cascalhos vela...

Amo-te assim, desconhecida e obscura,
Tuba de alto clangor, lira singela,
Que tens o trom e o silvo da procela,
E o arrolo da saudade e da ternura!

Amo o teu viço agreste e o teu aroma
De virgens selvas e de oceano largo!
Amo-te, ó rude e doloroso idioma,

Em que da voz materna ouvi: «Meu filho!»
E em que Camões chorou, no exílio amargo,
O génio sem ventura e o amor sem brilho!

Olavo Bilac
As cartas dele! Papel morto e frio...
Parecem hoje estremecer, no entanto
e tomar vida, e palpitar, enquanto
com as trémulas mãos lhes solto o fio.

Esta lembra um encontro fugidio;
esta, uma coisa simples: o encanto
dum aperto de mão; mas diz-me tanto
que um dia todo, ao lê-la, choro e rio.

Esta me escreve: «Adoro-te, querida!»
e caí, deslumbrada, a soluçar
como se fosse o fim da minha vida!

Mas esta... A tua fé, no próprio altar,
viste, ó Amor, vilmente escarnecida,
se o que esta diz eu devo acreditar.

Elizabeth Barrett Browning

(Luís Cardim)

terça-feira, 10 de maio de 2011

Ondas do mar de Vigo,
se vistes meu Amigo!
     E ai Deus, se verrá cedo!

Ondas do mar levado,
se vistes meu amado!
     E ai Deus, se verrá cedo!

Se vistes meu amigo,
o por que eu sospiro!
     E ai Deus, se verrá cedo!


Se vistes meu amado,
por que ei gran cuidado!
     E ai Deus, se verrá cedo!


Martin Codax

A ALCACHOFRA

Filha das águas e da terra
Para quem lhe almeja os dons
É corpo numa veste de recusa.
E na sua beleza obstinada
Bem no cimo lá da haste
Lembra uma jovem cristã
Que cota de espinhos usa.

Ibn 'Ammar

(Adalberto Alves)

segunda-feira, 9 de maio de 2011

Se me amas busca juvenil amor
Que contigo partilhe a vida e o lar:
Sequer posso pensar em que seria
A amante velha de um marido jovem.

Safo

(Jorge de Sena)
Há um sabor gostoso da manhã
nesta mancha de gente que procura
animar a cidade que a não vê.
A cidade que pensa que a cidade
é só daqueles que nunca acordam cedo
e alugando um polícia para cada medo
conseguem saturar esta cidade imensa
da sua vadiagem tola e vã.

Cochat Osório

domingo, 8 de maio de 2011

EM DIA DE PÁSCOA

5

Podes viver sem máscaras O Sol
é forte e o indiscreto olhar viola
devassa gota a gota o sangue e as lágrimas
A roupa esconde o corpo só o rosto

não tem resguardo Com a própria pele
inventa máscaras de luz e sombra
Onde é que elas acabam principiam
é no mover das rugas no acender

dos olhos Máscaras de ao pé da porta
cumprimentar sorrir fechando a alma
não quero as de enganar nem de mentir

Buscas no espelho as máscaras perdidas
olhas os olhos o franzir da boca
não te afogues no espelho de Narciso

António Borges Coelho

Letrinhas de Cantigas

autor: António Lobo Antunes (Lisboa, 1.IX.1942)
título: Letrinhas de Cantigas
edição: Publicações Dom Quixote
local: Lisboa
ano: 2002
págs.: 55
dimensões: 17,511,1x0,4 cm. (brochado)
capa: Atelier de Henrique Cayatte com Rita Múrias
impressão: Norprint
obs.: «Esta edição (inédita e irrepetível) comemorativa dos 20 anos de trabalho do António Lobo Antunes com as Publicações Dom Quixote, não pode ser vendida, destinando-se exclusivamente a oferta aos compradores de outras obras do autor» (da ficha).

sexta-feira, 6 de maio de 2011

SEGREDO

Descansa. Nem tu sabes, nem eu digo!
A lua, que baixou do céu ao lago,
Não adivinha se a deixei... se a trago
Dentro da alma, como um sonho antigo.

O néctar, que eu procuro e que maldigo,
O vinho, que abençoo a cada trago,
Este veneno com que me embriago...
É mistério dum só: irá comigo!

Porque suplicas que me dê, que fale?
-- Porque não sabes quanto a noite vale
E não calculas como é bom assim!

Bem sinto a dor que o teu olhar goteja;
Mas o Princípio, por melhor que seja,
É pai dum monstro, que se chama Fim!

Queirós Ribeiro

OS OLHOS SECOS

Não chego a ser um gemido entre o choro geral,
olhos enxutos, mãos no bolso, a displicência.

Vejo o baile nas janelas acesas.
Quanta alegria nos homens sem memória!

Outras janelas, o caixão, as velas no silêncio.
As cortinas como almas libertadas,
a lágrima da mãe no lenço preto.
Os meus passos doem, cantando na calçada.
As estrelas quietas ruminando as horas,
mas meus olhos aflitos e ninguém percebe.

O nó na garganta, o grito parado,
a brasa na cinza...

Bueno de Rivera

quinta-feira, 5 de maio de 2011

A BALEIA

Tem na boca barbas de sobra para fazer um espartilho. Mas com aquela
                                                                                                   [cintura!...
Jules Renard

(Jorge de Sena)
Reste. N'allume pas la lampe. Que nos yeux
S'emplissent pour long temps de ténèbres, et laisse
Tes bruns cheveux verser la pesante mollesse
De leurs ondes sur nos baisers silencieux.

Nous sommes las autant l'un que l'autre. Les cieux
Pleins de soleil nous ont trompés. Le jour nous blesse.
Voluptueusement berçons notre faiblesse
Dans l'océan du soir morne et silencieux.

Lente extase, houleux sommeil exempt de songe,
Le flux funèbre roule et déroule et prolonge
Tes cheveux où mon front se pâme enseveli...

Calme soir, qui hais la vie et lui résistes,
Quel long fleuve de paix léthargique et d'oubli
Coule dans les cheveux profonds des brunes tristes?

Catule Mendès

quarta-feira, 4 de maio de 2011

ÁGUA?

: é água, passando
no cano, que passa
por dentro, ali na
parede, aqui, deste
apartamento, isto
que você ouve como
dilúvio, agora, no
seu canto, quieto,
esta noite, aqui,
a pensar em nada:
tudo sabe que é (
água), mas você pode
registrar: sangue
vapor fogo rumor
de ar, qualquer som
que faz do silêncio
veia prestes a es-
tourar, qualquer
ruído que anuncia
um corpo onde é

Anelito de Oliveira

DEPOIS DE LER O APRENDIZ SECRETO, DE ANTÓNIO RAMOS ROSA

O construtor sabe que veio do nada e vai para o nada. Provém do magma imemorial das origens e sente que não existe outro futuro para além da poeira cósmica resultante da decrepitude inevitável do planeta. Não lhe basta o instinto vital da procriação. Frui cada corpo como matéria primeva e análoga a si. E luta, incessantemente luta o construtor por uma estética do bem que acolha a beleza e a fealdade imanentes, o sémen e os excrementos que fertilizarão a massa informe resultante da nova agregação do pó. Até à eclosão dum outro universo. Depositário das partículas de nada do construtor.


29-V-2003

terça-feira, 3 de maio de 2011

Havia só um caminho
um caminho de pedras

Des esmeraldas turquesas safiras e rubis
de pedras brancas da calçada lisboeta

Adília Lopes

ENCRUZILHADA

Que disse a Esfinge
aos homens mestiços de cara chupada?

Esta encruzilhada
de caminhos e de raças
onde vai ter?
Por que virgens paragens se prolonga?

Aonde vão nas suas andanças
os homens mestiços de cara chupada?

Que significa para eles o amanhecer?

               Ilhas de heroísmos e derrotas e esperanças
               que a História não escreve
               onde a hora é longa
               e o dia breve...

Manuel Lopes

segunda-feira, 2 de maio de 2011

O alto da montanha deixou de brilhar

O alto da montanha era um corpo
Um rosto
Um olhar demorado em seu brilho secreto
E perigoso

O alto da montanha era neve e era fogo

Num dia misericordioso deixou de brilhar
Para mim

Ardera tudo até ao último suspiro

À derradeira lágrima

Londres
24 de Abril 97

Alberto de Lacerda

domingo, 1 de maio de 2011

PERGUNTO-ME

pergunto-me
que passaporte é necessário para chegar ao coração
que visto ou certificado que senha ou passe
que abracadabra
ou que carimbo mágico
acendem os círculos
acham a sua terra

terra prometida
atlântida e sonho

eu que tenho asas e vou sem rumo

Ana Mafalda Leite

BABEL E O LABIRINTO

Cabisbaixos e de ombros vergados descemos
devagarinho a aspereza do trilho, paisagem
a desembocar na discórdia de ignotos
panoramas. Entre o severo românico
e o gótico mais ágil, touros silentes,

transitam lentos e graves no tempo.
Hirtos, alongados dedos, catedrais negrejam
sobre o trigo louro, apontando o céu.
Católicos álgidos túneis, muros de alta rocha
húmida, intercalando, num perverso gosto

bourbónico, de róseos e grises mármores,
a morna ardência de opacas purpurinas.
Para trás tomba o peso insuportável
da infância. Não aquece em Abril o sol
da Primavera. Estrangeiras, nossas vozes

cruzam-se ensaiando a escuridão
no túnel do olvido. Cegos caminhamos
a ocultas de nós próprios, enquanto
nós próprios nos espreitamos outros
desde um mapa longínquo e luminoso

que sabe ao fruto perdido da inocência.
Sílabas dissonantes cunhadas na têmpera
de novos metais gelam no ar translúcido.
Sento-me Quai S. Michel junto aos aprumados
plátanos do Sena. Anos, séculos, um longo

tempo parado, intervalar, se abate
sobre mim. Devagarinho, imperceptivelmente,
como furtivas, exauridas lágrimas,
os meus amigos de outrora
diluem-se para fora da linguagem.

Rui Knopfli