sábado, 30 de abril de 2011

Primeiros Poemas / As Mãos e os Frutos / Os Amantes sem Dinheiro

autor: Eugénio de Andrade (Póvoa da Atalaia, Fundão, 19.I.1923 -- Porto, 13.VI.2005)
título: Primeiros Poemas / As Mãos e os Frutos / Os Amantes sem Dinheiro
colecção: «Obra de Eugénio de Andrade» #1
edição: 1.ª conjunta; 8.ª, 14.ª e 13.ª, respectivamente
editora: Fundação Eugénio de Andrade
local: Porto
ano: 1993
págs. 104
dimensões: 20,1x12,8x0,7 cm. (brochado)
capa: Armando Alves
impressão: Helvética -- Artes Gráficas, Gondomar
obs.: desenho de Ângelo de Sousa; retrato do autor por Júlio Pomar, 1953; nas badanas, excertos de apreciações de Vitorino Nemésio, Jorge de Sena, António Ramos Rosa e Eduardo Lourenço.

sexta-feira, 29 de abril de 2011

ANTES QUE

antes a violência da queda
antes a faca - paixão cega
antes a vida que se entrega
antes a raiva que se eleva
antes a verdade mais severa
antes a existência precária
                                       
                                            que a inércia do medo
                                            que a vida posta em sossego
                                            que a mendicância de arrego
                                            que a mágoa em segredo
                                            que a armação de um enredo
                                            que a rotina nos retorcendo

O PRIMEIRO HOMEM

Era um homem viciado na luz.
As mulheres que diziam "o homem, o homem"
levantavam-se ou levantavam os olhos
ofuscados e repetiam o homem
e apontavam confusas para dentro do olhar
do homem.
O homem achava estranho que elas
dissessem apenas isso: "o homem",
e um dia disfarçou-se de mulher
para se esconder da luz.

Da primeira solidão do homem
ninguém falou.
Ninguém repetiu
a primeira solidão do homem.

Filipa Leal

JAZZ

O jazz
aquece a noite
generoso sopro
substitui a escuridão.

Charlie Parker
passeia
invisível pela sala
se instala
no lado avesso da razão.

A raça humana
cartesiana
sai em busca de outros tons.

Ricardo Mainieri

quinta-feira, 28 de abril de 2011

Quem
me concede
os anjos
que as nuvens imitam?

Oiço vozes
mas é inútil

Cada pancada do meu coração
não repercute
no vosso
            alado
                    lado

O meu grito
não penetra a noite

e só encontra
o eco
          de nenhum
                           desejo

Ana Hatherly

VERÃO SEM MITOS, COMO CONSUMIR

Verão sem mitos, como consumir
teus frutos tão sem sol neste pomar?
Ai de nós nesta terra sem florir!
Outubro nos escorre devagar...
Nos campos, sem besouros a zumbir,
pararam todos já de trabalhar.
Os motes que glosávamos a rir
novembro, em tristes voltas vem glosar.
E tu, sazão, que este País fruía,
quem te ofuscou do Nume o brilho louro
arder nos faz em labareda fria...
Eis perdida no caos a Idade do Ouro!
E a crer em quanta crença e profecia,
este tempo será mais duradouro...

Jayro José Xavier

quarta-feira, 27 de abril de 2011

VARIANTE POUR UNE FIN

On vient de sonner à la porte
Personne
Qu'est-ce que je me veux
De toute façon ce fantôme
aurait maintenant
des cheveux
blancs
comme
moi
On sonne on sonne
Sans doute ne sait-il plus quoi
faire de ses dix doigts les mains mortes

Paul Gilson

MUNDO DE AVENTURAS

Uma pequena aldeia na planície arménia,
nevoeiro matinal no porto de Dieppe.
O silvar agudo nos cimos dos Cárpatos,
um castelo solitário num lago escocês.
Um junco chinês no mar do Japão,
um trilho de camelos na Rota da Seda.
Um catre vazio no mosteiro da Arrábida,
uma via romana na serra do Gerês.
Uma mesa de cozinha e odores de Outono,
um eucaliptal onde brinco com o Avô.
O último número da revista tão esperada,
despojos da infância que se me acabou.
Sintra, 21 de Março de 2001

CARREGADORES

A pena que me dá ver essa gente
Com sacos sobre os ombros, carregadíssima!...
Às vezes é meio-dia, o sol tão quente,
E os fardos a pesar, Virgem Santíssima!...

À porta dos monhés, humildemente,
Mal a manhã desponta a vir suavíssima,
Vestido rotas sacas, tristemente
Lá vão 'spreitando a carga pesadíssima...

Quantos, velhinhos já, avós talvez,
Dez vezes, vinte vezes, lés a lés
Num dia só percorrem a cidade!

Ó negros! Que penoso é viver
A vida inteira aos fardos de quem quer
E na velhice ao pão da caridade...

Rui de Noronha

terça-feira, 26 de abril de 2011

HORIZONTE

Ó mar anterior a nós, teus medos
Tinham coral e praias e arvoredos.
Desvendadas a noite e a cerração,
As tormentas passadas e o mistério,
Abria em flor o longe, e o sul sidéreo
Splendia sobre as naus da iniciação.

Linha severa de longínqua costa --
Quando a nau se aproxima ergue-se a encosta
Em árvores onde o longe nada tinha;
Mais perto, abre-se a terra em sons e cores:
E, no desembarcar, há aves, flores,
Onde era só, de longe e abstracta linha.

O sonho é ver as formas invisíveis
Da distância imprecisa, e, com sensíveis
Movimentos da esperança e da vontade,
Buscar na linha fria do horizonte
A árvore, a praia, a flor, a ave, a fonte --
Os beijos merecidos da Verdade.

Fernando Pessoa
Aquela triste e leda madrugada,
Cheia toda de mágoa e de piedade,
Enquanto houver no mundo saudade
Quero que seja sempre celebrada.

Ela só, quando amena e marchetada
Saía, dando ao mundo claridade,
Viu apartar-se de uma outra vontade,
Que nunca poderá ver-se apartada.

Ela só viu lágrimas em fio,
Que de uns e de outro olhos derivadas
Se acrescentaram em grande e largo rio.

Ela viu as palavras magoadas
Que puderam tornar o fogo frio,
E dar descanso às almas condenadas.

Luís de Camões

quinta-feira, 21 de abril de 2011

Entre este álamo, ó Nise, e essa corrente,
Que agora estão meus olhos contemplando,
Parece, que hoje o céu me vem pintando
A mágoa triste, que meu peito sente.

Firmeza a nenhum deles se consente
Ao doce respirar do vento brando;
O tronco a cada instante meneando,
A fonte nunca firme, ou permanente.

Na líquida porção, na vegetante
Cópias daquelas tramas se figura
Outro rosto, outra imagem semelhante:

Quem não sabe, que a tua formosura
Sempre móvel está, sempre inconstante,
Nunca fixa se viu, nunca segura?

Cláudio Manuel da Costa  

LULLABY

Passarinho pequenino,
que dizes tu, tão cedinho?
Quero voar, minha mãe,
quero voar deste ninho...
Passarinho, passarinho,
     -- meu tontinho! --
Deixa as penas crescer bem,
logo no ar te sustém...

Bebèzinho pequenino,
que palras tu, tão cedinho?
Quero correr, minha mãe,
voar como o passarinho...
Bebèzinho, bebèzinho,
     -- meu tontinho!
Dorme um pouco mais, meu bem...
Cedo voarás, também...

Tennyson

(Luís Cardim)

quarta-feira, 20 de abril de 2011

as provas de amor se manifestam
quando não são exigidas

Pois nossas madres van a San Simon
de Val de Prados candeas queimar,
nós, as meninhas, punhemos d'andar
con nossas madres, e elas enton
          queimen candeas por nós e por si
          e nós, meninhas, bailaremos i.

Nossos amigos todos lá iran
por nos veer, e andaremos nós
bailand' ant' eles, fremosas [en] cós,
e nossas madres, pois que alá van,
          queimen candeas por nós e por si
          e nós, meninhas, bailaremos i.

Nossos amigos iran pour cousir
como bailamos, e poden veer
bailar moças de bon parecer,
e nossas madres, pois lá queren ir,
          queimen candeas por nós e por si
          e nós, meninhas, bailaremos i.

Pero de Viviães

NÁUFRAGO

Neste espantoso e surdo mar em que me agito
Bem quero soçobrar... Em fúria cega e tanta
Quando eu lutando em vão me afundo e precipito
Logo uma vaga enorme e torva me alevanta...

Tolda-me o espaço a lucidez... e se medito
Toda a razão se desvanece e se quebranta;
Fito os olhos no vago, e cego... e se os desfito
Logo a fascinação da luz se desencanta...

Se a espaços a distingo, a forma que se esfuma
É a do corpo meu, boiando sobre o mar
Já roxo e mutilado, envolto pela bruma...

E a Dúvida persiste... as ondas agitadas
Amortalham de espuma o corpo, que a boiar
Fita no espaço ainda as órbitas vazadas...

José Coelho Pacheco 

RATOS E HOMENS

But if the while I think on thee, dear friend / All losses are restor'd, and sorrows end.


                                                                                                                                                                                          Shakespeare

No Bosque Proibido, romance de Mircea Eliade, Stefan refugiou-se do blitz londrino nas estações do Metro. No bolso levava sempre uma edição dos sonetos de Shakespeare, que lia obstinadamente enquanto as bombas caíam. Os Sonnets preservavam-no da ameaça lançada dos ceús. Nessa espécie de esgoto, a poesia fazia a diferença entre ratos e homens.

terça-feira, 19 de abril de 2011

ADAGIO

Repouso a minha fronte
Dorida no teu peito:
E o meu bem-estar é feito
De não ter horizonte.

Nela sentindo, leve,
A tua mão passando,
Fico entressonhando
O derreter da neve...

Que translúcido vago
Meu suave esquecer
No teu último afago...
-- O meu anoitecer.

Nada hoje me peça
O teu querer-me : deixa
Que tão breve adormeça
Como a tarde se fecha.

Carlos Queirós

LA STATUE ABANDONÉE

Le corps de la femme était un ciel plein d'ombres
sa nuée s'allongeait brisée en plis amers
les lianes les fougères embrassaient la pierre
et deux mains parfumées s'ouvraient à mon approche

Géo-Charles

MAÇÃS E PÊRAS

Aceitai,
     Como rostos amáveis que se vos mostrassem
     Ou tímidos seios palpitando vossas mãos
estas maçãs: Pérolas entre nós espalhadas
Como botões em seu ramo postos.
Tomai-as e ofertai-as aos presentes
Como vinho preso de surpresa
Pelo gelo de inverno.
Eis também pêras para duplicar a minha dádiva.
E apenas se me oferece dizer:
São tão-somente brancas faces
Onde pousaram profundos olhos negros.

Ibn 'Ammar

(Adalberto Alves)

segunda-feira, 18 de abril de 2011

O amor -- súbita brisa
Que nas folhas tropeça --
Meu coração deixou
Tremente.

Safo

(Jorge de Sena)
Passam crianças
pálidas,
cansadas,
com os livros na mão,
a pasta
ou nada.
Nem parecem crianças a passar.
Há na indiferença triste daqueles passos
a vaga acusação
de terem estado um doloroso verão
ou a fingir
ou a estudar.
(E algumas
não comeram sequer
ao abalar).

Cochat Osório

DOR MORTA

Foi secando aquela dor...
               Planta daninha!
Que perfume embriagador
          Ela não tinha!

Foi morrendo... o coração
          Inda se queixa...
Mas eu fiz uma oração
          Da sua queixa.

E, alta noite, vou rezar,
          Joelho em terra...
O céu chora com pesar,
          A sombra aterra.

Mas a lua entra a sair,
          Intemerata,
E o luar entra a cair
          -- Chuva de prata...

Então a dor que morreu
          Surge mais bela...
Quem move os lábios -- sou eu;
          Quem reza -- é ela.

Queirós Ribeiro

domingo, 17 de abril de 2011

A manhã é um leque
Branco
Desdobrado até
Aos quatro pontos cardeais

Sol branco
Imperador fraterno
Do azul muito ténue

Yèvre-le-Châtel
25 de Junho 90

Alberto de Lacerda

Pelo Sonho É que Vamos

autor: Sebastião da Gama (Vila Nogueira de Azeitão, 10.IV.1924 - Lisboa, 7.II.1952)
título: Pelo Sonho É que Vamos
prefácio: Ruy Belo
edição: 3.ª
colecção: «Poesia»
editora: Edições Ática
local: Lisboa
ano: 1979
págs.: 77
formato: 20x14x0,6 cm. (brochado)
impressão: Tipografia Macário, Lisboa
capa: desenho de Almada Negreiros
obs.: extratextos com retrato do Autor e fac-símiles de alguns poemas

sábado, 16 de abril de 2011

IDEIA DO POEMA

Fluída, indecisa, volátil,
inconcreta, a ideia não
se submete facilmente
ao cerco insidioso
da palavra.

                  Elusiva
e ambígua a cada
instância se lhe furta,
presa de um discreto pudor.
A palavra é, porém,

audaciosa, pertinaz, envolvente.
Persegue-a e espreita-a,
faz-lhe longas esperas
e sai-lhe ao caminho
a horas inesperadas, em lugares

incertos.
               Cativa-a
e perturba-a lentamente
subverte-lhe a vontade,
exalta-lhe os sentidos

e, amorosamente,
nela penetra, desfigurando-a.
Da ideia já nada
ou quase, sobra.
Senão o poema.

Rui Knopfli

sexta-feira, 15 de abril de 2011

POEMA

Era como se fosse mas não sendo:
um súbito desvão de ser fizera
uma subida que fosse ir descendo
-- outono travestido em primavera.

Amor ou desamor? Se alguém soubera...
Mas quem acreditasse ia descrendo
e do próprio descrer o era não era
entrefechava os olhos de estar vendo.

Se a palavra foi dita, o vento ergueu-a
nos seus caminhos, tão precipitado
que foi como se fosse adivinhada.

E eu amo esta incerteza que ela deu a
meu coração maduro deserdado:
que amor sempre será coisa sonhada!

Bandeira Tribuzi 

O PIRILAMPO

Que se passa? Nove horas da noite, e há luz ainda em casa dele?

Jules Renard

(Jorge de Sena)

quinta-feira, 14 de abril de 2011

ÉPIGRAMME

Je mourrai de trop de désir,
Si je la trouve inexorable;
Je mourrai de trop de plaisir,
Si je la trouve favorable.

Ainsi, je ne saurais guérir
De la douleur qui me possède;
Je suis assuré de périr
Par le mal ou par le remède.

Isaac de Benserade

A LÁGRIMA DE VAN GOGH

o ar da tarde reflete
as flores do arco-íris

mudas, as cores giram
lisérgica dança de Shiva
sobre o campo de girassóis

centeio embolorado
: auto-retrato da Loucura
nas pupilas em chamas

& uma única lágrima
guardada
na caixinha de jóias

Ademir Assunção

ADÁGIO

Um drama pessoal está sempre por detrás do mais aceitável que já escrevemos.

quarta-feira, 13 de abril de 2011

BEATITUDE

No paraíso, na idade de ouro,
ouvindo os anjos tocarem alaúde
e flauta, as nuvens acorrem
como ovelhas
à sua beira. Então, os santos
pegam nas tesouras e começam
a tosquia das nuvens. Lá
em baixo, nos prados onde as almas
se juntam, começa a chover: e como
já não haverá guarda-chuvas,
na idade do ouro,
as almas constipam-se,
amaldiçoando
as ovelhas, as nuvens
e os santos. Só os anjos, continuando
a tocar, se riem, beatíficos, ouvindo
o bater da chuva
por entre o espirrar
das almas.

Nuno Júdice

PERGUNTAS

Tenho sempre, na algibeira da noite,
algumas vigorosas perguntas de reserva,
prontas a disparar em legítima defesa
contra o negrume.

Algumas são pequeninas, vulgares
aspectos de pormenor.
Outras, pelo contrário, são enormes,
desabridas como a boca dum forno --
do género, porque é que deste quatro,
e não seis, ou oito, pernas à rã.

Hoje ocorre-me fazer a menor de todas:
se foste tu que fabricaste o tempo
e a ele nos acorrentaste?
e com que barro? e com que raio
de segunda intenção?

Se é que não foi apenas por descuido.
Ou até casualmente, como acontece às vezes
ao cientista que faz experiências
e acaba por descobrir seja o que for.

A. M. Pires Cabral

CRIOULO

Há em ti a chama que arde com inquietação
e o lume íntimo, escondido, dos restolhos,
-- que é o calor que tem mais duração.
A terra onde nasceste deu-te a coragem e a resignação.
Deu-te a fome nas estiagens dolorosas.
Deu-te a dor para que nela
sofrendo, fosses mais humano.
Deu-te a provar da sua taça o agridoce da compreensão,
e a humildade que nasce do desengano...
E deu-te esta esperança desenganada
em cada um dos dias que virão
e esta alegria guardada
para a manhã esperada
em vão...

Manuel Lopes

terça-feira, 12 de abril de 2011

MÚSICA NA NOITE

Te imagino
breve bossa
leve jazz
na noite dissonante
das capitais.

Capto
todo o efêmero
em desfile.

Destilo
tintos vinhos
com estilo
atento ao falso brilho
ao redor.

Retorno
cinza manhã.

Ricardo Mainieri

AMAIS: AMENOS

Um passoamais e já seria
um passoamenos e tem sido
amais é o jogo que conta
amenos é a calma que volta

soa o som do minuto tic
entre o amais e o amenos
e a face de hoje solércia
entre o amais e o amenos

se jamais o passoamenos
for dado será a menos
que o passoamais seja negado
se jamais o passoamais
for dado será a menos
que o passoamenos seja negado

pisadamais pisadamenos
controlar a perna os pés
no ar os pés amais amenos
buscando no abrir asas

Silviano Santiago

segunda-feira, 11 de abril de 2011

há dezoito séculos que teus olhos de pedra
olham o mar
mar que vem do fundo, do céu enorme, e se imobiliza
a teus pés
quantas vezes, ao longo destes dezoito séculos,
terás querido romper o silêncio,
a magnificência da tua atitude
e descer as escadas até ao lugar do fundo
onde a face de apolo todas as tardes se incendeia
da febre do mediterrâneo
mas aí ficaste
no teu lugar de mármore
corajosamente enfrentando a erosão que te mina
por dentro as vísceras de pedra
vendo as chamas do tempo silenciosamente crepitando
nas aras solitárias
-- minha deusa de sabratha

Vítor Oliveira Jorge

NO CAIS

Há vibrações metálicas chispando
Nas sossegadas águas da baía.
Gaivotas brancas vão e vêm, bicando
Os peixes numa louca gritaria.

Escurece. Do largo vão chegando
As velas com a farta pescaria.
As bóias põem no mar um choro brando
De luzes a cantar em romaria.

E entretanto no cais as lidas crescem.
Arcos voltaicos súbito amanhecem,
A alumiar guindastes e traineiras...

E ouve-se então, mais forte, mais vibrante,
Os pretos a cantar, noite adiante,
Por entre a bulha e o pó das carvoeiras...

Rui de Noronha

QUERO SER TAMBOR

Tambor está velho de gritar
Ó velho Deus dos homens
deixa-me ser tambor
corpo e alma só tambor
só tambor gritando na noite quente dos trópicos.

Nem flor nascida no mato do desespero
Nem rio correndo para o mar do desespero
Nem zagaia temperada no lume vivo do desespero
Nem mesmo poesia forjada na dor rubra do desespero.

Nem nada!

Só tambor velho de gritar na lua cheia da minha terra
Só tambor de pele curtida ao sol da minha terra
Só tambor cavado nos troncos duros da minha terra.

Eu
Só tambor rebentando o silêncio amargo da Mafalala
Só tambor velho de sentar no batuque da minha terra
Só tambor perdido na escuridão da noite perdida.

Ó velho Deus dos homens
eu quero ser tambor
e nem rio
e nem flor
e nem azagaia por enquanto
e nem mesmo poesia.
Só tambor ecoando como a canção da força e da vida
Só tambor noite e dia
dia e noite só tambor
até à consumação da grande festa do batuque!
Ó velho Deus dos homens
deixa-me ser tambor
só tambor!

José Craveirinha

domingo, 10 de abril de 2011

O PAVÃO NEGRO

I

O pavão negro da escrita
abre um leque de opções
exibe o luxo
do seu traje-cárcere

Babel silente
no vazio da página
prende o tumulto da voz
fixa o assalto da mão

Última instância rebelde
é jogo
          luta
               luto
                     grito calado

Ana Hatherly

sábado, 9 de abril de 2011

A Luz da Madrugada

autor: Fernando Pinto do Amaral (Lisboa, 12.V.1960)
título: A Luz da Madrugada
editora: Publicações Dom Quixote
local: Lisboa
ano: 2007
págs.: 128
dimensões: 21x15x0,8 cm. (brochado)
impressão: Manuel Barbosa & Filhos

LEN-GA-LEN-GA

Um sol que num céu se expande,
um sol pra que o céu é grande

O mundo a andar-lhe de roda,
o mundo com a gente toda.

Que infantil isto seria
se não fosse a astronomia!

Mas demonstra-se e acredito,
porque é simples e bonito.

Duvido, mas só o digo
mais que fechado comigo.

Tudo acredito e duvido;
tudo foi ganho e perdido.

Porque o tempo não começa
onde temos na cabeça.

Ah! que reinos haveria
antes desta dinastia!

A nossa imaginação
é o tormento dum condão.

Mas tudo isto já o disse
cher Monsieur De La Palisse,

E sem adormecimentos,
abandonos, desalentos...

Lenta, longa lengalenga...
lassa arenga... que molenga!...

Branquinho da Fonseca

sexta-feira, 8 de abril de 2011

NOITE DE VERÃO

De súbito, a lua japonesa
desenha na janela
as três colinas dum hai-kai;
e vê-se então
que a sua luz, o círculo
cortado ao meio
no horizonte de cimento,
basta para tornar o ar oxidado
quase cor de rosa;
assim se aprende,
ao anoitecer, como o verão
escreve cidades mais legíveis;
embora breves; sobre
alicerces que flutuam
em torno do leitor nocturno,
e são talvez a imagem
do meio círculo que falta
à lua, no horizonte.

Carlos de Oliveira
Aquela cinta azul, que o céu estende
À nossa mão esquerda, aquele grito,
Com que está toda a noite o corvo aflito
Dizendo um não sei quê, que não se entende;

Levantar-me de um sonho, quando atende
O meu ouvido um mísero conflito,
A tempo, que o voraz lobo maldito
A minha ovelha mais mimosa ofende;

Encontrar a dormir tão preguiçoso
Melampo, o meu fiel, que na manada
Sempre desperto está, sempre ansioso;

Ah! queira Deus, que minta a sorte irada:
Mas de tão triste agouro cuidadoso
Só me lembro de Nise, e de mais nada.

Cláudio Manuel da Costa

quinta-feira, 7 de abril de 2011

          Brame, brame, brame
nas tuas frias pedras pardas, Mar!
Ah, soubera dizer-te a minha boca
tudo quanto me está a recordar!

Feliz do bom mocinho, lá na praia,
a correr, a brincar com sua irmã!
Feliz do pescador, no seu batel,
a cantar a alegria da manhã!

E os soberbos veleiros vão vogando
para bom porto, sob o vasto céu;
-- mas quem me dera a mim tornar a ouvir
o som de certa voz que emudeceu!

          Brame, brame, brame
     nas tuas cavas penedias, Mar!
Mas ai da graça terna da hora que passou,
     e nunca, nunca mais há-de voltar!

Tennyson

(Luís Cardim)
Mha madre, venho-vos rogar
como roga filh' a senhor,
o que morre por mi d'amor
leixade-m' ir co[n] el falar;
     quanta coita el sigo ten
     sei que toda lhi por mi ven.

E sodes desmesurada,
que vos non queredes doer
do meu amigo, que morrer
vejo, e and' eu coitada;
     quanta coita el sigo ten
     sei que toda lhi por mi ven.

Vee-lo-ei, per bõa fé,
e direi-lhi tan gran prazer
per que el dev' a guarecer
poi'-lo seu mal cedo meu é:
     quanta coita el sigo ten
     sei que toda lhi por mi ven.

     oje se part' o coraçon!

D. Afonso Mendes de Besteiros
Bom é que não esqueçais
Que o que dá ao amor rara qualidade
É a sua timidez envergonhada.
Entregai-vos ao travo doce das delícias
Que filhas são dos seus tormentos.
Porém, não busqueis poder no amor...
Que só quem da sua lei se sente escravo
Pode considerar-se realmente livre.

Ibn 'Ammar

(Adalberto Alves)

quarta-feira, 6 de abril de 2011

A NAU DO TEMPO

Esconjuro o feitiço do retorno
e sigo nos meus passos, os meus passos,
alheio aos gritos das marés.
Ainda, nos sinais de toda a praia,
um pedaço de luz que lá ficou
retido numa poça de silêncio...
As raivas apodrecem pelas sombras
e as palavras caem absurdas
nas barcas que perderam o futuro.
As rochas são fantasmas na penumbra
que a madrugada vem despir dos medos
a deixar-nos seguir mais adiante,
como se a «Nau-do-Tempo» lá ficasse
para podermos aumentar o Mundo!

Ulisses Duarte
A mim o que me mata,
querido efebo, digo-te:
desejo sem prazer,
versos sem graça ou ritmo,
e ceias só com chatos.

Arquíloco

(Jorge de Sena)
Eu sei que a rota já virou;
a minha:
um último cansaço,
um último
impossível
esforço
do meu braço.

O corpo inteiriçado pra aguentar o leme.
A vela da ilusão tão retesada,
tão grávida de força,
que a nau é dominada.

O coração não teme.
Está tudo o que me resta,
a dor e a alegria,
a força e a esperança,
o tempo e a ansiedade,
está tudo acorrentado ao barco que protesta.

Cochat Osório
Os grandes livros são aqueles que nos forçam a escrever.

terça-feira, 5 de abril de 2011

VAI E VEM

I

É de todos sabido que
o 100 tanto desce como sobe
-- e fiquemo-nos
pelo estreito declive que vai
da praça das Flores ao Príncipe Real.

Vi hoje um filme sobre isso
-- português, embora não muito suave,
e avesso, como pôde, aos brandos
costumes da morte. Detive-me, pouco
depois, sob a frondosa árvore da noite.
À espera, claro, de não ver ninguém.

Manuel de Freitas

ASPIRAÇÕES

Lábios que imploro em vão, lábios que eu idealizo!
Ouvir-vos, mesmo ao longe, alegra-me e distrai-me.
Guarda-jóias que fecha e abre num sorriso,
          Lábios -- beijai-me!

Braços de neve? Não! -- Serpentes de delícias,
Quando o prazer vos torça e a febre-amor vos queime!
Cadeia de roubar a vida entre carícias,
          Braços -- prendei-me!

Olhos excepcionais! estranhos sóis polares!
Se a vossa luz me afasta, o vosso abismo atrai-me!
Grande como dois céus, fundos como dois mares...
          Olhos -- matai-me!

Queirós Ribeiro

FINAL

Não queiras ser mais vivo do que és morto.
As sempre-vivas morrem diàriamente
Pisadas por teus pés enquanto nasces.
Não queiras ser mais morto do que és vivo.
As mortas-vivas rompem as mortalhas
(Seus cabelos azuis, como arrastam o vento!)
Para amassar o pão da própria carne.
Ó vivo-morto que escarneces as paredes
Queres ouvir e falas.
Queres morrer e dormes.
Há muito que as espadas
Te atravessando lentamente lado a lado
Em ti caminham sua dor. Sorris.
Queres morrer e morres.

Augusto de Campos

A ARANHA

Uma pequenina mão negra e peluda crispada em cabelos.
Toda a noite, em nome da lua, apõe os seus selos.

Jules Renard

(Jorge de Sena)

segunda-feira, 4 de abril de 2011

Ia pela ponte de Waterloo
passou um milénio sobre o teatro
tudo era luz.
Parámos na fábrica dos azulejos os fumos
cobrem as ruas vêm dos esgotos movem-se
«e também há alguns autênticos
verdadeiros americanos, são russos.»

Uma rapariga tem sempre a sua música
leva o dinheiro apertado num saco bordado
o retrato da amada na outra mão.
Podia muito bem ter pintado o rei nesse outono
não havia heróis nem escudos
os temas estavam tão batidos aproveita-se o
contrabaixo um negro igual a todos vai
pelas ruas sem nenhum proveito
já nem sequer ouvia a voz dos dedos.

Acabei de ler algumas frases
do meu caderno. O Auden do trompete
assobiava. Tinha um sweater de lã
muita tosse. Um olhar de alegria seguia de
novo o novo tema.

João Miguel Fernandes Jorge

L'ALBATROS

Souvent, pour s'amuser, les hommes d'équipage
Prennent des albatros, vastes oiseaux des mers,
Qui suivent, indolents compagnons de voyage,
Le navire glissant sur des gouffres amers.

À peine les ont-ils déposées sur les planches,
Que ces rois de l'azur, maladroits et honteux,
Laissent piteusement leurs grandes ailes blanches
Comme des avirons traîner à côté deux.

Ce voyageur ailé, comme il est gauche et veule!
Lui, naguère si beau,qu'il est comique et laid!
L'un agace son bec avec un brûle-gueule,
L'autre mime, en boitant, l'infirme qui volait!

Le Poète est semblable au prince des nuées
Qui hante la tempête et se rit de l'archer;
Exilé sur le sol au milieu des huées,
Ses ailes de géant lémpêchent de marcher.

Baudelaire

OLHOS ELÉTRICOS

ponta de pedra aguda
faces rasgadas, bétulas amargas

você me diz psiu, violência
no jeito de piscar as pálpebras

pássaros tristes entre cães aprisionados
enfim vivemos num cenário

onde crianças com olhos elétricos
vasculham os bolsos de lady solidão

musas sádicas me acariciam
com unhas de gilete

lábios em carne-viva, mil beijos
de medusa -- strippers que após a roupa
arrancam a própria pele

e você vira as costas, arrasta-se
como um mamute pelo corredor

arremessando um "boa noite"
que me acerta em cheio na testa

Ademir Assunção

domingo, 3 de abril de 2011

LESLIE -- S.O.S.!

Peço aos teus lábios carnudos que me telefonem.

sábado, 2 de abril de 2011

PENUMBRA FACETADA

arcadas louras
no espanto das
praias
que deusas inclinadas
no flanco da noite
incendiada
ofereciam às luas
no entontecimento
dos lábios

só o esquecimento
nos lagos

candelabros na loucura
de pianos
ansiosamente raros
nos olhos facetados
de penumbra

só o esquecimento
no espelho inicial

esquinas dormentes
nos beijos
que espadas
enviaram ao poente
levemente saqueado
de brisa
precisamente como
duas aves
no mastro principal
do navio

Maria Teresa Horta

sexta-feira, 1 de abril de 2011

A Esfera dos Dias

autor: Pedro Alvim
título: A Esfera dos Dias
colecção: «Caminho da Poesia»
editora: Editorial Caminho
local: Lisboa
ano: 1985
págs.: 38
dimensões: 18,5x13,5x0,2 cm. (brochado)
impressão: Guide-Artes Gráficas
capa: José Araújo
tiragem: 800

GESTOS DE RECURSO

Quando um dia -- é fatal --
pousar sobre os meus ombros
aquele assíduo, rigoroso abutre
que voa sem rumor em círculos cautos
como a tirar as medidas do meu corpo --

saibam todos que para esse tempo
tenho ainda alguns gestos de recurso
(que não revelo), com que espero
morrer mais comodamente.

A. M. Pires Cabral

A GARRAFA

Que importa o caminho
da garrafa que atirei ao mar?
Que importa o gesto que a colheu?
Que importa a mão que a tocou
          -- se foi criança
          ou o ladrão
          ou filósofo
          quem libertou a sua mensagem
          e a leu para si ou para os outros?

Que se destrua contra os recifes
ou role no areal infindável
ou volte às minhas mãos
na mesma praia erma donde a lancei
ou jamais seja por olhos humanos
que importa?

               ...se só de atirá-las às ondas vagabundas
          libertei meu destino
          da sua prisão?...

Manuel Lopes
quanto maior o músico
menor seu mundo
ele próprio é o seu público
feliz tristeza
sublime incomunicabilidade

José Duarte