sábado, 31 de julho de 2010

LIÇÃO

Quiseras que este mundo te ensinasse
uma palavra nova,
uma gota de luz que atravessasse
os corações de toda a gente,
o seu coro de espectros dissonantes,
o corredor tão escuro onde se abriga
o princípio do medo,
a tua alma em pânico.

Fernando Pinto do Amaral

Nascente da Sede

autor: Fernando Jorge Fabião
título: Nascente da Sede
edição: 1.ª
colecção: «Imagem do Corpo» #72
editora: Ulmeiro
local: Lisboa
ano: 2000
capa: César Fidalgo
págs.: 98
dimensões: 20,5x14,7x0,6 (brochado)
tipografia: Garrido & Lino (Alpiarça)
obs.: Prémio Revelação Ary dos Santos, 1999 (Câmara Municipal de Grândola); dedicatória do Autor
Já era nela, antes de ser paixão,
Inquietude em cada momento,
O amor já era dono do seu coração
Ainda antes de sentir o seu tormento.

Abu al-Abdari

(Adalberto Alves)

sexta-feira, 30 de julho de 2010

OS NAMOROS DE VERÃO

O namoro durava o que durava um Verão,
tanto e tão pouco, quase nada.
Era um sopro, uma embriaguez,
um êxtase, com o mar ao fundo
a trazer para o areal algas e conchas,
restos de comida, garrafas vazias,
objectos náufragos, nomes de sereias.
O Verão, às vezes, durava uma vida.
Outras vezes durava uma noite.
Havia uma canção que marcava a cadência
da paixão volátil: Smoke Gets in Your Eyes.
Como seria ridículo dizer isto em português.
Depois havia as cartas e os retratos
com dedicatórias lembrando aquele Agosto,
aquele passeio de barco, aquela
madrugada no Palm Beach
ao som do Yesterday. Era tão veloz
esse tempo que parecíamos envelhecer
uma vida em cada semana.
Se morria um amigo, era como
se morresse para sempre a magia do Verão.
E nunca mais houve amores
como esses, primordiais e inocentes. Totais.
Voltar a eles é tão impossível
como voltar ao aconchego do ventre materno.
O namoro durava apenas um Verão,
mas é sempre a ele que voltamos
quando a palavra amor nos queima os lábios.

José Jorge Letria

O RITMO DO PRESSÁGIO

A tinta das canetas
reflui de antipatia
e impregnadas, assíduas
cambam as borrachas
Não há fita de máquina
que o uso não esmague
o vaivém não ameace
de dessorar os textos
Mas a grafia nada diz
de pausas na cabeça
Vozes inarticuladas
adensam, durante elas
uma tempestade
recôndita
E nubladas carregam-se
as suspensões
encadeando em nós
o ritmo do presságio.

Sebastião Alba

quinta-feira, 29 de julho de 2010

Se voltares o rosto
(devagar)
alumias as folhas nuas
da noite.

Fernando Jorge Fabião

quizás, quizás, quizás

quando se está com gripe e nos dói toda a cara
o mal-estar só passa imaginando
que mozart uma vez encontrou nat king cole
e pôs-se a acompanhar
quizás, quizás, quizás

a voz de um era rouca na curva do bolero
e o piano gemendo em graves da mão esquerda
dava a sua resposta a siempre que me preguntas

e triste era o refrão,
quizás, quizás, quizás.

na música e na vida, algum desesperado,
mesmo sem estar com gripe ia perdendo o tempo,
sombrio, alcoolizado, pelas melancolias
da voz e do piano,
quizás, quizás, quizás.

nat king cole e mozart, depois de improvisarem,
fumaram um cigarro e foram-se trocando
trauteios, estranhezas, de
blues e de sonatas,
mas tudo fragmentário,
quizás, quizás, quizás.

se algum saxofone pegasse nesse tema,
juntando variações azuis e lancinantes,
podíamos ouvir um köchel qualquer coisa
be bop e dissonante, quizás, quizás, quizás.

e voltaria a voz em ritmos sacudidos,
no bar, na discoteca, nas sombras, nas entranhas.
nat king cole a cantar, mozart a acompanhá-lo,
ah, turvos corações,
quizás, quizás, quizás.

Vasco Graça Moura

quarta-feira, 28 de julho de 2010

Há na intimidade um limiar sagrado,
encantamento e paixão não o podem transpor --
mesmo que no silêncio assustador se fundam
os lábios e o coração se rasgue de amor.

Onde a amizade nada pode nem os anos
da felicidade mais sublime e ardente,
onde a alma é livre, e se torna estranha
a vagarosa volúpia e seu langor lento.

Quem corre para o limiar é louco, e quem
o alcançar é ferido de aflição...
Agora compreendes por que já não bate
sob a tua mão em concha o meu coração.

Anna Akhmátova
(tradução de Nina Guerra e Filipe Guerra)

segunda-feira, 26 de julho de 2010

OS ARAUTOS NEGROS

Há pancadas tão fortes na vida... Eu sei lá!
Pancadas como do ódio de Deus; como se sob elas
a ressaca de todo o sofrimento
estagnasse na alma... Eu sei lá!

Poucas; mas acontecem... Abrem leivas escuras
no rosto mais duro e no dorso mais forte.
Serão talvez os potros de átilas selvagens;
ou os arautos negros que nos envia a Morte.

São as profundas quedas dos Cristos da nossa alma,
de uma fé adorável que o Destino blasfema.
Tais pancadas sangrentas são as crepitações
de um pão que na porta do forno se nos queima.

E o homem... Pobre... Pobre! Volta os olhos, como
quando sobre o seu ombro uma palmada o vem chamar;
volta seus olhos loucos, e todo o já vivido
como um charco de culpa estagna em seu olhar.

Há pancadas na vida tão fortes... Eu sei lá!

Cesar Vallejo

(tradução de José Bento)

DOMINATION OF BLACK

At night, by the fire,
The colors of the bushes
And of the fallen leaves,
Repeating themselves,
Turned in the room,
Like the leaves themselves
Turning in the wind.
Yes: but the color of the heavy hemlocks
Came striding.
And I remembered the cry of the peacocks.

The colors of their tails
Were like the leaves themselves
Turning in the wind.
They swept over the room,
Just as they flew from the boughs of the hemlocks
Down to the ground.
I heard them cry -- the peacocks.
Was it a cry against the twilight
Or against the leaves themselves
Turning in the wind,
Turning as the flames
Turned in fire,
Turning as the tails of the peacocks
Turned in the loud fire,
Loud as the hemlocks
Ful of the cry of the peacocks?
Or was it a cry against the hemlocks?

Out of the window,
I saw how the planets gathered
Like the leaves themselves
Turning in the wind.
I saw how the night came,
Came striding like the color of the heavy hemlocks
I felt afraid.
And I remeber the cry of the peacocks.

Wallace Stevens

Autologia

autor: E. M. de Melo e Castro (Covilhã, 1932)
título: Autologia
subtítulo: Poemas Escolhidos -- 1951-1982
prefácio: Fernando Segolin
edição: 1.ª
colecção: «Círculo de Poesia»
editora: Moraes Editores
local: Lisboa
ano: 1982
págs.: 239
dimensões: 19,8x15,4x1 (brochado)
composição: Linopazas
montagem: Ampligrafe
impressão: Moraes Editores

domingo, 25 de julho de 2010

Seco de inspiração, mas não de sentimento
pelas tristezas que o comovem tanto
para assunto de poemas, o medíocre poeta
o seu estilete molha, preparando-se...

Arquíloco
(tradução de Jorge de Sena)

MEETING

It is the dead of night

The long dead look out towards
The new dead
Walking towards them

There is a soft heartbeat
As the dead embrace
Those who are long dead
And those of the new dead
Walking towards them

They cry and they kiss
As they meet again
For the first and last time

August 2002

Harold Pinter

sábado, 24 de julho de 2010

INSCRIPTIONS

I

We pass and dream. Earth smiles. Virtue is rare.
Age, duty, gods weigh on our conscious bliss.
Hope for the best and for the worst prepare.
The sum of purposed wisdom speaks in this.

Fernando Pessoa

DISCORD IN CHILDHOOD

Outside the house an ash-tree hung its terrible whips,
And at night when the wind rose, the lash of the tree
Shrieked and slashed the wind, as a ship's
Weird ringging in a strom shrieks hideously.

Witnin the house two voices arouse, a splender lash
Whistling she-delirious rage, and the dreadful sound
Of a male thong booming and bruising, until it had drowned
The other voive in a silence of blood, 'neath the noise of the ash.

D. H. Lawrence

sexta-feira, 23 de julho de 2010

MUSÉE DES BEAUX ARTS

About suffering they were never wrong,
The Old Masters: how well they understood
Its human position; how it takes place
While someone else is eating or opening a window or just walking dully along;
How, when the aged are reverently, passionately waiting
For the miraculous birth, there always must be
Children who did not specially want it to happen, skating
On a pond at the edge of the wood:

They never forgot
That even the dreadful martyrdom must run its course
Anyhow in a corner, some untidy spot
Where the dogs go on with their doggy life and the torturer's horse
Scratches its innocent behind on a tree.

In Brueghel's Icarus, for instance: how everything turns away
Quite leisurely from disaster; the ploughman may
Have heard the splash, the forsaken cry,
But for him it was not an importance failure; the sun shone
As it had to on the white legs disappearing into the green
Water; and the expensive delicate ship that must have seen
Something amazing, a boy falling out from the sky,
Had somewhere to get to and sailed calmly on.

W. H. Auden

SINTRA

Ervas de macio cheiro,
secura de ásperos cactos,
alegria dos contactos,
tristeza do passageiro --

Tudo! E este vago sentido
das superfícies do mundo,
a matéria e o eco profundo
do horizonte pressentido;

Tudo e nada; outra vez tudo;
nada outra vez -- mas, teimosa,
a languidez desta rosa
morrendo a mão de veludo.

Tudo agora, nada em breve,
enquanto a nuvem que passa
tem a mesma, a eterna graça
leve, leve, leve, leve...

Ribeiro Couto

quinta-feira, 22 de julho de 2010

DISTANTE

«You'd better run and


João Paulo Monteiro (Ângelo Novo)

join your brother John»

GENESIS
«The Lamb Lies Down On Broadway»

as horas as horas
como sombras
de um silêncio antigo para lá da memória
a minha carne dispersa
retém um nome acometido nas ruas --
thorem
meu irmão john espera-me
nessa noite de todas as viagens
ancoradas por um sopro no tempo
espera-me lá muito longe e nessa estranhada lonjura
é o seu ombro que espera o meu
os seus olhos que procuram nos meus
reler a mesma indeclinável distância
parto agora
é que as luzes da cidade se extinguem
e os meus passos ecoam por dentro das casas.

SUPERSTIÇÃO

Será por superstição
que o dragão
só se sente apto
a tentar o rapto
de alguma princesa
se, para além de indefesa,
ela ainda
for linda?


Paulo Abrunhosa

CREPUSCULAR

A Morta cheira a rosas. As suas mãos ficaram,
brancas, sobre a cidade -- pombas brancas dormindo...
A voz do Rei Dinis é um sussurro ao fundo.
Choro? Reza? Descante? Louvor das que o amaram?

Recorta-se no escuro, geométrica, a cidade.
Cor das mãos da Rainha. Serena como elas.
Aparecem as luzes primeiro que as estrelas.
Um vento manso traz o aroma das herdades.

E eis que a cidade toda é um presépio.
Ouve-se a tropeada dos camelos,
o riso dos pastores...

Quem está nascendo? Que deus?, que príncipe?, que poeta?
Mãos da Rainha Santa, dai-lhe abrigo:
Não vá ser um ladrão. Não vá ser um mendigo.

Sebastião da Gama

quarta-feira, 21 de julho de 2010

ACALANTO PARA AS MÃES QUE PERDERAM O SEU MENINO

Dorme, dorme, dorme...
Quem te alisa a testa
Não é Malatesta,
Nem Pantagruel
-- O poeta enorme.
Quem te alisa a testa
É aquele que vive
Sempre adolescente
Nos oásis mais frescos
De tua lembrança

Dorme, ele te nina

Te nina, te conta
-- Sabes como é --,
Te conta a experiência
Do vário passado,
Das várias idades,
Te oferece a aurora
Do primeiro riso.
Te oferece o esmalte
Do primeiro dente.

A dor passará,
Como antigamente
Quando ele chegava.

Dorme... Ele te nina
Como se hoje fosses
A sua menina.

Manuel Bandeira

terça-feira, 20 de julho de 2010

As vidas que perdi, ninguém devolve,
Nem os ventos que sabem suas mortes,
Nem a Mãe-d´água que fechou meus olhos,
Poderão devolver o que perdi.

A febre do sertão guarda meu grito,
A seta envenenada minha dor,
Os rios têm meu sangue em suas veias,
Talismãs transformaram minhas almas.

As vidas que perdi, ninguém devolve.
São farrapos de nuvem, são serpentes,
São peixes devorando a lua cheia.

Só a febre que sinto rememora
E me fala de passos esquecidos
Nas léguas que apodrecem com meus corpos.

Paulo Bomfim

ELLA

Esta voz
-- confia --
faz da noite
o tesouro do dia

João Pedro Mésseder

QUEIXA E IMPRECAÇÕES DUM CONDENADO À MORTE

Por existir me cegam,
Me estrangulam,
Me julgam,
Me condenam,
Me esfacelam.
Por me sonhar em vez de ser me insultam,
Por não dormir me culpam
E me dão o silêncio por carrasco
E a solidão por cela.
Por lhes falar, proíbem-me as palavras,
Por lhes doer, censuram-me o desejo
E marcam-me o destino a vergastadas
Pois não ousam morder o meu corpo de beijos.


Passo a passo os encontro no caminho
Que os Deuses e o sangue me traçaram.
E negando-me, bebem do meu vinho
E roubam um lugar na minha cama
E comem deste pão que as minhas mãos infames amassaram
Com angústia e com lama.


Passo a passo os encontro no caminho.
Mas eu sigo sozinho!
Dono dos ventos que me arremessaram,
Senhor dos tempos que me destruíram,
Herói dos homens que me derrubaram,
Macho das coisas que me possuíram.


Andando entre eles invento as passadas
Que hão-de em triunfo conduzir-me à morte
E as horas que sei que me estão contadas,
Deslumbram-me e correm, sem que isso me importe.


Sou eu que me chamo nas vozes que oiço,
Sou eu quem se ri nos dentes que ranjo,
Sou eu que me corto a mim mesmo no pescoço,
Sou eu que sou doido, sou eu que sou anjo.


Sou eu que passeio as correntes e as asas
Por sobre as cidades que vou destruindo,
Sou eu o incêndio que lhes devora as casas,
O ladrão que entra quando estão dormindo.


Sou eu quem de noite lhes perturba o sono,
Lhes frustra o amor, lhes aperta a garganta.
Sou eu que os enforco numa corda de sonho
Que apodrece e cai mal o sol se levanta.


Sou eu quem de dia lhes cicia o tédio,
O tédio que pensam, que bebem e comem,
O tédio de serem sem nenhum remédio
A perfeita imagem do que for um homem.


Sou eu que partindo aos poucos lhes deixo
Uma herança de pragas e animais nocivos.
Sou eu que morrendo lhes segredo o horror
De serem inúteis e ficarem vivos.

José Carlos Ary dos Santos

segunda-feira, 19 de julho de 2010

Oferenda II

autor: Alberto de Lacerda (Ilha de Moçambique, 20.IX.1928 -- Londres, 26.VIII.2007)
título: Oferenda II
edição: 1.ª
colecção: «Biblioteca de Autores Portugueses»
editora: Imprensa Nacional-Casa da Moeda
local: Lisboa
ano: 1994
capa: Armando Alves
sobrecapa: desenho de Júlio Pomar
págs.: 350
dimensões: 24x15,1x2,3 (brochado)
tipografia: IN-CM
tiragem: 1500
obs.: no interior, retrato do Autor por Jean Hugo

domingo, 18 de julho de 2010

CANTO DO MAR E DA TERRA

DE LEOPARDI

Quando o mar adormece e o vento o embala, suave,
Sinto-me percorrer mundos desconhecidos.
Já não me agrada a terra, apenas só a grave
E fluida voz da névoa atrai os meus sentidos.

Mas quando o hercúleo mar ressoa e se recurva,
Em glaucos vagalhões altos e desgrenhados,
Volto os olhos p'rá terra, a que melhor perturba
Meu ser com a magia idílica dos prados.

A terra é bem mais firme, e a floresta espessa
Enche meu coração dum calor inaudito,
Quando o maestro vento, indómito, começa
Sua orquestra, a reger, no palco do Infinito.

Uma árdua tarefa o pescador atura:
A sua casa é um barco, a sua vida é o mar.
Os peixes são p'ra ele uma presa insegura,
E a morte, a velha má, não deixa de o rondar.

Prefiro ouvir o canto errante das nascentes,
Na sombra musical da mata sonorosa,
Quando a martirizada e ruiva luz dos poentes
É a anunciação da noite sigilosa.

Afonso de Castro

sábado, 17 de julho de 2010

TODOS OS BEIJOS...

Todos os beijos da volúpia, os beijos
Da boca sempre inquieta por beijar-te;
E os beijos da minh'alma, sem desejos
Que não sejam, de longe, acarinhar-te...

E os beijos que são longos, como harpejos
Em que fala o meu sonho e a minha arte,
E os beijos em que o sangue tem lampejos
De ciúme e de febre a alucinar-te...

E os beijos desta angústia, em que procuro
Prender nas minhas mãos o teu futuro,
Saber o anseio dos teus olhos tristes...

E ainda os beijos novos que eu não dera,
Os beijos que eu não dava à tua espera
--E que são teus, Amor que não existes!...

João de Barros

canção autobiográfica

aos quarenta e dois anos, com um cão e o silêncio
da sua pata cúmplice, a solidão é uma
destreza atormentada; e o coração o incerto secretário
de agonia e desejo, variante da alma.
aos quarenta e dois anos, com um cão e o silêncio.

canção, canção que nunca acabarias
de te escrever, vaivém das
tantas coisas.

Vasco Graça Moura

ADEUS

...Agora
da janela
o que dentro
não está:

fino cotovelo
nuca d'oiro,
joelho dobrando
a esquina só.

«Eh, eh» -- me digo.
E faço um café
que me não sabe.

Bebe-o, noite!,
e que o dia em ti
não mais acabe!|

Pedro Alvim

sexta-feira, 16 de julho de 2010

G. F. H.

E de novo me confronto consigo sem coragem
Repare que não estamos em Dublin
Nem este nevoeiro é o seu nesta manhã
Nem o disco reproduz totalmente a sua escrita.

Encolho-me nas definições de quem percebe
Cito Beethoven com facilidade mas não chega
E a sua perfeição não me provoca qualquer náusea
Antes me atrevo a repetir as audições

Se a perfeição existe você é então perfeito
Os sons arrumados na pauta são desenhos
E a realidade que retratam não existe
Apenas o seu mundo a compreende

José do Carmo Francisco

UMA FLORESTA PINTADA POR ILDA DAVID'

De instante para instante
identificam-se lacunas, espaços irremediáveis
distâncias:
é apenas uma parte
a experiência que fazemos
do que seja o tempo

Nesse descoberto que separa
um instante de outro
estendes o teu próprio corpo
nenhuma outra maneira
guardou o perfume da neve
sobre os muros
como se não fosse

José Tolentino Mendonça

quinta-feira, 15 de julho de 2010

CRÉPITEMENTS

Les arcencielesques dissonances de la Tour dans sa télégraphie sans fil
Midi
Minuit
On se dit merde de tous les coins de l'univers

Étincelles
Jaune de chrome
On est en contact
De tous les côtés les transatlantiques s'approchent
S'éloignent
Toutes les montres sont mises à l'heure
Et les cloches sonnent
Paris-Midi annonce qu'un professeur allemand a été mangé par les cannibales au Congo
C'est bien fait
L'Intransigeant ce soir publie des vers pour cartes postales
C'est idiot quand tous les astrologues cambriolent les étoiles
On n'y voit plus
J'interroge le ciel
L'Institut Météorologique annonce du mauvais temps
Il n'y a pas de futurisme
Il n'y a pas de simultanéité
Bodin a brûlé toutes les sorcières
Il n'y a rien
Il n'y a plus d'horoscopes et il faut travailler
Je suis inquiet
L'Esprit
Je vais partir en voyage
Et j'envoie ce poème dépouillé à mon ami R...

Septembre 1913
Blaise Cendrars
Nada me parece independente
de mim ou de ti.
O céu
o verde ou o azul do mar
este súbito cheiro a gasolina
a fábrica de cimento
uma gaivota no coração da cidade
a teia cerrada de fios telefónicos
sobre os nossos gestos.

Mas amanhã as formigas atacam as nuvens
mas amanhã as nuvens tecem escadarias brancas
até ao sol
onde sentado em belas janelas góticas
ao luar
uma parte de ti projectará
o sussurro líquido de uma fonte
há centenas de anos perdida
nos líquenes da serra de Sintra.
Então se instalará na lua o luto
e vegetais cortejos de velas
imporão a sua luz ao sol e ao vento, pálidos de susto,
frente aos espelhos moribundos
depois da exaltação suprema.

Áfricas 60
Artur do Cruzeiro Seixas

quarta-feira, 14 de julho de 2010

CONCERTO DOS TINDERSTICKS

Impossível dizer até que ponto
a rapidez de tudo
atinge as paisagens na sua certeza
o significado dos instintos
desde muito cedo
os modos de travessia, os receios
imagens em que não pensamos

pela noite tua voz descreve
isso de nós que não tem defesa
um amor
largado às sombras, irreconhecível
até de perto

dizem que se tratou de
derivas, ingenuidades, ilusões
o teu amor é um nome qualquer
que parte

José Tolentino Mendonça
Levado pelas águas
sem jamais encontrar o mar
ferozmente atacado por uma flor
olho os dinossauros idilicamente
pastando nas margens. Que vejo eu?
Já não resta fóssil sobre fóssil
e só os náufragos ainda repetem os erros de ortografia
de continente em continente.
As plumagens agitadas das palavras são estandartes
atravessando o espaço e o sono
livres em toda a sua estranhíssima glória.
São os peixes esverdeados
que escondem sob as roupagens os labirintos
e as maquinarias prontas a investir
contra o paraíso.
A experiência impregnou as pedras da sua voz rouca
e as coisas são como um trítpico aberto
mostrando aos canibais perplexos
os nós mais secretos
daquele marinheiro alado.
Desfia-se já o fio que há séculos nos sustém.

Tenho frio
e imploro que me cubram com o dilúvio
ao som de trombetas exacerbadas:
que me cubram a mim e ao eco,
e à memória de tudo isto.
Estou ainda aqui,
e vejo
como um cego vê o mar.

Áfricas 62
Artur do Cruzeiro Seixas

POEMA DE FINADOS

Amanhã que é dia dos mortos
Vai ao cemitério. Vai
E procura entre as sepulturas
A sepultura de meu pai.

Leva três rosas bem bonitas.
Ajoelha e reza uma oração.
Não pelo pai, mas pelo filho:
O filho tem mais precisão.

O que resta de mim na vida
É a amargura do que sofri.
Pois nada quero, nada espero,
E em verdade estou morto ali.

Manuel Bandeira

terça-feira, 13 de julho de 2010

PASSANOUTE

Cacilda espevita o fogo mortiço. Inquietas,
insidiosas, chegam as vozes da noite.
Do fundo da mata vêm mal distintas
crepitações, ruídos, quiçá mesmo gemidos.
Arrasta-se o rumor arrepiante, calafrio

da sombra reverberando noutras sombras.
Negras, esvoaçam asas sem ave, ou
será apenas a noite e só a noite?
Xipocué e shiguêvengo acordam
no cerne das árvores, para agitar

mortos e mortificar vivos. Lumes
sem chama, vozes sem fala assombram
de susto e medos inomináveis
quem arrosta afrontar seu território,
zona interdita, chão demarcado

que poucos ousam pisar e percorrem,
sopro maléfico, a densa escuridão. Vamos,
levanta faúlhas e labaredas, incendeia
de luz a noite cerrada, esconjura
para bem longe essa asa funesta.

Rui Knopfli

MÃE

Minha Mãe:
Trago a resina das velhas árvores
da floresta nas minhas veias
e a sina de nascença
no meio das baladas à volta da fogueira
tu sabes como é sempre uma dor nova
sabes ou não sabes, minha Mãe?

Sabes ou não sabes
o mistério de olhos inflamados de macho
que um dia encontraste no teu caminho
de tombasana de pés descalços?

Sabes ou não sabes, Mãe
a resina das velhas árvores plantadas pelos espíritos
as blasfémias dos mortos salgando as raízes virgens
e as grandes luas de ansiedade esticando
... as peles dos tambores enraivecidos
e dando às folhas verdes das palmeiras
o brilho incandescente das catanas nuas?

E no sabor do encantamento, Mãe
dos nossos desenfeitiçados feitiços ancestrais
o exorcismo ingénuo das tuas missangas
o maravilhoso maheu das tuas canções
e o segredo do teu corpo possuído
mas de materno sangue inviolável
donde a minha sina nasceu.

No
espaço da tua sepultura de negra
sabes ou não sabes a verdade
agora sabes ou não sabes
minha Mãe?

LEZÍRIA

São duzentas mulheres. Cantam não sei que mágoa
Que se debruça e já nem mostra o rosto.
Cantam, plantadas n'água,
Ao sol e à monda neste mês de Agosto.

Cantam o Norte e o Sul duma só vez,
Cantam baixo, e parece
Que na raiz humana dos seus pés
Qualquer coisa apodrece.

Miguel Torga

AMSTERDAM

Eu sabia que os telejornais acompanhavam o assunto,
a par e passo, a cores ou a preto e branco mas não
tinha tempo para ver televisão nem para comprar jornais.

Corria de museu para museu, ingenuamente procurava
apanhar um retrato vivo da cidade, comprava batatas
fritas na rua para não perder tempo em restaurantes
e nunca me cansava.

À noite tinha jazz, com muito sumo de laranja, quase
sempre no «Mistery Club» até à meia-noite e cinco,
pontualmente, para apanhar o último eléctrico com
destino a Amstel Station.

Quando cheguei e me perguntaram se tinha tido medo
dos terroristas fui obrigado a responder que não --
dos polícias, sim, tenho medo: São espantosamente
novos, louros, corpulentos e passeiam-se na rua
com a arrogância de quem se sabe impune.

José do Carmo Francisco

segunda-feira, 12 de julho de 2010

PRAIA DO ABANO (OU OUTRA PRAIA)

Vejo subitamente recuares até à tua infância
cruzares ruas montras onde passo agora
e sofro sem remédio não haver saída
em minha vida que não seja a tua face
isenta dos meus olhos vista só por ti

A bola é louca, boca anónima infantil
Ó árvore plantada indiferente de cidade
à mesa onde amarro a minha vida
e corro sem correr para nenhum lugar
distante de onde estou como se já lá estivesse
A cara e o cansaço e os cilindros: prece

Tu és agora uma criança inacessível para mim
e em nenhum país alguma vez te vi
Estou de novo comigo e sofro levantado não haver ninguém
até que enfim deitado eu cumpra a minha condição
e não houve pessoa a que eu não fizesse mal

Ruy Belo

A CASA DA AREIA

Face ao mar, orgulhosa no topo do areal,
só madeira e zinco sobre pilares de cimento
ao sabor dos quatro ventos. O quintal
das traseiras sempre uma festa, frango
no churrasco, alegria nos copos. Depois

a Isila casaria com o Freitas,
a Ermelinda ia ficar para tia
e o Horácio dava em droga.
O Neca, o Tino e o Mando foram
à vida, cada qual para seu lado.

Na velha casa virada à baía,
além do ranger da madeira
batida pelo vento e a areia
apenas ficaram a avó Carminda
e a velha cadela «Deixa-falar».

Rui Knopfli

NO SMOKING

Hoje não avançámos muito no silêncio
-- o café lento, um sorriso esquartejado
de pé no balcão de zinco.
Pouco mais, terá de convir.
Um gesto de quem não pode
e espera o desastre, qualquer salvação
dessas, para que seja menos visível
a repressão de um cigarro
ou o açoite do tempo no rosto.
Só não quero falar de literatura,
por amor de um deus qualquer.

Foi disso que falámos, não sei se por pânico
apenas. É tudo tão indesculpável: o corpo
encostado assim à demora de um café,
as palavras que quase foram, quase
puderam -- modo de carícia inútil
que deixei ali para que entendesse ou não
a medida exacta de uma treva minha.

Voltei a vê-la, depois, roubada
por um sonho idiota -- coisa
inenarrável em volta de livros
e de igrejas barrocas com elevador central.

Mas também aí não avançámos muito.
E o silêncio existe, pelo menos este.

Manuel de Freitas

domingo, 11 de julho de 2010

EPÍGRAFE

Murmúrio de água na clepsidra gotejante,
Lentas gotas de som no relógio da torre,
Fio de areia na ampulheta vigilante,
Leve sombra azulando a pedra do quadrante,
Assim se escoa a hora, assim se vive e morre...

Homem, que fazes tu? Para quê tanta lida,
Tão doidas ambições, tanto ódio e tanta ameaça?
Procuremos somente a Beleza, que a vida
É um punhado de areia ressequida,
Um som de água ou de bronze e uma sombra que passa...

Eugénio de Castro

sábado, 10 de julho de 2010

O POETA

Seara e nuvem, barco e melodia
no coração das feras e das aves,
trazes a aurora em tuas mãos suaves
abrindo a noite, barco e melodia.
Lírio solar, estrada e cotovia
jamais sonhada pelas próprias aves,
a morte e a vida, a porta e as chaves
tudo em ti se confunde e anuncia.

Sonharam-te os abismos, e os morcegos
volvem-se em arcanjos e vêm, cegos
quando os fitas, pousar na tua mão.

Só em ti a beleza encontra forma.

Cantas! e logo a noite se transforma
no dia que faltava à Criação.

Papiniano Carlos

sexta-feira, 9 de julho de 2010

RONDÓ DO CONCERTO PARA PIANO E ORQUESTRA N.º 5 EM MI BEMOL MAIOR DE BEETHOVEN

Quando a música o abandona
à beira de um lugar fundo
um jardim vazio com sombras
sem corpo nem idade
uma pergunta insinua-se
Existe um amor sem nome?

João Pedro Mésseder

À SOMBRA DOS CARVALHOS

queimam as sombras dos carvalhos
e os casulos das castanhas no chão onde os castanheiros
se emolam
um beijo sob as folhagens da árvore dos heróis e dos druídas
mordeu os lábios em busca da saliva seiva
nossa veia
por testemunha uma orelha de gnomo e um olho de moira
o prazer e a lascívia na raiz
em círculo em nossos pés
de braços em redor
de boca a boca
sexo e alma de lés a lés

Ricardo Ferreira de Almeida

JE VOUDRAIS ÉCRIRE DES POÈMES

Je voudrais écrire des poèmes,
le soir,
et je ne peux pas.
Il me faut traduire les textes
publicitaires
d'une crème de beauté.

Je vois des gens, des gars,
qui ne sont pas ceux
que je voudrais voir.
Les autres,
je ne le connais pas.

Je cause avec des filles,
à la cantine,
et nous disons des choses
idiotes,
qui ne valent pas la peine
d'être dites.

J'ai peur de m'habituer
et d'aller de l'avant comme ça,
jusqu'à la mort.

Alba de Céspedes

quinta-feira, 8 de julho de 2010

CAMPO DE REFUGIADOS

A fugitiva disse que na terra
outrora sua havia árvores
e a sombra. Que outra fala
mais bela do que a sua,
mulher no chão seco,
solo sob o sol sem fim?

Fiama Hasse Pais Brandão

terça-feira, 6 de julho de 2010

MEMÓRIA DE MINHA MÃE

Por que razão sempre pensei que fosses
mulher fria hierática distante
igual aos teus antepassados de Covadonga
aos celtas híbridos de Iberos
e que os teus cabelos muito jovens brancos
sinal fossem de tudo isso?

Por que razão sempre te amei tão pouco
quando amar-te era o meu mais fundo desejo
saber que quando rias era verdade
como as rias da nossa Galiza
e os recifes abruptos da velha Astúrica?

Agora que estás longe longe de mais

os teus olhos secos a tua pele com algumas sardas
o teu andar vagaroso mas vivo
agora que tudo isso é uma ideia um repouso
forçado num pequeno cemitério chamado Xiesteira

talvez comece a saber que não eras uma mulher fria
e que me amavas porventura muito
à tua hierática maneira


José Carlos González

segunda-feira, 5 de julho de 2010

ZÉ JEITOSO

Quando a noite cai, o Zé Jeitoso começa
uma história simples, uma história qualquer,
com palavras de embalar
para que o mar
adormeça,
-- o mar, diverso como um corpo de mulher.

Zé Jeitoso conta -- e os colegas a ouvi-lo,
sentados no chão, deitados no chão,
pensam que para contar aquilo
Zé Jeitoso traz o mar no coração...

Zé Jeitoso fala de longínquos portos,
de perrices fantásticas do mar,
e julga que os companheiros mortos
passeiam no céu, em noites de luar...

Zé Jeitoso fala... E nas palavras de embalar
os companheiros ficam presos...
O mar adormece... E, por cima do mar,
as estrelas parecem cachimbos acesos...

Sidónio Muralha