sexta-feira, 26 de dezembro de 2008

AS ÁRVORES

Quedo-me a contemplar, longamente,
As árvores de Deus, e a ouvir-lhes as suas falas:
E muitas vezes, quando morre o velho poente,
Eu me deixo ficar, enternecido, a amá-las.
Criaturas de Deus! São ingénuas donzelas
Vestidas de noivado, a caminho do altar;
São atletas que vêm de atravessar procelas,
Ou caravanas de mendigas, a esmolar...
Cobre-as a flor d'Abril -- ei-las ressuscitando,
Virgens e a fecundar, venturosos amores!
Vão-lhes poisar na rama os meus sonhos cantando,
E elas abrem o riso angélico das flores...

Inclinada, a florir sobre as lúcidas águas
Dum ribeiro, era Ofélia uma que eu ontem vi:
Águas ao poente iam carpindo lentas mágoas,
Como a elegia desses sonhos que eu perdi!
(O sol já mal doirava as serras encantadas)
E eu vi, o tronco envolto em heras enroscadas,
Curva, sem uma flor, erguendo os magros braços,
outra árvore, na sombra, inclinar-se defronte...
Era Hamlet? -- Quem sabe o sonho dos espaços,
Quando o luar ascende a polvilhar o monte!...

Sobre a encosta, fitando o céu esmorecente,
Um roble secular, rugoso, entorpecido,
Solto o cabelo, na atitude de quem sente
Um pesadelo a uivar no coração ferido;
Abandonado, a olhar, com o ar dum doido errante,
Como quem viu por terra o Sonho fulgurante,
Como quem foge a ouvir o ruir amaldiçoado
Da cidade do Amor irradiante e quimérica,
É o rei Lear que desce a encosta do Passado,
Aos primeiros clarões da lua cadavérica!

Criaturas de Deus! Quantas vezes o arvoredo
Brame como os leões, sorri como as crianças:
Quantas vezes eu paro e lhe escuto um segredo,
Quantas vezes lhe beijo a flor das suas tranças...
Quantas vezes pergunto aos choupais e amieiros,
Quando o vento lhes vibra as folhas sensitivas,
Se eles não são os velhos Bardos, os Troveiros,
Chorando, ao pé do rio, umas visões esquivas...
Em meio da floresta escuto as litanias
De monjas cujo amor emaciou de ilusões;
E à noite, ao apontar de estrelas ainda frias,
Na floresta heis de ouvir murmúrios de orações...
Quem não viu, como Agar de lágrimas coberta,
Um tronco d'oliveira, em meio da paisagem
Abandonada, melancólica, deserta,
Com rebanhos carpindo, ao longe, na pastagem?
Quem não ouviu ainda o marulhar das frondes,
E na selva, de noite, o eco dos profetas?
Quem não ouviu falar desse tremendo Sonho,
Quando tu, ó luar, pela escarpa te escondes,
-- E as folhas caem como lágrimas de poetas!...

A figueira da estrada! Há tanto que eu me ponho
A vê-la de remorso, já velha, a chorar!
A sua sombra é má; não tem lendas suaves;
E quando o Inverno chega e emigraram as aves,
A figueira parece alguém que vão matar!

Ó Árvores, irmãs de todos nós, um dia
Há-de esta alma reunir-se à vossa alma dormente...
Deixai rasgar o tronco e arrancar-vos as flores!
Deixai a dor talar os campos da alegria,
Que uma árvore não morre, e não morrem amores...
Ó tronco decepado, ó Santo resplendente,
Pregando na floresta, -- e morto num desterro,
Quem te verá ascender num milagre imprevisto,
Tendo a chaga do Sol a alumiar-te o enterro,
-- Transfigurado, aureolado como Cristo?!...

Júlio Brandão

segunda-feira, 22 de dezembro de 2008

Juntei-me um dia à flor da mocidade
partindo para Angola no Niassa
a defender eu já não sei se a raça
se as roças de café da cristandade

a minha geração tinha a idade
das grandes ilusões sempre fatais
que não chegam aos anos principais
por defeito da própria ingenuidade

a guerra era uma coisa mais a Norte
de onde ela voltaria havendo sorte
à mesma e ancestral tranquilidade

azar de uns quantos se pagaram porte
esses a que atirou a dura morte
diz-se que estão na terra da verdade

Lisboa
28-IV-94
Fernando Assis Pacheco

sexta-feira, 5 de dezembro de 2008

PROVÉRBIO

A noite é a nossa dádiva de sol aos que vivem do outro lado da Terra.

Carlos de Oliveira

sexta-feira, 28 de novembro de 2008

A VIRGEM SANTÍSSIMA

Cheia de Graça, Mãe de Misericórdia


Num sonho todo feito de incerteza,
De nocturna e indizível ansiedade
É que eu vi teu olhar de piedade
E (mais que piedade) de tristeza...

Não era o vulgar brilho da beleza,
Nem o ardor banal da mocidade...
Era outra luz, era outra suavidade,
Que até nem sei se as há na natureza...

Um místico sofrer... uma ventura
Feita só do perdão, só da ternura
E da paz da nossa hora derradeira...

Ó visão, visão triste e piedosa!
Fita-me assim calada, assim chorosa...
E deixa-me sonhar a vida inteira!

Antero de Quental

domingo, 9 de novembro de 2008

A UM PINHEIRO QUE VÃO CORTAR

(Ao Severo Portela)

Ó pinheirinho triste, meu irmão,
De fraguedos e chuva alimentado!
Com que mágoa te vejo recortado
No frio azul da tua solidão!

Eu bem entendo a viva inquietação
Do teu olhar em Deus mal confiado!
Bem sei que vais tombar, decapitado,
Mãos erguidas em prece de cristão!

Bem entendo a irreal melancolia
Do teu rosto engelhado, neste dia
Que a toda a volta espalha desconforto;

Mas -- ó corpinho tenro, de criança! --
Que te console, ao menos, a lembrança
Do bem que espalharás depois de morto!

Eduardo Salgueiro

sábado, 8 de novembro de 2008

POEMA DO SER INÓSPITO

No cúbiculo estreito onde a criança
dorme no homem como um ser inóspito,
duplas são as paredes e, na boca,
uva de moscatel, açaime de aço.
Dorme, criança, dorme.
Não deixes ficar mal os que acreditam
no mito da inocência.
Dorme, e espera que os homens se aniquilem
enquanto dormes.
Reduz-te a imaginar como serão as flores,
os insectos, as pedras, as estrelas,
e tudo quanto é belo e se reflecte
nos olhos das crianças.
Imagina um luar que cresce e aquece
e faz da tua carne flor de loiça,
orquídea branca que o calor não cresta.
Imagina, imagina.
Mas, sobretudo, dorme.

António Gedeão

sábado, 1 de novembro de 2008

CANALIZA

canaliza

com o anoitecer o rapaz toma corpo de vulcão
inicia o percurso que o levará
a preencher o silêncio das imagens

agarrado às fissuras da terra
pousa o caderno e o lápis e voa

havia uma casa a que chamávamos de canaliza
era um edifício inacabado
onde guardávamos as armas
e os brinquedos -- uma ruína
de pó luminoso
pedaços de madeira e restos de tijolos

ali nos perdíamos em sonhos
até que o grito mudo das
gaivotas nos viesse acordar

ali havia rostos de riso e
assim era o castelo enclausurado
no meio da mediocridade e
na fugaz realização do corpo

as mãos flutuavam-nos
por entre gestos de batalhas
às vezes pela esperança
de ter nos dedos
os cheiros das raparigas
a quem dizíamos que tínhamos um castelo

e o anoitecer tornava
verdadeira essa aventura

no cimo dos galhos das árvores
no pátio da escola
se amarravam raparigas
em geral os outros passavam
e eram eles que nos olhavam
translúcidos

uma a uma lhes
enfiávamos dardos envenenados
areia pedras beijos

(é aqui que as mãos flutuantes
tornavam o sonho ainda mais
real e decretávamos ordens
uns aos outros)

a noite trazia ainda
a dimensão de todas
as visões:

um comboio de
livros que parava na mais
secreta estação
aí mergulhávamos
noutros sistemas solares
noutros corpos
noutros segredos que nem
a noite deixava adivinhar
ou
uma praia tão extensa como a nossa
mas que no horizonte mostrava
a porta de um abismo
e sob a areia por entre
as mesmas barcas
dançavam mulheres nuas

e nelas atracávamos as
embarcações feitas de piteira

hoje é a noite que está despedida
e pernoito no lado de lá do
meu fantasma

m. parissy

quarta-feira, 29 de outubro de 2008

A humidade escorre pelas paredes.
A tinta retorce-se.
Grelado nas paredes
diz a vizinha.
Certo.

Em cima da mesa
os jornais estão cheios de cotão.
Deixá-los estar.
Também lá dentro
no quarto
a minha mãe se deixa estar.
A tudo isto pertence.
É preciso não a incomodar.
Tem o coração cansado
os olhos com pó.
Caruncho, diz ela.
É verdade.
Que noite pavorosa
por esse corpo vai.

Mas sem essa noite
que seria do meu dia?
Breu?
Nada?
Horror?
Uma mãe
mesmo depois de morta
dá-nos o seio.

Que é a Via Láctea
senão o leite da nossa eterna inocência?

António Cândido Franco

terça-feira, 21 de outubro de 2008

(A uma árvore seca num velho pátio da
Rua da Palma.)

Todos os dias passo à tua beira
árvore que tens nos troncos e na rama
um destino igual ao meu.
E o mesmo rumo
sem chama
nem fumo.

Aranha de solidão
a tecer como eu
cinzas de não haver fogueira.

Todos os dias passo à tua beira...

(Mas ai de quem só tem chão!
-- sem labaredas
nem asas de um momento
para ir procurar veredas
no país do vento!)

José Gomes Ferreira
s#7

segunda-feira, 20 de outubro de 2008

O lenhador caminha curvado pelo peso.
Leva às costas séculos de madeira.
Queima-la-á para se aquecer um instante.

Adalberto Alves

segunda-feira, 13 de outubro de 2008

A NOITE-VIÚVA

Uma pequena angústia sentida nos joelhos
Como o bater do próprio coração
E é a noite que chega
Não a noite-diamante
Mas a noite-viúva a noite
Sete vezes mais impura do que eu
Em passo obsceno em obscena força
Minúscula perversa venenosa

Escrevo o teu nome
Noite de amor que de longe me defendes
Escrevo o teu nome contra a noite obscena
Que a meu lado espera seduzir-me
Levar-me consigo
À porca solidão onde trabalha
À insónia sem margens ao vinho solitário
Duma pequena angústia
Escrevo todos os teus nomes
Puxo-os para mim tapo-me com eles
Na noite da surpresa
Noite feroz da surpresa
Noite do amor atacado de perto e conseguido
Alto e convulsivo
Noite dos amantes deslumbrados
Iluminados pelo demónio mais puro
Noite como uma punhalada ritual no invisível
Noite da vítima-triunfante

Escrevo o teu nome a meu favor e contra
Esta noite este murmúrio esta invenção atroz
A que chamam o dia-a-dia
Estas quatro minúsculas patas
Venenosas da angústia

Escrevo o teu nome cruel
Puro e definitivo.

Alexandre O'Neill

domingo, 12 de outubro de 2008

Cada poema
cada desenho
são os marinheiros que navegaram na minha cama
são uma revolução não só gritada na rua
são uma flor nascendo nos campos
e é o luar e a sua magia
e é a morte que não me quer
e é UMA MULHER
surpreendente como um marinheiro
luminosa como a palavra REVOLUÇÃO
tão natural como o malmequer
tão metafísica como o luar
tão desejada como a morte hoje
A MINHA MÃE
infinita e profunda
como o mar.

Artur do Cruzeiro Seixas

segunda-feira, 6 de outubro de 2008

Árvores

O vento inebriado

O piar de certos pássaros

O jardim

O olhar que vai dar continuamente
Ao horizonte

As paredes vetustas

Rosas iluminando
O desmaiar lentíssimo
Da tarde

The Stone Bar
Pilton
19 de Agosto 97
Alberto de Lacerda
s#6

quinta-feira, 2 de outubro de 2008

E DE SÚBITO, EIS

E de súbito, eis que aprendo
a grande hegemonia de todas as coisas.
Raparigas cruzavam a Edgware Road inteira
perdendo-se pela Marylebone
com ares de fantasmas
e do meu lugar junto a King's Arms,
tendo por cima o cartaz
anunciando o concerto de Johnny Cash
e na mão a cerveja arrefecida,
eu podia vê-las passar e quase diriam que eram belas,
e contudo mais não eram que o epítome
de toda a geração
e passavam de novo
com livros acabados de comprar
em qualquer antiquário
e com perfumes baratos
ou roupas de cores mortas
ou grandes romances de amor
por dentro das cabeças fantásticas,
fazendo nascer em mim a danada ânsia do poema.
E escrevia então um que começava «e de
súbito eis que aprendo
a grande hegemonia de todas as coisas»
e o poema doía-me
como se milhões de agulhas me florissem no corpo,
já o sol fracamente iluminava a cidade
e Edgware Road ficava deserta,
cruzada apenas por fantasmas
com ares de raparigas
que teriam decerto sido belas
e que não eram agora mais que
o epítome de toda a morte,
e eu ficava a vê-los passar,
perdendo-se
para Marylebone ou Harrowby,
repetindo para que a noite me ouvisse
que
de súbito,
eis que aprendo a grande hegemonia de todas as coisas.

Fernando Cabrita

sexta-feira, 26 de setembro de 2008

IGUALDADES

Irmã do meu coração,
Noite, meu sinistro encanto,
Tu tens estrelas, e eu pranto,
Tu tens sombras e eu paixão.

Dizem que a tua existência
Sugere à vingança o crime;
Pois também a minha essência
Me aponta um ódio sublime.

Sinto a luta, sinto o amor;
Tu -- a treva e o azul sem fim...
Se neste inglório jardim
Nasce o verme ao pé da flor!...

Ah, que bondoso quebranto!
Que aromas na escuridão!...
Noite, meu sinistro encanto,
Irmã do meu coração.

Lembras, se um lugar magoado
Te cinge, num tom violento,
Nos brilhos -- o meu passado;
Nas ruínas -- o meu tormento.

Contigo tudo adormece
Num sudário de neblina;
Eis porque também se inclina
Meu ser, se as mágoas esquece.

Cada Aurora que te esconda
Te arrasta um sonho desfeito;
Porém, a luz é uma onda
De escárnio sobre o meu peito.

Na sombra oculta a paixão;
Dá-me perfume e quebranto,
Noite, meu sinistro encanto,
Irmã do meu coração.

António Fogaça

quinta-feira, 25 de setembro de 2008

mãe, cada palavra que me ensinaste repete mil vezes o teu nome

José Luís Peixoto

segunda-feira, 22 de setembro de 2008

TEMPO MORTO

Jogávamos pueris jogos de sexo, Xila,
corríamos entre girassóis,
morávamos numa cabana oculta na barreira.

Na lembrança, um cão malhado ladra
entre os arbustos.

Éramos tão crianças!, a vida nem chegava
a ser mistério
e não havia problemas de pão a resolver...
Apesar disso tu eras a mulher,
tu eras a Amante (mais subtil
e experiente de quantas tenho conhecido,
porque eras o grande livro da Inocência).
Eu era o teu herói enamorado,
tu, a minha Rainha, Senhora do talismã.
Eu era o Tarzan dos Macacos,
tu, Jane morena.
Havia a inveja de Carlos e o ciúme de Sofia,
mas isso tornava-nos maiores ainda.
Amávamos na lonjura das tardes,
enquanto Foxie dormitava a um canto da cabana.
Sobre folhas verdes de acácia
tu não eras segredo
e, em mim, não morava o mistério.
Eras um duende de tranças pretas e olhos verdes,
eu era um potro selvagem.
Éramos sexo, lábios, mãos, epidermes
sem impureza.
Partiste ao anoitecer num navio amarelo,
levando juras eternas.

Quando voltaste
tinhas crescido e o teu corpo
esboçava outras formas.
Tomaras meneios senhoris,
falavas em pecado e em criancices reprováveis
com ar judicioso.
Eras a mentira, Xila!
A muralha do Impuro interpusera-se
entre mim e ti.

Eu,
fiquei na vida de calção.
E, certa manhã sem sol,
Foxie morreu atropelado.

A minha infância é um cão malhado.
Chama-se Foxie e ladra aos passantes.
Andou por aí
solto nos matos,
dormiu nos bancos ao relento,
olhou as estrelas, sem mistério
e sem as compreender.
Seu olhar langue e sem mágoa
aceitou as carícias e os pontapés
que lhe quiseram dar.
Sabia os recantos da rua
e os segredos do baldio defronte.

Conheceu noites de cio
e dias de vagabundagem.

Foi inconsequente
e -- como já se disse
-- morreu atropelado
numa escura manhã sem data.

Rui Knopfli

domingo, 21 de setembro de 2008

EM MARÇO

Em Março chovia abundantemente. Eu atravessava o rio. O vento vergastava a chuva que me ensopava a roupa. Nada disso me faria desistir da quotidiana incursão. Havia um secreto encontro, uma dobra na passagem das horas, um infindável momento sobre as águas pluviosas de Março. Do que se tratava afinal? De uma simples árvore quebrada cujos ramos assomavam ligeiramente em furiosa perseguição. Na árvore eu via a beleza dos náufragos. E eu recebia-a. Insignificante dádiva do acaso. Generosa afluência meditando-me como os espelhos meditam. Fizesse eu da minha vida esta perene contemplação na tempestade, sempre em direcção aos altos céus de Março. Sob a forma da árvore indesistente, veria a verdade quando da verdade tivesse desistido. Um parêntesis no conformado desespero que me rói. Uma luminosa canção no epicentro da minha morte.
Luís Quintais
s#5

sábado, 20 de setembro de 2008

NÚRIA

A lentamente bela bruxa cisne magro
A lentamente mate cor do pão de trigo
A lentamente Núria de navalha e ligas

Ah lentamente o corpo se compara ao cubo
e muda as asas quentes em arestas frias!
Mãos vestidas de roxo a festejar a tristeza
em Sexta-feira Santa d'oração medonha!

Ah lentamente a Espanha em procissão nas ruas,
cabelos degrenhados mais guitarras nuas!
Ah Núria, rosa-névoa, lâmina de pétalas
a recortar raízes dos meus olhos d'húmus!

Ah lentamente lentamente aponto e estico
o arco: assobia a flecha no teu flanco
e, de repente, no meu sangue flui um barco

Paço d'Arcos, 13.X.72
António Barahona

quarta-feira, 17 de setembro de 2008

DIA NEGRO

Toda esta noite um vento de agonia
lançou gemidos pelo espaço fora;
e foi tão baço o despontar da aurora,
que não sei afinal se já é dia.

No chão, em cada poça de água fria
um tronco nú em lentos pingos chora,
e o vulto da montanha mal aflora
da névoa que nas cristas se desfia.

O vento apaziguou-se, mas a noite
deixou sinais do seu raivoso açoite
no dia negro, regelado, triste.

E só me aquece este álgido conforto:
é bom que tudo esteja quase morto
se além de nuvens pouco mais existe.

Francisco Costa

terça-feira, 16 de setembro de 2008

LATITUDE ZERO

E a nossa casa, Mãe
nosso lar de velhas paredes de caniço
já não está lá
no lugar onde o pai do pai do teu pai
ao sol e à chuva
em doze luas de trabalho
a construiu.

E no sítio da sua sepultura, Mãe
debaixo das mafurreiras de frutos de ouro
onde a bebida fermentava a missa de cocuana Matsinhe
pesam os muros de cimento
que o senhor das terras levantou
ao abrigo da lei da concessão de terrenos vagos
onde não existe ninguém
e só vivem negros
mulatinhos e negras.

Dentro das coordenadas geográficas
registadas numa planta do cadastro da circunscrição
dormes o teu sono perpétuo, Mãe
ao som das blasfémias que não chegaste a ouvir
mas gostarias de ouvir também contra eles
e querias também sentir contra eles minha Mãe.
E hoje que a nossa casa de paredes de caniço
e os trinta e cinco pés de mandioca
foram esmagados pelas lagartas de aço
do monstro Caterpillar do senhor concessionário
o secular desespero
planta milho que não nasce
e mapira que não cresce mas dói
na latitude zero do talhão de pedras e cobras
da reserva indígena onde moram blasfemos
nós o negros, os mulatinhos
e as negras.

José Craveirinha

sábado, 13 de setembro de 2008

O CÃO NOVO E A PERDIZ VELHA

O cão fareja a perdiz
e a perdiz pressente o cão.
O cão-de-caça aprendiz
busca a perdiz sábia... Então

a perdiz, devagarinho,
vai onde há caca de vaca,
ali perto do seu ninho.
Lá se esconde... O cão estaca.

Cheira-lhe mal. Pensa, triste,
como não vira a perdiz,
que o seu nariz lhe mentira...

E o cão aprendiz desiste
e o caçador não atira
e a perdiz fica feliz!

Leonel Neves

ÁRVORES

As árvores desprezadas
ganham espinhos.
Uivam de solidão.


Teresa Rita Lopes
s#4

segunda-feira, 8 de setembro de 2008

Que somos nós? Navios que passam um pelo outro na noite,
Cada um a vida das linhas das vigias iluminadas
E cada um sabendo do outro só que há vida lá dentro e mais nada.
Navios que se afastam ponteados de luz na treva,
Cada um indeciso diminuindo para cada lado do negro
Tudo mais é a noite calada e o frio que sobe do mar.

Álvaro de Campos

domingo, 7 de setembro de 2008

MINHA MÃE QUE NÃO TENHO

Minha mãe que não tenho meu lençol
de linho de carinho de distância
água memória viva do retrato
que às vezes mata a sede da infância.

Ai água que não bebo em vez do fel
que a pouco e pouco me atormenta a língua.
Ai fonte que eu não oiço ai mãe ai mel
da flor do corpo que me traz à míngua.

De que Egito vieste? De qual Ganges?
De qual pai tão distante me pariste
minha mãe minha dívida de sangue
minha razão de ser violento e triste.

Minha mãe que não tenho minha força
sumo da fúria que fechei por dentro
serás sibila virgem buda corça
ou apenas um mundo em que não entro?

Minha mãe que não tenho inventa-me primeiro:
constrói a casa a lenha e o jardim
e deixa que o teu fumo que o teu cheiro
te façam conceber dentro de mim.

José Carlos Ary dos Santos

sexta-feira, 5 de setembro de 2008

Cães ladram na noite
A insónia do quarto segue-lhes o rasto

Ana Maria Soares

quinta-feira, 4 de setembro de 2008

DÁDIVAS PARA...

CHARLIE CHAPLIN -- A janela do Convento de Cristo de Tomar com a colagem que lhe fez Nicolas Calas em 1942. Sob a janela, uma cama em osso de cavalo provida de telescópio e copo de sangue.
MARILYN MONROE - Um navio de guerra adaptado a ferro de engomar.
FRED ASTAIRE -- Uma dúzia de lagartos muito frescos.
BUGS BUNNY -- Uma prova de corta-mato no primeiro andar do Art Institute of Chicago.
BESSIE SMITH -- O quadro «Mona Lisa» de Leonardo Da Vinci com sistema eléctrico dois-pés-duas-pernas que o façam andar por toda a casa e mesmo subir escadas.
HARPO MARX -- O papel de Iago na ópera «Otelo» de Verdi.
JACK LONDON -- um pequeno cemitério de aldeia.
KRAZY KAT -- Uma árvore japonesa que, dando-se-lhe um charuto, apresenta um telefone anos 30. Na linha, um padre yugoslavo informa continuamente sobre as experiências do Frankenstein de Utrecht.
MAE WEST -- Uma almofada com a forma da cara da senhora Golda Meir.
JERRY LEWIS -- A Torre da Água, de Chicago, mas um pouco mais alta e cortada em fatias longitudinais de onze centímetros cada.
BUSTER KEATON -- Um avião pilotado por uma girafa. Fins de semana: só a girafa.

segunda-feira, 1 de setembro de 2008

Quando aqueles que chegavam
olhavam os que partiam
os que partiam choravam
os que ficavam sorriam

Mário Cesariny

sábado, 30 de agosto de 2008

THE END

Morrer num hospital tem destas consequências;
o velório é mais pequeno do que se fosse em casa.
Além disso os brincos desapareceram de repente
e só pensamos no telefonema perdido -- o funeral que atrasa.

Deve ser triste imaginar estes passos todos
com a raiva de não poder vencer a distância
e por entre as lágrimas abundantes começar a recordar
as primeiras páginas da história doméstica -- a infância.

No fim de contas trata-se talvez só de aritmética
esta operação que se desenrola no cemitério:
a soma das lágrimas que todos nós choramos
é igual às que ela chorou por nós -- não há mistério.

E o monte que o coveiro lentamente vai cavando
tem para mim o sentido que o momento encerra:
é um pouco de mim que desce para esta cova
nas minhas palavras misturadas com a terra.

José do Carmo Francisco

segunda-feira, 25 de agosto de 2008

Não adormeças logo agora
que eu estava mais disposto e fluente
a falar-te, ainda que de novo, da contemporaneidade

ou não adormeça eu
logo agora
que o teu cabelo se encosta
à suavidade das almofadas
animando o amor do Donald e da Daisy
que, entretanto, já transpuseram
a barreira lisa do pano e do desenho
e se encaminham já para o quarto ao lado.

Daniel Maia-Pinto Rodrigues

domingo, 24 de agosto de 2008

DOS PINHAIS

Ondulando, os pinhais
quiseram ser o mar.
Murmurando, quiseram ser
o vento. Mas somente
no meu ouvido eram vento,
nos meus olhos, mar.

E hoje, ali na encosta,
pinhais bordejam
o mar, sustêm o vento.


Fiama Hasse Pais Brandão
s#3

ARDE UM FULGOR EXTINTO

Arde um fulgor extinto
no longe da tarde agoniada.
Não me pesaria tanto
a caminhada se, em lugar do dia,
no seu extremo achasse a noite.

Exacta e concisa é a claridade.
Não mente à luz o que a noite
ilude. Terrível destino
o de quem é nocturno à luz solar.

Não vos ponha em cuidado,
porém, este meu penar:

são palavras e não sangram.

Rui Knopfli

quinta-feira, 21 de agosto de 2008

"EL SORDO" *

na noite dos tormentos, nessa noite
em que os fantasmas deambulavam
pelo coração, olhou as paredes nuas
cegou-se de branca ausência, tamanho
cerco, e abriu janelas ao silêncio:
pintou terror, inferno, eternidade.
sonhara o sonho da razão
e o seu testamento escorreu lesto
pelos olhos da solidão.
aí, porque ouvira de novo o mundo
produziu monstros, como seria de esperar
do mundo


*(Goya)

João Candeias

quarta-feira, 20 de agosto de 2008

ELEGIA BRANCA

Cabelos brancos de minha mãe
Ausência branca de minha mãe

Corpo de rosa branca de minha mãe
Sangue de rosa vermelha de minha mãe

Luto carregado de lírios brancos por minha mãe
Lírios brancos carregados de luto por minha mãe

Lx. 10.V.92
António Barahona

sábado, 16 de agosto de 2008

BANCO DE TRÁS

Sábado à tarde, uma certa luz
Atravessa a rua no meio dos telhados
Retoques no carro, aguarrás no pincel
E o tricot no banco da frente, rápido

Domingo, o almoço em qualquer lugar
Longe daqui, desta tristeza sem voz
Mas o preço da gasolina sobe depressa
Cortando os domingos do mês, quase todos

No banco de trás o cão dorme
Sem fralda nem ternura como criança
Ficará só o beijinho da fotografia
Cão objecto que deitarão fora como cigarro

Ninguém rouba este automóvel nunca
A loucura é feita neste lugar
Cigarros, jornais, música e sono
Sempre na preguiça dos minutos

José do Carmo Francisco

quinta-feira, 14 de agosto de 2008

Encontrou naquele janeiro trabalho
nas obras.
O seu melhor era o abrir da lancheira
o termo de alumínio canelado protegendo

o espelhado vidro
o café mantinha-se quente por muitas
horas.
As botas de velhos atacadores já com

buracos
as grossas meias de algodão a camisola
rota num dos braços o fato-macaco
a negra barba mal feita e os tijolos

erguendo a lenta parede dos dias.
O reboco o triturar a pedra
o cimento quase parte das mãos
a poeira doendo os olhos.

Sem ninguém, entre as fasquias andaimes e
caliça
sem espaço para legenda bebe café entre
o vigésimo terceiro e quarto andar.

João Miguel Fernandes Jorge

RUA DE COOLELA

No ângulo extremo da Ponta Vermelha,
lá onde a ruína do farol é sentinela decrépita,
traçado linear pendendo para a incerteza
da barreira sujeita aos caprichos das enxurradas
de verão. Sentado no degrau, diante

do eucalipto gigantesco a interditar o horizonte.
O quintal barricado do Hugh Lemay,
agente transitário e (secreto) de Sua Majestade.
Que conste, pelos seus bons ofícios, as frotas
nazi e italiana sofriam pesadas baixas

ao largo da costa. Havia também
Marina, filha mais velha do pianista
do casino, pernas magras enfeitiçando,
qual deusa na selva dos comic books,
o meu desejo obscuro. Em redor habitações

modestas de pequenos funcionários e da tropa
pequena, a cumplicidade dos companheiros
partilhando amizade nos esconderijos
da exaurida e obsoleta Carreira de Tiro,
fascínio misterioso e intrigante,


oculto na densa camuflagem do baldio,
velha fortaleza a recato de olhares indiscretos:
um mundo tecido de fantasia a encobrir
a exígua, quase anónima, rua que conduziria,
afinal, ao curso errado de meus dias.

Rui Knopfli

quarta-feira, 13 de agosto de 2008

DA ÁRVORE, NUMA RUA DE LISBOA

Esta árvore só, insana,
chamou a si todos os pássaros
da rua. E aceita, assim,
mil olhos que, no crepúsculo
da tarde, se fecham,
mil olhos, abertos
no crepúsculo da manhã.


Av. da República, 1996
Fiama Hasse Pais Brandão
s#2

terça-feira, 12 de agosto de 2008

INTANGÍVEL

«Nuvem, sonho impalpável do desejo»
ANTERO.
Essa que eu amo e beijo e não existe,
embora exista em mim que a beijo e amo,
nunca há-de vir um dia em que eu a aviste,
nunca a voz hei-de ouvir-lhe quando a chamo.

Mas não me fugirá. Por mais que diste
quando eu a sua ausência já proclamo,
assim que me percebe fraco e triste
volta, e eu volto a sentir-me escravo e amo.

Sei que é uma visão, sei que a componho
eu mesmo, à semelhança do meu sonho,
dando-lhe a luz fictícia que ela emite.

Mas se à minha alma pode enfim bastar
essa alma ideal, -- o meu sedento olhar,
esse procura um corpo onde ela habite.
Francisco Costa

domingo, 10 de agosto de 2008

FEITIÇOS

Vejo-te, outra vez, pela berma das levadas, a
descer para o vale.
É a hora do lobo e dos medos nos invernos
antigos.
Na aldeia súbita que se desvenda, elas dançam
em círculo,
agitando as lanternas,
mas tu não sabes que prodígio se constrói no
âmago das trevas.
Elas cantam,
mas tu,
viajante das noites profundas, não conheces
o idioma das rainhas destronadas pelo dia.
A sua música de guizos vai para onde vais.
A água das levadas pára, transformada em
pedra.
O mar é negro e sobe até ao céu e depois
cai, como a grande solidão,
sobre as espáduas.
Em frente, na colina do terror, o teu filho
chora.


José Agostinho Baptista
noc#1

sábado, 9 de agosto de 2008

MÃE

Eu sou aquela que os vê.
E caminho pelos seus caminhos e sou a
fogueira distante.
O tempo não me apaga.
Tenho os pontos cardeais e sou a bússola nas
suas mãos,
quando eles vão sobre as águas.
Sou os mapas, a constelação, o cruzeiro do sul,
o arado, o cão,
aquela que os guarda.
Sou o regaço, as belas plumas do meu regaço,
a imensa luz de amor que cai sobre a sua
penumbra,
sobre a sua loucura.
Sou a mãe da sua vida, da sua morte.
E vou com eles, espalhando as rosas tristes,
e os meus cabelos espalham sobre os seus
cabelos as raízes brancas.
Sou aquela que escreve quando eles dormem,
sou as palavras através do sono.
E adormeço com eles,
fechando as últimas portas.


José Agostinho Baptista
n#3

segunda-feira, 4 de agosto de 2008

COMBOIO DA LINHA DO NORTE

Olhava o vidro. Começou primeiro por
distinguir as vivas luzes da carruagem.
Depois em confusão esbatida
múltiplos rostos de quem ia sentado
noutros lugares. A noite
corria lá fora, o negro, o clarão
repentino de qualquer terra. Velho,
via agora nessa janela, vinte e muitos anos
atrás, o rosto que fora o seu, rapaz,
e é hoje esta nova face.
Inquieto, num corpo que era seu,
apertou como outrora
as mangas da camisola azul
em torno do pescoço e ficou quase
perdido na solitária, rápida, descida
da vida. Ao seu lado um amigo, antigo,
mas já tão depois desses anos juvenis,
cruzou os olhos com os dele
na superfície do vidro e da noite -- espelho
de tantos anos --, e perguntou-lhe «o
que foi?»
«Não foi nada. Coisas de velhice que
ocorrem quando nem sabemos.»

As luzes de Vila Franca já vão lá
fora e a ponte. Que longe os campos que
foram os do Mondego
onde ficou a lua
cheia de outubro. Há vinte e muitos anos
um cão ligava sempre este regresso ou
partida, esta viagem, a um prolongado uivo
quase de campo a campo, de vila a
vila. Hoje também o olhar do cão se
perdeu na insonora carruagem. Do tempo ficou
o espelho, vidraça erguida sobre a planura
passada de uma vida. Quantas vidas.


João Miguel Fernandes Jorge
ai#1; b#1;n#2

domingo, 3 de agosto de 2008

Para a avó Ângela


Eras a primeira a levantar
acendias o lume
moías o café
abrias as portadas

Novembro era o teu mês
e nas íntimas orações
procuravas o ouro iluminado
o refúgio onde as brasas ardiam junto ao coração

Os netos (breves relâmpagos)
atravessavam o lameiro
e pensativos adormeciam próximos das aves

Na varanda anunciavas a sabedoria do mundo
os ninhos, as cerejas, o pão pobre das palavras.
Fernando Jorge Fabião
n#1

sábado, 26 de julho de 2008

sexta-feira, 25 de julho de 2008

Este céu peregrino onde viajam
Meus olhos

Estas vozes sem voz que respondem
Ao meu silêncio

Este azul
Nimbado

Estes ciprestes

O cheiro das árvores que penetra
Nas gavetas antigas

O ar que murmura
Paralelo à eternidade:
Piero della Francesca

Piero della Francesca


Cortona,
30 de Jul. de 1969
Alberto de Lacerda
s#1