As árvores de Deus, e a ouvir-lhes as suas falas:
E muitas vezes, quando morre o velho poente,
Eu me deixo ficar, enternecido, a amá-las.
Criaturas de Deus! São ingénuas donzelas
Vestidas de noivado, a caminho do altar;
São atletas que vêm de atravessar procelas,
Ou caravanas de mendigas, a esmolar...
Cobre-as a flor d'Abril -- ei-las ressuscitando,
Virgens e a fecundar, venturosos amores!
Vão-lhes poisar na rama os meus sonhos cantando,
E elas abrem o riso angélico das flores...
Inclinada, a florir sobre as lúcidas águas
Dum ribeiro, era Ofélia uma que eu ontem vi:
Águas ao poente iam carpindo lentas mágoas,
Como a elegia desses sonhos que eu perdi!
(O sol já mal doirava as serras encantadas)
E eu vi, o tronco envolto em heras enroscadas,
Curva, sem uma flor, erguendo os magros braços,
outra árvore, na sombra, inclinar-se defronte...
Era Hamlet? -- Quem sabe o sonho dos espaços,
Quando o luar ascende a polvilhar o monte!...
Sobre a encosta, fitando o céu esmorecente,
Um roble secular, rugoso, entorpecido,
Solto o cabelo, na atitude de quem sente
Um pesadelo a uivar no coração ferido;
Abandonado, a olhar, com o ar dum doido errante,
Como quem viu por terra o Sonho fulgurante,
Como quem foge a ouvir o ruir amaldiçoado
Da cidade do Amor irradiante e quimérica,
É o rei Lear que desce a encosta do Passado,
Aos primeiros clarões da lua cadavérica!
Criaturas de Deus! Quantas vezes o arvoredo
Brame como os leões, sorri como as crianças:
Quantas vezes eu paro e lhe escuto um segredo,
Quantas vezes lhe beijo a flor das suas tranças...
Quantas vezes pergunto aos choupais e amieiros,
Quando o vento lhes vibra as folhas sensitivas,
Se eles não são os velhos Bardos, os Troveiros,
Chorando, ao pé do rio, umas visões esquivas...
Em meio da floresta escuto as litanias
De monjas cujo amor emaciou de ilusões;
E à noite, ao apontar de estrelas ainda frias,
Na floresta heis de ouvir murmúrios de orações...
Quem não viu, como Agar de lágrimas coberta,
Um tronco d'oliveira, em meio da paisagem
Abandonada, melancólica, deserta,
Com rebanhos carpindo, ao longe, na pastagem?
Quem não ouviu ainda o marulhar das frondes,
E na selva, de noite, o eco dos profetas?
Quem não ouviu falar desse tremendo Sonho,
Quando tu, ó luar, pela escarpa te escondes,
-- E as folhas caem como lágrimas de poetas!...
A figueira da estrada! Há tanto que eu me ponho
A vê-la de remorso, já velha, a chorar!
A sua sombra é má; não tem lendas suaves;
E quando o Inverno chega e emigraram as aves,
A figueira parece alguém que vão matar!
Ó Árvores, irmãs de todos nós, um dia
Há-de esta alma reunir-se à vossa alma dormente...
Deixai rasgar o tronco e arrancar-vos as flores!
Deixai a dor talar os campos da alegria,
Que uma árvore não morre, e não morrem amores...
Ó tronco decepado, ó Santo resplendente,
Pregando na floresta, -- e morto num desterro,
Quem te verá ascender num milagre imprevisto,
Tendo a chaga do Sol a alumiar-te o enterro,
-- Transfigurado, aureolado como Cristo?!...
Júlio Brandão
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