Entre o poço de orquestra e a assembleia muda
vou espargindo em pequenas notas a minha vida,
erguendo a cúpula de um céu sobre o teclado.
Gravo a anatomia dos meus gestos no silêncio,
enquanto uma valsa espera dormir na gola
de um nocturno. Esta dor costurada até ao osso
e em mim aceite como um vestuário obsceno,
poção composta segundo o preceito e de um trago
bebida, sem esgares, com a alegria de quem
se mata lentamente. Sou só uma destreza manual,
a arte de acariciar nos dedos um botão nevado,
as pétalas de uma bonina, cujo som ecoa
pelos saltos de uma fonte, pelos veios de uma sepultura.
A noite como uma oportuna morada sobre as árvores,
entreaberta como o ouvido à indiscrição de um segredo,
não volta para nós a face, que é branca. Sacode
no lugar da lua a cabeça como se pensasse negar em baixo
a escuridão. Vela silenciosa a paz de quem espera
e teve no entardecer por confidente o verdadeiro espelho:
o sangue que se inscreveu no céu como uma ideia
e o sol que me devolve a sua expectoração vermelha.
Paulo Teixeira