sexta-feira, 26 de setembro de 2008

IGUALDADES

Irmã do meu coração,
Noite, meu sinistro encanto,
Tu tens estrelas, e eu pranto,
Tu tens sombras e eu paixão.

Dizem que a tua existência
Sugere à vingança o crime;
Pois também a minha essência
Me aponta um ódio sublime.

Sinto a luta, sinto o amor;
Tu -- a treva e o azul sem fim...
Se neste inglório jardim
Nasce o verme ao pé da flor!...

Ah, que bondoso quebranto!
Que aromas na escuridão!...
Noite, meu sinistro encanto,
Irmã do meu coração.

Lembras, se um lugar magoado
Te cinge, num tom violento,
Nos brilhos -- o meu passado;
Nas ruínas -- o meu tormento.

Contigo tudo adormece
Num sudário de neblina;
Eis porque também se inclina
Meu ser, se as mágoas esquece.

Cada Aurora que te esconda
Te arrasta um sonho desfeito;
Porém, a luz é uma onda
De escárnio sobre o meu peito.

Na sombra oculta a paixão;
Dá-me perfume e quebranto,
Noite, meu sinistro encanto,
Irmã do meu coração.

António Fogaça

quinta-feira, 25 de setembro de 2008

mãe, cada palavra que me ensinaste repete mil vezes o teu nome

José Luís Peixoto

segunda-feira, 22 de setembro de 2008

TEMPO MORTO

Jogávamos pueris jogos de sexo, Xila,
corríamos entre girassóis,
morávamos numa cabana oculta na barreira.

Na lembrança, um cão malhado ladra
entre os arbustos.

Éramos tão crianças!, a vida nem chegava
a ser mistério
e não havia problemas de pão a resolver...
Apesar disso tu eras a mulher,
tu eras a Amante (mais subtil
e experiente de quantas tenho conhecido,
porque eras o grande livro da Inocência).
Eu era o teu herói enamorado,
tu, a minha Rainha, Senhora do talismã.
Eu era o Tarzan dos Macacos,
tu, Jane morena.
Havia a inveja de Carlos e o ciúme de Sofia,
mas isso tornava-nos maiores ainda.
Amávamos na lonjura das tardes,
enquanto Foxie dormitava a um canto da cabana.
Sobre folhas verdes de acácia
tu não eras segredo
e, em mim, não morava o mistério.
Eras um duende de tranças pretas e olhos verdes,
eu era um potro selvagem.
Éramos sexo, lábios, mãos, epidermes
sem impureza.
Partiste ao anoitecer num navio amarelo,
levando juras eternas.

Quando voltaste
tinhas crescido e o teu corpo
esboçava outras formas.
Tomaras meneios senhoris,
falavas em pecado e em criancices reprováveis
com ar judicioso.
Eras a mentira, Xila!
A muralha do Impuro interpusera-se
entre mim e ti.

Eu,
fiquei na vida de calção.
E, certa manhã sem sol,
Foxie morreu atropelado.

A minha infância é um cão malhado.
Chama-se Foxie e ladra aos passantes.
Andou por aí
solto nos matos,
dormiu nos bancos ao relento,
olhou as estrelas, sem mistério
e sem as compreender.
Seu olhar langue e sem mágoa
aceitou as carícias e os pontapés
que lhe quiseram dar.
Sabia os recantos da rua
e os segredos do baldio defronte.

Conheceu noites de cio
e dias de vagabundagem.

Foi inconsequente
e -- como já se disse
-- morreu atropelado
numa escura manhã sem data.

Rui Knopfli

domingo, 21 de setembro de 2008

EM MARÇO

Em Março chovia abundantemente. Eu atravessava o rio. O vento vergastava a chuva que me ensopava a roupa. Nada disso me faria desistir da quotidiana incursão. Havia um secreto encontro, uma dobra na passagem das horas, um infindável momento sobre as águas pluviosas de Março. Do que se tratava afinal? De uma simples árvore quebrada cujos ramos assomavam ligeiramente em furiosa perseguição. Na árvore eu via a beleza dos náufragos. E eu recebia-a. Insignificante dádiva do acaso. Generosa afluência meditando-me como os espelhos meditam. Fizesse eu da minha vida esta perene contemplação na tempestade, sempre em direcção aos altos céus de Março. Sob a forma da árvore indesistente, veria a verdade quando da verdade tivesse desistido. Um parêntesis no conformado desespero que me rói. Uma luminosa canção no epicentro da minha morte.
Luís Quintais
s#5

sábado, 20 de setembro de 2008

NÚRIA

A lentamente bela bruxa cisne magro
A lentamente mate cor do pão de trigo
A lentamente Núria de navalha e ligas

Ah lentamente o corpo se compara ao cubo
e muda as asas quentes em arestas frias!
Mãos vestidas de roxo a festejar a tristeza
em Sexta-feira Santa d'oração medonha!

Ah lentamente a Espanha em procissão nas ruas,
cabelos degrenhados mais guitarras nuas!
Ah Núria, rosa-névoa, lâmina de pétalas
a recortar raízes dos meus olhos d'húmus!

Ah lentamente lentamente aponto e estico
o arco: assobia a flecha no teu flanco
e, de repente, no meu sangue flui um barco

Paço d'Arcos, 13.X.72
António Barahona

quarta-feira, 17 de setembro de 2008

DIA NEGRO

Toda esta noite um vento de agonia
lançou gemidos pelo espaço fora;
e foi tão baço o despontar da aurora,
que não sei afinal se já é dia.

No chão, em cada poça de água fria
um tronco nú em lentos pingos chora,
e o vulto da montanha mal aflora
da névoa que nas cristas se desfia.

O vento apaziguou-se, mas a noite
deixou sinais do seu raivoso açoite
no dia negro, regelado, triste.

E só me aquece este álgido conforto:
é bom que tudo esteja quase morto
se além de nuvens pouco mais existe.

Francisco Costa

terça-feira, 16 de setembro de 2008

LATITUDE ZERO

E a nossa casa, Mãe
nosso lar de velhas paredes de caniço
já não está lá
no lugar onde o pai do pai do teu pai
ao sol e à chuva
em doze luas de trabalho
a construiu.

E no sítio da sua sepultura, Mãe
debaixo das mafurreiras de frutos de ouro
onde a bebida fermentava a missa de cocuana Matsinhe
pesam os muros de cimento
que o senhor das terras levantou
ao abrigo da lei da concessão de terrenos vagos
onde não existe ninguém
e só vivem negros
mulatinhos e negras.

Dentro das coordenadas geográficas
registadas numa planta do cadastro da circunscrição
dormes o teu sono perpétuo, Mãe
ao som das blasfémias que não chegaste a ouvir
mas gostarias de ouvir também contra eles
e querias também sentir contra eles minha Mãe.
E hoje que a nossa casa de paredes de caniço
e os trinta e cinco pés de mandioca
foram esmagados pelas lagartas de aço
do monstro Caterpillar do senhor concessionário
o secular desespero
planta milho que não nasce
e mapira que não cresce mas dói
na latitude zero do talhão de pedras e cobras
da reserva indígena onde moram blasfemos
nós o negros, os mulatinhos
e as negras.

José Craveirinha

sábado, 13 de setembro de 2008

O CÃO NOVO E A PERDIZ VELHA

O cão fareja a perdiz
e a perdiz pressente o cão.
O cão-de-caça aprendiz
busca a perdiz sábia... Então

a perdiz, devagarinho,
vai onde há caca de vaca,
ali perto do seu ninho.
Lá se esconde... O cão estaca.

Cheira-lhe mal. Pensa, triste,
como não vira a perdiz,
que o seu nariz lhe mentira...

E o cão aprendiz desiste
e o caçador não atira
e a perdiz fica feliz!

Leonel Neves

ÁRVORES

As árvores desprezadas
ganham espinhos.
Uivam de solidão.


Teresa Rita Lopes
s#4

segunda-feira, 8 de setembro de 2008

Que somos nós? Navios que passam um pelo outro na noite,
Cada um a vida das linhas das vigias iluminadas
E cada um sabendo do outro só que há vida lá dentro e mais nada.
Navios que se afastam ponteados de luz na treva,
Cada um indeciso diminuindo para cada lado do negro
Tudo mais é a noite calada e o frio que sobe do mar.

Álvaro de Campos

domingo, 7 de setembro de 2008

MINHA MÃE QUE NÃO TENHO

Minha mãe que não tenho meu lençol
de linho de carinho de distância
água memória viva do retrato
que às vezes mata a sede da infância.

Ai água que não bebo em vez do fel
que a pouco e pouco me atormenta a língua.
Ai fonte que eu não oiço ai mãe ai mel
da flor do corpo que me traz à míngua.

De que Egito vieste? De qual Ganges?
De qual pai tão distante me pariste
minha mãe minha dívida de sangue
minha razão de ser violento e triste.

Minha mãe que não tenho minha força
sumo da fúria que fechei por dentro
serás sibila virgem buda corça
ou apenas um mundo em que não entro?

Minha mãe que não tenho inventa-me primeiro:
constrói a casa a lenha e o jardim
e deixa que o teu fumo que o teu cheiro
te façam conceber dentro de mim.

José Carlos Ary dos Santos

sexta-feira, 5 de setembro de 2008

Cães ladram na noite
A insónia do quarto segue-lhes o rasto

Ana Maria Soares

quinta-feira, 4 de setembro de 2008

DÁDIVAS PARA...

CHARLIE CHAPLIN -- A janela do Convento de Cristo de Tomar com a colagem que lhe fez Nicolas Calas em 1942. Sob a janela, uma cama em osso de cavalo provida de telescópio e copo de sangue.
MARILYN MONROE - Um navio de guerra adaptado a ferro de engomar.
FRED ASTAIRE -- Uma dúzia de lagartos muito frescos.
BUGS BUNNY -- Uma prova de corta-mato no primeiro andar do Art Institute of Chicago.
BESSIE SMITH -- O quadro «Mona Lisa» de Leonardo Da Vinci com sistema eléctrico dois-pés-duas-pernas que o façam andar por toda a casa e mesmo subir escadas.
HARPO MARX -- O papel de Iago na ópera «Otelo» de Verdi.
JACK LONDON -- um pequeno cemitério de aldeia.
KRAZY KAT -- Uma árvore japonesa que, dando-se-lhe um charuto, apresenta um telefone anos 30. Na linha, um padre yugoslavo informa continuamente sobre as experiências do Frankenstein de Utrecht.
MAE WEST -- Uma almofada com a forma da cara da senhora Golda Meir.
JERRY LEWIS -- A Torre da Água, de Chicago, mas um pouco mais alta e cortada em fatias longitudinais de onze centímetros cada.
BUSTER KEATON -- Um avião pilotado por uma girafa. Fins de semana: só a girafa.

segunda-feira, 1 de setembro de 2008

Quando aqueles que chegavam
olhavam os que partiam
os que partiam choravam
os que ficavam sorriam

Mário Cesariny