sábado, 30 de janeiro de 2010

ALDEIA

Eu e a noite,
Chegámos ao mesmo tempo
Àquela povoação:
-- Uma aldeia que eu guardo na memória,
Como se guarda duma noiva morta
A doce recordação.

Fecho os olhos e vejo-a: -- as casas, o moinho,
O coreto e a fonte...
Quem os ergueu, sabia quem eu sou;
E, -- para me encantar como eu, outrora,
Arrumava no quarto os meus brinquedos,
Tal-qual os arrumou.

Criança? -- Já o não era,
Ao mesmo tempo em que isto foi;
Mas ainda conservo a sensação
(Quase triste, de tão enternecida,)
De ser a noite
Que me levava pela mão...

Carlos Queirós

sábado, 23 de janeiro de 2010

Chegaram os pacotes com as cartas
os retratos os mapas os papéis
o que sobrou dos gestos e das almas
sem excessivo valor comercial.

Os outros preferiram os dejectos
e lá se engalfinharam nas heranças
computando os seus lucros e rancores
mudando fechaduras e pretextos.

Há pessoas que morrem duas vezes.
Para a primeira morte estava pronta
na segunda ficou possessa de ódio
pois soubera morrer e não deixaram.

Mandou que preparassem dois enterros
um para cada morte e cada vida
o primeiro com flores maternais
no segundo desfez o corpo em cinza.

Vejo-a agora de novo nos retratos
a mãe menina segurando rosas
o braço comatoso a acalentar-me
o inverno a nascer da primavera.

Helder Macedo

domingo, 3 de janeiro de 2010

NOCTURNO DE LISBOA

Pela noite adiante, com a morte na algibeira,
cada homem procura um rio para dormir,
e com os pés na lua ou num grão de areia
enrola-se no sono que lhe quer fugir.

Cada sonho morre às mãos doutro sonho.
Dez-réis de amor foram gastos a esperar.
O céu que nos promete um anjo bêbado
é um colchão sujo num quinto andar.

Eugénio de Andrade

sábado, 2 de janeiro de 2010

PEQUENO POEMA

Quando eu nasci,
ficou tudo com estava.

Nem homens cortaram veias,
nem o Sol escureceu,
nem houve Estrelas a mais...
Somente,
esquecida das dores,
a minha Mãe sorriu e agradeceu.

Quando eu nasci,
não houve nada de novo
senão eu.

As nuvens não se espantaram,
não enlouqueceu ninguém...

Pra que o dia fosse enorme,
bastava
toda a ternura que olhava
nos olhos de minha Mãe...

Sebastião da Gama