domingo, 25 de setembro de 2011

O SOL É UM COMETA

Um astro rápido atravessa a água
do céu de maio não como um destroço
das primaveras que o passado esmaga
é um leão que treme na luz de ouro

O sol é um cometa quando o vejo
com os músculos de ouro do meio-dia
dilacerar a água que o protege
tal como o corpo dilacera a vida

Gastão Cruz

sábado, 24 de setembro de 2011

EVA

A culpa toda
me reveste
e eu nua.

Ouvi o que
a serpente
sussurrava
e caí.
Com Adão.

Nos desterrou
o anjo.
Era o conhecimento
de um pudor
ou soluço.

O que pode
a dor,
se nenhum traço
nos julga?

Com medo,
escondo a face.
E opaco, nulo
o riso. Tudo
é desconhecido
fora do paraíso.

Carlos Nejar 

sexta-feira, 23 de setembro de 2011

A vida de tudo quanto vive
          é penhor do Nada.
O mundo que agora une
          é o que amanhã apartará.
A vida dá-nos o Hoje para nos aproximar
          e a Eternidade para a separação.
Possui acaso o rei o mistério da morte?
O seu poder contraria o transe do destino?
Não é isso que vejo!
A morte desfaz o que a união congrega:
Ó colinas vestidas de evanescentes mantos
Ó vida aniquiladas com brutal furor
Ó almas atingidas de insanável mal,
Não sabeis que suas mãos profanam os haréns,
Os mais nobres príncipes e as suas damas?
Que ela é o mal que abate o monarca
Com golpe fero que atrai a compaixão?
Que contra ela os elementos não são armas
Nem as lágrimas lhe dão sequer remédio?
Logro contra ela é o recurso dos suspiros!
Logro contra ela é o socorro do pranto!
Como pôr fim a um mal com outro mal?
Como tratar a dor com outra dor?

Ibn Darraj al-Qastalli

(Adalberto Alves)

quinta-feira, 22 de setembro de 2011

A poesia é o "real absoluto" mas em constante mutação, e por isso sempre haverá poesia que sempre se cumprirá fora dos muros e das luzes da cidade. É este o lugar dos poetas, cá fora. Os que se aproximam dos outros poderes ou perderam a inocência ou nada aprenderam com a experiência: já não são poetas.

Casimiro de Brito
Tal como Gramsci e a sua mãe, o único Paraíso que concebo situa-se no coração dos meus.

quarta-feira, 21 de setembro de 2011

BARCOS DE PAPEL

Quando a chuva cessava e um vento fino
franzia a tarde tímida e lavada,
eu saía a brincar pela calçada,
nos meus tempos felizes de menino.

Fazia de papel toda uma armada
e, estendendo meu braço pequenino,
eu soltava os barquinhos, sem destino,
ao longo das sarjetas, na enxurrada...

Fiquei moço. E hoje sei, pensando neles,
que não são barcos de ouro os meus ideais:
são feitos de papel, tal como aqueles,

perfeitamente, exatamente iguais...
-- que os meus barquinhos, lá se foram eles!
foram-se embora e não voltaram mais!

Guilherme de Almeida

terça-feira, 20 de setembro de 2011

O crítico tem alma de camelo:
frutas e flores, eis o que el' não come.
No florido jardim do doce néctar,
se não vê espinhos, morrerá de fome.

poema sânscrito anónimo

(Jorge de Sena)

CANÇÃO DE SALABU

Nosso filho caçula
Mandaram-no p'ra S. Tomé
Não tinha documentos
          Aiué!
Nosso filho chorou
Mamã enlouqueceu
          Aiué!
Mandaram-no p'ra S. Tomé

Nosso filho já partiu
Partiu no porão deles
          Aiué!
Mandaram-no p'ra S. Tomé

Cortaram-lhe os cabelos
Não puderam amarrá-lo
          Aiué!
Mandaram-no p'ra S. Tomé

Nosso filho está a pensar
Na sua terra, na sua casa
Mandaram-no trabalhar
Estão a mirá-lo, a mirá-lo

-- Mamã ele há-de voltar
Ah! A nossa sorte há-de virar
          Aiué!
Mandaram-no p'ra S. Tomé

Nosso filho não voltou
A morte levou-o
          Aiué!
Mandaram-no p'ra S. Tomé!

Mário Pinto de Andrade

segunda-feira, 19 de setembro de 2011

En art, il n'y a que deux choses essentielles: l'instinct et le don.


Vlaminck
A sedução está para a rendição
como a flor para o fruto.
(Quanta flor sem fruto!)

David Mourão-Ferreira
Àqueles que sabem
e querem amar o
Futuro:

Foge o Presente, foge às mãos sequiosas
De cingi-lo, apertá-lo ao coração,
E as horas correm, tão vertiginosas,
Que mal as vemos, no seu turbilhão...

Umas dão sonho, noutras nascem rosas.
Sonhos e rosas -- porque nascerão?...
-- Como a volúpia incerta que tu gozas
Deixam saudades só, meu coração!

E é sempre esta saudade, esta agonia
De não viver a vida fugidia,
De ver fugir desejo, amor, verdade...

-- Mas o Futuro vela... E, fielmente,
Colhe as horas mais belas do Presente
E delas tece a nossa eternidade!

João de Barros

A UMA BICICLETA DESENHADA NA CELA

Nesta parede que me veste
da cabeça aos pés, inteira,
bem hajas, companheira,
as viagens que me deste.

Aqui,
onde o dia é mal nascido,
jamais me cansou
o rumo que deixou
o lápis proibido...

Bem haja a mão que te criou!

Olhos montados no teu selim
pedalei, atravessei
e viajei
para além de mim.

Luís Veiga Leitão

domingo, 18 de setembro de 2011

PASSEI A VIDA...

Passei a vida a servir
os meus dias passei-os a chorar
no meu mundo
meu inferno.

Os braços trabalhando
para um mundo alheio
os meus dedos musicando
para o mundo alheio.

Meu mundo
meu inferno.

E ainda choro hoje
mas de vergonha
de pejo
por ter vivido num mundo inferno
sem ter tido ao menos alma para morrer

1948

Agostinho Neto

O ESPÍRITO DOS PÁSSAROS

Os índios acreditam que o homem
é o espírito dos pássaros,
deslumbrante e volátil,
como uma nuvem de espuma,
um óleo santo, ou um fogo ritual.

Assim se cumpre o seu destino
de adoradores do trigo, da lava
e do sol, de fabricantes de setas
ardentes como um lume fatal.

Conspiram os pássaros contra
o espírito dos homens
que os tiraniza e fere de morte.
Dançam em torno das estações,
trabalhando pela fertilidade
das colheitas, migrantes e sequiosos.

José Jorge Letria

sábado, 17 de setembro de 2011

CIDADE DE SEGREDOS

Quando a cidade escurece
e um toldo de noite a envolve,
o silêncio traz em si
os mais profundos lamentos,
o ruído de estertor dos que chegam ao fim,
os soluços de amor dos que agora começam,
os passos perdidos pelas ruas solitárias
de luz citrina nas janelas da espera.
É sempre o corpo o centro da madrugada.
Vou ver o meu filho que dorme serenamente
enquanto um motor de carro abranda
na hora do sono dos noctívagos e dos boémios.
Sento-me e contemplo ao longe a Basílica da Estrela
num diálogo de pedra secreto com os
últimos luzeiros, com o rumos da alvorada

João Candeias

sexta-feira, 16 de setembro de 2011

-- Faze o bem e fecha os olhos:
Fecha-os, não olhes a quem. --
Não vejas o mal dos outros,
Vejam outros teu bem.

António Correia de Oliveira

ONDE?

Tão longe como estás, ó meu desejo,
Quando a noite gelada se avizinha,
Se tu és Dor, ao pé de mim te vejo...

Trajas um manto negro de rainha
E, silenciosa como a sombra, choras
Pousando sempre a tua mão na minha!

Vens de tão longe nas caladas horas!
Se tu és Pranto, esse leal amigo,
E no meus olhos que de noite moras...

Tens neste amargo peito um doce abrigo!
Se estás longe de mim e eu não te alcanço,
Não és pranto nem Dor! Mas, se és Descanso,
Onde te ocultas que não dou contigo?

João Saraiva

quinta-feira, 15 de setembro de 2011

AQUELE QUE PASSA

O desconhecido que passa e te acha ainda digna de uma fugidia palavra de desejo,
Talvez porque na sombra da noite tão doce de Maio
Ainda resplendem teus olhos, ainda tem vinte anos a ligeira figuras deslizante,
Não sabe que foste amada, por aquele que amaste amada, em plena e soberba delícia de
                                                                                                                              [amor,
E em ti não há membro ou ponta de carne ou átomo de alma que não tenha uma marca de
                                                                                                                              [amor.
Que tu viveste apenas para amar aquele que te amava,
E nem que quisesses podias arrancar de ti essa veste que o amor teceu.
Ele, ignaro, em ti já não bela, em ti já não jovem, saúda a graça do deus:
Respira, passando em ti, jão não bela, em ti já não jovem, o aromo precioso do deus:
Só porque o levas contigo, doce relíquia à sombra de um sacrário.

Ada Negri

(Jorge de Sena)

LA VIE IDÉALE

Une salle avec du feu, des bougies,
Des soupers toujours servis, des guitarres,
Des fleurets, des fleurs, tous les tabacs rares,
Où l'on causerait pourtant sans orgies.

Au printemps lilas, roses et muguets,
En été jasmins, oeillets et tilleuls
Rempliraient la nuit du grand parc où, seuls
Parfois, les rêveurs fuiraient les bruits gais.

Les hommes seraient tous de bonne race,
Dompteurs familiers des Muses hautaines,
Et les femmes sans cancans et sans haines,
Illumineraient les soirs de leur grâce.

Et l'on songeraient, parmi ces parfums
De bras, d'éventails, de fleurs, de peignoirs,
De fins cheveux blonds, de lourds cheveux noirs,
Aux pays lointains, aux siècles défunts.

Charles Cros

quarta-feira, 14 de setembro de 2011

Primeiro Livro de Poesia

título: Primeiro Livro de Poesia
subtítulo: Poemas em Língua Portuguesa para a Infância e a Adolescência
selecção e posfácio: Sophia de Mello Breyner Andresen (Porto, 6.I.1919 -- Lisboa, 2.VII.2004)
os poetas: Gil Vicente, Eugénio de Andrade, Odylo Costa, Filho, Sidónio Muralha, Manuel Bandeira, Fernando Pessoa, Jaime Cortesão, Bocage, Mutimati Barnabé João (António Quadros), Miguel Torga, Viriato da Cruz, Gomes Leal, Violeta Figueiredo, Ribeiro Couto, Terêncio Anahory, Luís de Camões, Vasco Cabral, Henrique Guerra, Alda do Espírito Santo, Vitorino Nemésio, Daniel Filipe, Jorge de Barros, Pedro Homem de Melo, Jorge de Lima, Maria Eugénia Lima, João Roiz de Castelo Branco, Aguinaldo Fonseca, Caetano da Costa Alegre, Fernando Sylvan, Manuel Rui, Reinaldo Ferreira, Teixeira de Pascoais, António Nobre, Jorge Barbosa, António Baticã Ferreira, Noémia de Sousa, João Cabral de Melo Neto, Glória de Sant'Anna, José Craveirinha, D. Dinis, Airas Nunes de Santiago, Rui Bueti, Ruy Cinatti, Manuel Lima, Jorge Lauten, Cesário Verde, Francisco José Tenreiro, poesia popular portuguesa e timorense
ilustrações: Júlio Resende
editora: Editorial Caminho
local: Lisboa
ano: 1991
págs.: 192
dimensões: 19,3x13,7x1,8 cm. (cartonado)
impressão: Rolo & Filhos, Mafra
tiragem: 15000
obs.: nota final de Roberto Carneiro, ministro da Educação; edição patrocinada pelo Instituto de Inovação Educacional do Ministério da Educação
As bibliotecas públicas não aguentam os nossos livros.

terça-feira, 13 de setembro de 2011

ALMOÇO NA RELVA

Do céu fechado
(semi-
círculo)
sobre o
lago
cai verde
uma gota de ave
                    -- excremento --

abre n'água
cír       círculos
concêntricos

O lago, outro
círculo

verde
circundando
por mais verde avermelhado
pelo círculo do sol
poente

relva onde talo teso gramo

às portas do seu
triângulo jardim

Antônio Moura
Promontório de Deus. De onde ele se ausenta.
Só nos deixando a grande nostalgia
na sua massa espessa.
Que abre distância de recuo assídua
e alarga a inteligência
por uma busca quase festiva.
Ou mais, talvez, por uma via tensa
de júbilo e sentido. E, até, sofrida
na sua panda activação de vela.
Que vai sofrendo e activando a vinda
da invisibilidade, da surpresa
inominada, que procura ainda
seu nome peremptório. Mas nomeia
essa distância a distanciar-se
implícita.
Ou promontório de onde Deus se ausenta
para auscultarmos sua face viva.

Fernando Echevarría

segunda-feira, 12 de setembro de 2011

FUI GERADO

Fui gerado
Como as sombras te geraram
Ai as sombras

Que pariram nas cavernas
Ai as sombras que pariram
Minha sombra nas cavernas

Tantos gestos que se buscam
Tantos lábios que se entregam
Tantos corpos que se apagam
nas cavernas

Ah os homens serão tristes
Pois não sabem donde vêm
Ah os homens serão tristes
Pois não sabem onde vão

Fui gerado Noite adentro
Tua fome me vestia

Fui gerado Noite adentro
Como a terra
Que as raízes não consomem

Fui gerado Noite adentro
Era o Sol que fecundava
Era a terra que sangrava
E do íntimo da terra
Era um homem que brotava

Fui gerado Noite adentro

Carlos Nejar

SÉCULO ILUMINADO

O Século Iluminado
Ouço a este chamar.
E ninguém pode negar
Que está bem adiantado
Em mentir e em enganar.

Miguel do Couto Guerreiro

PAZ (2)

Avaro de meus sonhos te invoquei,
Nascesses para mim e eras cumprida.
Ilha sem arquipélago julguei
Dividida dos outros minha vida.

Mas que voz de mim vem e te reclama,
Filha de reis dum reino que inda existe?!
Porque funde ao calor da tua chama
O inútil silêncio que resiste?

Nunca te deste toda a quem te quis
Para si, receber o que feliz
Só na comum seara se renova.

Tudo o que vem de ti é largo e vário,
Mas não sorri ao homem solitário
Que te busca sozinho em sua cova.

Arnaldo França

sábado, 10 de setembro de 2011

ESCURIDÃO

Vou pensando em viver. Entre-tem-me. Se algum dia até isto me voar, fecho as portas e as janelas, apago a luz e deito-me no chão a um canto.

António Madeira
[Branquinho da Fonseca]

sexta-feira, 9 de setembro de 2011

Obras Poéticas de Eugénio de Castro - Volume V

autor: Eugénio de Castro (Coimbra, 4.III.1869-17.VIII.1944)
título: Obras Poéticas de Ferreira de Castro -- Volume V (inclui Contança, Depois da Ceifa e A Sombra do Quadrante)
prefácio: Miguel de Unamuno (1907)
editora: Lumen
local: Lisboa
ano: 1929
págs.: 184
dimensões: 19,3x13x1,7 cm. (brochado)
impressão: Imprensa Nacional de Lisboa
obs.: foto do autor em 1911, extratexto

O SELO DOS DIAS

Dias virão, dias virão
a golpes secos
de potros
no chão.

Não sei se já nasceram,
não sei onde se encontram
os dias
que amo tanto.

(No cano de um fuzil
ou no cano do espanto).

Dias virão virão,
lobos de aragem
e a todos morderão
com sua liberdade.

Que pássaros
se aplumam
nas penas destes pássaros?

Serão dias saltando
aos ombros
de outros ombros,
até onde houver ombros
irão dias brotando.

Carlos Nejar

STELLA BY STARLIGHT

Quem viu estrelas
ouviu aquelas
perdidas vias velhas:

O som do rio aflito
a tarde triste em guarda
a penumbra arde em arrebol
a sinfonia astral amarga
o rouxinol perito provençal.

O som é tudo o que se adora
é tudo isso e muito mais:
um tema grego antigo
Stella By Starlight
lua trançada no cabelo
voz de desconcerto.

Tontura alta dos amantes
dribla dentro explode em canto.

Frederico Barbosa

quinta-feira, 8 de setembro de 2011

L'ISLE JOYEUSE

Ó festa de luz de mar tranquilo
De casas brancas dum branco rosa
Dum tempo antigo que aqui ficou

Ó ilha pura incandescente
Que me geraste três vezes mãe
Três vezes para mim sagrada
Por teres deuses tão variados
Por seres livre da liberdade
Que os deuses gregos orientais
Marcaram a fogo um fogo alegre
Naqueles seres naquelas ilhas
Que eles nomeiam seus próprios filhos
Por motivos sobrenaturais

Ilha de Moçambique, 1-3-1963

Alberto de Lacerda

GLOSA DE GUIDO CAVALCANTI

"Perchi' I' no spero di tornar giammai"

Porque não espero de jamais voltar
à terra em que nasci; porque não espero,
ainda que volte, de encontrá-la pronta
a conhecer-me como agora sei

que eu a conheço; porque não espero
sofrer saudades, ou perder a conta
dos dias que vivi sem a lembrar;
porque não espero nada, e morrerei

no exílio sempre, mas fiel ao mundo,
já que de nenhum outro morro exilado;
porque não espero, do meu poço fundo,

olhar o céu e ver mais que azulado
esse ar que ainda respiro, esse ar imundo
por quantos que me ignoram respirado;

porque não espero, espero contentado.

Jorge de Sena

quarta-feira, 7 de setembro de 2011

A poesia é um acto de insubordinação a todos os níveis, desde o nível da linguagem como instrumento de comunicação, atá ao nível do conformismo, da conivência com a ordem, qualquer ordem estabelecida.
[...]
É claro que falo do poeta e não do poetastro, do industrial e comerciante de poemas, do promotor da venda das palavras que proferiu. Falo do homem que nunca repousou sobre o que escreveu, que se recusou a servir-se a si e a servir, que constantemente se sublevou. [...]

Ruy Belo, «Breve programa para uma iniciação ao canto», Transporte no Tempo, 4.ª edição, Lisboa, Editorial Presença, 1997, pp. 19-20.

terça-feira, 6 de setembro de 2011

Tal como Shelley e Hardy antes dele, Lawrence irá continuar a enterrar os seus próprios cangalheiros, precisamente como Whitman enterrou várias gerações de agentes funerários que o puseram de parte.

Harold Bloom, O Cânone Ocidental, p.264.

Greguerías

autor: Ramón Gómez de la Serna (Madrid, 3.VII.1888 -- Buenos Aires, 12.I.1963)
título: Greguerías
subtítulo: Uma Selecção
selecção, tradução e prefácio: Jorge Silva Melo
colecção: «Gato Maltês» #37
edição: Assírio & Alvim
local: Lisboa
ano: 1998
págs.: 110
dimensões: 18,5x11,5x1 cm. (brochado)
capa: fotografia de André Kertész
impressão: Guide - Artes Gráficas, Lisboa
obs.: edição apoiada pelo Ministério da Cultura de Espanha

POUCO ACIMA DAQUELA ALVÍSSIMA COLUNA

Pouco acima daquela alvíssima coluna
que é o seu pescoço, a boca é-lhe uma taça tal
que, vendo-a, ou vendo-a, sem, na realidade, a ver,
de espaço a espaço, o céu da boca se me enfuna
de beijos -- uns sutis, em diáfano cristal
lapidados na oficina do seu Ser;
outros -- hóstias ideais dos meus anseios,
e todos cheios, todos cheios
do meu infinito amor...
Taça
que encerra
por
suma graça
tudo que a terra
de bom
produz!
Boca!
o dom
possuis
de pores
louca
a minha boca!
Taça
de astros e flores,
na qual
esvoaça
meu ideal!
Taça cuja embriaguez
na via láctea do Sonho ao céu conduz!
Que me enlouqueças mais... e, a mais e mais, me dês
o teu delírio... a tua chama... a tua luz...

Hermes Fontes

LOS CAMINOS SECRETOS

Los fronterizos, los que pasen solitarios
contrabandistes, maquis, carabineros,
los que marca nel atlas con tinta azul
la pensatible mano d'una nena
qu'inda nun sabe que ye Lady Macbeth,
los que taliara mio padre per tierres del Bierzo
y aquellos perpindios pelos que yo atayaba
con tebeos baxo'l brazu
pa llegar a la caseta
de lates, plásticu y fierro
onde m'esperaben los trece
años de Yolanda la del carteru.

Los caminos secretos baxo la húmida
lluz d'una tarde antigua de marzu,
la breda erma d'un poema de Kipling
que copié nun cuaderno va pa diez años
nuna bufarda de la cai Escura.
Los que llevo anoyaos al corazón
y me train y me lleven
dica esa última alcoba que nun soi
-- bates blanques, doutores... -- pa imaxinar.

Xuan Bello

segunda-feira, 5 de setembro de 2011

Tivemos,
Em vez de uma longa vida de doçura
A travessia de vales e montes lamacentos;
Em vez de noites breves sob os véus
O temor da viagem no seio de infindável treva;
Em vez de água límpida sob sombras
O fogo das entranhas queimadas pela sede;
Em vez do perfume errante das flores
O hálito esbraseado do meio-dia;
Em vez da intimidade entre ama e amiga
A rota noctura cercada de lobos e de génios;
Em vez do espectáculo dum rosto gracioso
Desgraças suportadas com nobre constância.

Ibn Darraj Al-Qastalli

(Adalberto Alves)
A poesia é resistência a um destino de «despoetização» generalizada, que ela integrou como uma consciência trágica de que se alimenta há séculos.

António Guerreiro, «A poesia sem interrupções», Relâmpago #2, Lisboa, Fundação Luís Miguel Nava e Relógio d'Água, 1998, p. 10.

domingo, 4 de setembro de 2011

«Não se pode ensinar alguém a amar a grande poesia quando esse alguém chega até nós sem esse amor. Como é que se pode ensinar a solidão?»

Harold Bloom, O Cânone Ocidental, traduão de Manuel Frias Martins, Lisboa, Temas & Debates, 1997, p.467


Só Sangue Cheira a Sangue

autor: Anna Akhmátova (Odessa, 24.VI.1889 -- Leninegrado, 5.III.1966)
título: Só o Sangue Cheira a Sangue
tradução, selecção, introdução e notas: Nina Guerra e Filipe Guerra
colecção: «Documenta Poética» #41
editora: Assírio & Alvim
págs.: 107
dimensões: 20,3x14,5x0,9 cm.; brochado.
impressão: Guide -- Artes Gráficas
obs.: edição bilingue; no interior, fotos de A. A. e retrato, por Kuzma Petrov-Vodkin. 

sábado, 3 de setembro de 2011

SOBRE O LINHO

A avó inclina-se sobre o linho
guarda estrelas no cesto do carvão
com as mãos gretadas pelo gelo das manhãs
pelos cristais de água da estação das chuvas

As histórias que conta são
as do assombro e da claridade ofuscada
pelo rasto dos cometas

Vorazes são os lobos insones
à beira dos portões da infância:
as crianças voam para o céu

Vejo-a arquejante sobre as almofadas
com a primavera agonizando nas janelas

José Jorge Letria

sexta-feira, 2 de setembro de 2011

CORAÇÃO

Lembrança, quanta lembrança
dos tempos que já lá vão!
Minha vida de criança,
minha bolha-de-sabão!

Infância, que sorte cega,
que ventania cruel,
que enxurrada te carrega,
meu barquinho de papel?

Como vais, como te apartas,
e que sozinho que estou!
Ó meu castelo de cartas,
quem foi que te derrubou?

Tudo muda, tudo passa
neste mundo de ilusão:
vai para o céu a fumaça,
fica na terra o carvão.

Mas sempre, sem que te iludas,
cantando num mesmo tom,
só tu, coração, não mudas,
porque és puro e porque és bom.

Guilherme de Almeida
O que te leva, rio, a todos leva em si.
Aceita com coragem males e desgraças.
Em vão lutas e gritas, pois por mais que faças
aquel' que a todos leva, também leva a ti.

Paladas de Alexandria

(Jorge de Sena)

quinta-feira, 1 de setembro de 2011

MONUMENTO A D. JOSÉ, LISBOA

Opulento pedestal
Luxuriante de vida
Tropical
Sobre que pousas
-- Rei europeu
Ou marajá hindú?

«...da Arábia, da Pérsia, da Índia...»
Ausente da pureza deste céu
Rei europeu
Apetecendo palanque e especiaria
Que país foi o teu?

Esta nesga de Europa
Com vinhedos
Ou sonhadas florestas
Onde enviavas a correr
Fidalgos-cavaleiros
Criados de teus paços?

Teus cavalos ligeiros
Ou pesados elefantes
Tropicais?...
-- Tuas glórias distantes
Nunca vistas
Sonhadas
Marajá desterrado!

M. António

A PRIMEIRA BISNETA

Para o futuro neto da Teresa e do
Marcelo. Na noite de Natal de 1956.

Tal o menino Jesus
os meninos nascem nus...
Mas Aquele não tem frio,
vem lá do céu direitinho,
e no céu tudo é quentinho.
Os outros, quanto arrepio
no seu corpinho macio!
Então a Avó, com afã,
para evitar-lhe percalços,
por causa dos pés descalços,
corre a buscar sapatinhos
de boa lã
(boa lã da Covilhã)
que os pèzinhos aconchega...
Nenhum inverno lhes chega!
-- Oferta de puro amor
que é sempre o melhor calor.

João de Barros