domingo, 22 de novembro de 2009

NÃO HÁ SAÍDA

Não pode a maior parte
suportar mesmo o que admira.
No mais sincero e puro admirar
uma raiva flutua, uns dedos se crispam,
um gosto sorridente de poder, podendo,
pousar na grandeza pelo menos um pé sujo
que manche o limiar lavado pela paciência
dos séculos e de um homem só. Não
tenhamos ilusão alguma. Quando louvam,
é só se podem dar com uma mão e tirar com a outra.
Nada pode haver de limpo neste mundo podre.
E morremos todos manchados de lama
que irá pegada a nós dentro do tempo.
Abrindo-nos as páginas futuras, alguém há-de
ver delas soltar-se um seco pó que tomba
e que ele sacode, assopra, rindo
da humanidade torpe que abusou de nós.
Ninguém porém nos pode garantir
que ele mesmo, o que nos limpa, o não faça
para no tempo limiar deixar bem nítidos
senão seus pés ao menos os dedos do seu cuspo.

11/10/1973

Jorge de Sena

quarta-feira, 18 de novembro de 2009

IRONIA

Se a noite fosse mais negra,
--Quero dizer, mais sombria!,
Agora que me encontraste
E que me dás o teu braço
Para falarmos, de novo,
No que dissemos, um dia!...
Se a noite fosse mais negra!,
E se as estrelas brilhassem
Com menos intensidade,
Sim, não duvides, eu diria...,
-- Mas não me fites assim!
Diria que és o meu sonho
E a minha realidade.
Mas esta luz que se entorna
Intimida o meu sentir
E fico, mudo, a sofrer...
--Também a gente nunca sabe
Se a verdade no amor
Se deve calar ou dizer.

António Botto