quinta-feira, 29 de janeiro de 2009

NOCTURNO

Espírito que passas, quando o vento
Adormece no mar e surge a lua,
Filho esquivo da noite que flutua,
Tu só entendes bem o meu tormento...

Como um canto longínquo -- triste e lento --
Que voga e subtilmente se insinua,
Sobre o meu coração, que tumultua,
Tu vertes pouco a pouco o esquecimento...

A ti confio o sonho em que me leva
Um institnto de luz, rompendo a treva,
Buscando, entre visões, o eterno Bem.

E tu entendes o meu mal sem nome,
A febre de ideal que me consome,
Tu só, Génio da Noite, e mais ninguém!

Antero de Quental

segunda-feira, 26 de janeiro de 2009

À mãe do soldado desconhecido

Bota discurso o militar casquilho,
Soa de mil cornetas o clangor,
Há sinos, salvas, rufos de tambor,
Tudo em glória maior de vosso filho.

Eu, que ideias guerristas não perfilho,
Tive há bocado um ramo de estupor;
Nem as cinzas dum grande imperador
Seriam trasladadas como mais brilho.

Mas ai de vós se alguma vez, doente,
Morta de fome e a tiritar de frio,
Tiverdes que esmolar! Toda essa gente

Que a vosso filho de lauréis cobriu,
Há-de passar por vós indiferente
Ou enxotar-vos como a um cão vadio.

Ed. Bramão de Almeida

sábado, 17 de janeiro de 2009

ÁRVORE RUMOROSA

Árvore rumorosa pedestal da sombra
sinal de intimidade decrescente
que a primavera veste pontualmente
e os olhos do poeta de repente deslumbra

Receptáculo anónimo do espanto
capaz de encher aquele que direito à morte passa
e no ar da manhã inconsequentemente traça
o rasto desprendido do seu canto

Não há inverno rigoroso que te impeça
de rematar esse trabalho que começa
na primeira folha que nos braços te desponta

Explodiste de vida e és serenidade
e imprimes no coração mais fundo da cidade
a marca do princípio a que tudo remonta

Ruy Belo

segunda-feira, 12 de janeiro de 2009

CONSOLO NA PRAIA

Vamos, não chores...
A infância está perdida.
A mocidade está perdida.
Mas a vida não se perdeu.

O primeiro amor passou.
O segundo amor passou.
O terceiro amor passou.
Mas o coração continua.

Perdeste o melhor amigo.
Não tentaste qualquer viagem.
Não possuis casa, navio, terra.
Mas tens um cão.

Algumas palavras duras,
em voz mansa, te golpearam.
Nunca, nunca cicatrizam.
Mas, e o humour?

A injustiça não se resolve.
À sombra do mundo errado
murmuraste um protesto tímido.
Mas virão outros.

Tudo somado, devias
precipitar-te -- de vez -- nas águas.
Estás nu na areia, no vento...
Dorme, meu filho.

Carlos Drummond de Andrade

terça-feira, 6 de janeiro de 2009

SONO

Dormir
mas o sonho
repassa
duma insistente dor
a lembrança
da vida
água outra vez bebida
na pobreza da noite:
e assim perdido
o sono
o olvido
bates, coração, repetes
sem querer
o dia.

Carlos de Oliveira

domingo, 4 de janeiro de 2009

CÉU DE SAUDADES

No céu unido dos dias como o de hoje
Que há neles que se afasta e foge?
Que é este cinzento das lousas do meu Douro
Que só encontro nas asas dos pombos bravos
Que distância me acena como leve mão de afagos
Daquela Mãe para quem eu era o seu menino de ouro.


Joaquim Gomes Mota