canaliza
com o anoitecer o rapaz toma corpo de vulcão
inicia o percurso que o levará
a preencher o silêncio das imagens
agarrado às fissuras da terra
pousa o caderno e o lápis e voa
havia uma casa a que chamávamos de canaliza
era um edifício inacabado
onde guardávamos as armas
e os brinquedos -- uma ruína
de pó luminoso
pedaços de madeira e restos de tijolos
ali nos perdíamos em sonhos
até que o grito mudo das
gaivotas nos viesse acordar
ali havia rostos de riso e
assim era o castelo enclausurado
no meio da mediocridade e
na fugaz realização do corpo
as mãos flutuavam-nos
por entre gestos de batalhas
às vezes pela esperança
de ter nos dedos
os cheiros das raparigas
a quem dizíamos que tínhamos um castelo
e o anoitecer tornava
verdadeira essa aventura
no cimo dos galhos das árvores
no pátio da escola
se amarravam raparigas
em geral os outros passavam
e eram eles que nos olhavam
translúcidos
uma a uma lhes
enfiávamos dardos envenenados
areia pedras beijos
(é aqui que as mãos flutuantes
tornavam o sonho ainda mais
real e decretávamos ordens
uns aos outros)
a noite trazia ainda
a dimensão de todas
as visões:
um comboio de
livros que parava na mais
secreta estação
aí mergulhávamos
noutros sistemas solares
noutros corpos
noutros segredos que nem
a noite deixava adivinhar
ou
uma praia tão extensa como a nossa
mas que no horizonte mostrava
a porta de um abismo
e sob a areia por entre
as mesmas barcas
dançavam mulheres nuas
e nelas atracávamos as
embarcações feitas de piteira
hoje é a noite que está despedida
e pernoito no lado de lá do
meu fantasma
m. parissy