quinta-feira, 28 de julho de 2011

As tuas coxas de firme e elástico contorno
E de doces energias,
Que cálice de segredos rompe a sua dureza vertical?
Que sombra de apertadas e nocturnas pestanas
Lhes empresta essa agilidade comprometida?

Peixe que só tem a água do amor.

Joaquim Gomes Mota

terça-feira, 26 de julho de 2011

ABRIL

Assalto
ao Palácio do Inverno
para de vez
implantar
a Primavera.

João Pedro Mésseder

segunda-feira, 25 de julho de 2011

POÉTICA

Estes quantos traços que se parecem com a sombra
(às mãos devemos também a solidão mais implacável)
talvez nem mereçam essa forma de lentidão: a leitura
escrevi-os num jardim onde patos grasnam ao frio
e folhas se despenham atrás do vento

Sobre a terra sem nenhum rumor
um verso é sempre tão pouco
em redor do que se pode observar
tenho medo pois de repente
a tua respiração ficou demasiado perto
da essência instável, dissonante

E isso é tudo o que nos resta

José Tolentino Mendonça

domingo, 24 de julho de 2011

Um homem caído no seu corpo
ainda vai cair um pouco mais
e morder vicioso o seu pó
como se o dom do pó lhe desse paz,
não a paz de homem, que já não é,
mas um resto de migalhas e sílabas
que têm de seu a pureza extrema
tão comum a homens como a bichos
e aos outros habitantes deste mundo
caídos num corpo mais disciplinado
por mais que seja leve ou obscuro
o que não sabemos estar do outro lado _____

Casimiro de Brito

sábado, 23 de julho de 2011

GEOGRAFIA

Quem sobe há-de descer e quem desce há-de subir. Não se sobe eternamente, nem se desce eternamente -- porque o mundo é redondo.

António Madeira
[Branquinho da Fonseca]

sexta-feira, 22 de julho de 2011

UM FOGO O PERCORRE

No ângulo raso do rosto
a palavra se esmaga
violenta

No ângulo recto da raiva
a lâmina se quebra
imprevista

No rumor da maré
o corpo todo se altera
dolente

O sangue não pára nos lábios
correndo pelos canais
amargo

A memória ainda se repete
no cristal dos olhos
em redor

O amor de súbito
se torna ácido agreste
de ponta a ponta fascinado
Um fogo o percorre
intensamente

José Jorge Letria

quinta-feira, 21 de julho de 2011

DOMICÍLIO VIGIADO

amar é difícil (risco um fósforo
o fogo estala monstruosamente)
requer muito esforço continuado de abstracção
como andar de bicicleta
já tentei sangrar os dedos com uma faca
as ilusões desfeitas
correm as lágrimas ao rio na infância do mundo
bobby sands e o seu magnífico esqueleto didáctico
a malta no soweto a dançar e a rir
o sentido do tempo.
que é ser-se uma casa devoluta e indisponível?
a insónia macerada de pés nus
em tábuas velhas e infectas
abjecta circunvagação de jornais livros e aguardente
amar é difícil -- quod erat demonstrandum
lá fora devagar a chuva cai
(o cigarro arde as têmporas explodem)
e sacode-me a face como um látego.

João Paulo Monteiro
(Ângelo Novo)

quarta-feira, 20 de julho de 2011

A MORTE

A alma escala as montanhas do frio e vai
abandonando o corpo,
do qual foi chama;
quando atinge o cume
contempla um céu sereno, benigno
onde se irá acolher;

ou navega junto ao círculo polar
até chegar a uma baía
de água límpida e quente?

Na escuridão da caverna
um medo vigia os nossos actos,
medo de que a vida seja apenas isto --
sombras projectadas na parede,
dor pelos caminhos,
até findar um dia, no sem sentido
de um corpo perecível.

Necessidade de saber, derradeiro
e redentor o desejo
ao acender no peito a ilusão
da vitória da vida
sobre o nada.

Na inútil função consoladora da poesia.

Jorge Gomes Miranda

terça-feira, 19 de julho de 2011

ORDEM

     Anda, disse aquele a quem chamavam tio, ajudar-me no vidrão. E tu, acrescentou, vai pôr a mesa. Foram. Deixando o Scarlatti para trás.

     Adormece a luz, pesada, sobre as minhas crianças obedientes. Veraneiam, ele e elas, numa cidade onde há muito se deformam os burgueses.

     Nada de mais, apenas um tédio conveniente -- segreda uma voz de cinza.

     Nem o Scarlatti se revolta?

Gent, 1997

João Pedro Mésseder

segunda-feira, 18 de julho de 2011

A VOZ SOLITÁRIA DO HOMEM

Há palavras que escrevemos mais depressa
o terror dessas palavras derruba
o passado dos homens
são tão pouco: vestígios, índices, poeira
mas nada lhe é desconhecido
as horas em que vigiamos o escuro
os sítios nenhuns das imagens
a ligeira mudança que resgataria
o abandono, todo o abandono

José Tolentino Mendonça

domingo, 17 de julho de 2011

NEBULOSA

Certo passado audaz, revivo
apenas, sob um céu menos escuro:
se eu vivo para o futuro
quer dizer que já o vivo.

Futuro!
Quando te posso ver, por ti plena aurora,
condena-te a presença,
és este agora
que eu possuo
como a abelha suga a rosa;
e sem que o resto me importe...

Mas antes ou depois ver-te ou pensar-te
é ver uma nebulosa...
-- é como pensar na morte...

Edmundo de Bettencourt

Sob a Noite Física

autor: Carlito Azevedo
título: Sob a Noite Física
editora: Livros Cotovia
local: Lisboa
ano: 2001
págs.: 65
dimensões: 20,5x13,1x0,7 cm. (brochado + sobrecapa vegetal)
capa: João Botelho
impressão: Tipografia Guerra, Viseu
tiragem: 750

sábado, 16 de julho de 2011

A loba é um bicho estranho, um vizinho
atarefado, que trabalha para um desígnio estranho
e obsessivo ___ como pensar noutra coisa, construir
outra cabana se o meu sono deixou de ser
um ovo, uma ilha? Perco-me neste arquipélago demente
e cheio de remoinhos _____ ainda ouço ao longe
o canto da cigarra, ainda não perdi
a lembrança de que sou um homem
embora mais antigo do que são os homens
que se julgam poderosos. Se vêm à minha mão
as aves do velho paraíso
alguma coisa escutarão no meu ombro
cansado ____ sou um homem antigo
e venho de muito longe, de matéria ondulantes
mais antigas ainda, vestígios num olhar
onde se reflectem montanhas
mais distantes ainda : ainda
que me detenha no meu jardim
contemplando as cerejeiras
a sombra do meu corpo antigo
caminha sem mim
de casa em casa,
de feira em feira.

Casimiro de Brito

quinta-feira, 14 de julho de 2011

Olha essas flores. São, assim
Regadas pela dádiva da chuva,
Como que estrelas num céu de jardim
Devagar tombando uma a uma.

Furtivamente querendo escutar
Dir-se-ia que um génio de espuma
Procurou saber o seu segredo
E se desfolharam para o castigar.
E eis que a mão da brisa em seu enredo
Sobre o inquieto dorso do arroio
Caprichou em bolhinhas de enfeitar.

Ibn Al-A'lam As-Santamari

(Adalberto Alves)

A UM ADOLESCENTE

Faze do instante que passa
toda a tua inspiração,
que o mundo cheio de graça
caberá na tua mão!

Sê sóbrio: com um copo de água,
um fruto e um pouco de pão,
nem sombra de leve mágoa
cortará teu coração...

Ama a rude terra virgem,
com todo o teu rude amor:
pois colherás na vertigem
de cada sonho uma flor.

Sofre em silêncio, sòzinho,
porque os sofrimentos são
o mais saboroso vinho
para a sombra e a solidão...

E, quando um dia, o cansaço
descer ao teu coração,
une à terra o peito lasso
e morre, beijando o chão!

Morre assim como indeciso
fumo que nos ares vai,
morre num breve sorriso,
como uma folha que cai...

Ronald de Carvalho

quarta-feira, 13 de julho de 2011

Da Morte o gado somos, matadouro a vida.
A morte nos abate -- sabe Deus porquê.

Paladas

(Jorge de Sena)

MULATA

Graça feita de candura e de malícia,
Sabedoria da carne,
Animal vitorioso e generoso,
Vértice de experiências convergentes.
Equador de duas civilizações,
Tu, bela, tu, fecunda, tu, menina,
Primeira e magnífica descoberta,
Filha da História
(Filha do pecado?)
És zombeteira e triste.
Ponto,
Pêndulo,
Suspensão,
Carne retalhada
Por centrífugas forças que te chamam,
Cedo ou tarde nascida?
Cedo ainda?
Resíduo apenas?
Simbólica dança escultural da paz,
Ou virgem imolada no altar do fogo?
Caminhas e meus olhos perdem-se
Mais que nas linhas frementes do teu corpo,
Na luz oblíqua dos teus olhos pávidos.
Esplêndida encarnação do amor sem margens,
Tu, bela, tu, menina,
Mulata,
Interrogação da época.

1961

Antero Abreu 

terça-feira, 12 de julho de 2011

CADERNO

As linhas das mãos
prolongam os veios (dos campos).
Alguém recolhe as últimas estrelas
(no outro lado do coração).
Nenhum agravo ou ferida.
Apenas um caderno aberto
ante o assombro da escrita.

Fernando Jorge Fabião

segunda-feira, 11 de julho de 2011

BRUEGHEL

Representados estão os meses outonais,
os rituais da caça, as parábolas
e os exorcismos, as peregrinações
e os horrores da carne na tela luminosa
do pintor que se senta a ver
dançar os camponeses e conta de babel
o tecido alucinante de mil línguas
fundindo-se em espirais de som

Pelas veredas abertas na neve
se evadem os caçadores e suas sombras
furtivas e trémulas e o pintor
à maneira de quem recorda um provérbio flamengo
tira do cerimonial das cores uma moral
justa e eterna: a felicidade do homem
é um tríptico incompleto
com pássaros vorazes planando em volta

José Jorge Letria

CIDADE, RUMOR E VAIVÉM

Cidade, rumor e vaivém sem paz das ruas,
Ó vida suja, hostil, inutilmente gasta,
Saber que existe o mar e as praias nuas,
Montanhas sem nome e planícies mais vastas
Que o mais vasto desejo,
E eu estou em ti fechada e apenas vejo
Os muros e as paredes, e não vejo
Nem o crescer do mar, nem o mudar das luas.

Saber que tomas em ti a minha vida
E que arrastas pela sombra das paredes
A minha alma que fora prometida
Às ondas brancas e às florestas verdes.

Sophia de Mello Breyner Andresen
-- De hora a hora Deus melhora. --
Podes ter fé no rifão.
Mas não durmas: vai buscando
Remédio por tua mão...

António Correia de Oliveira

domingo, 10 de julho de 2011

O Massacre dos Inocentes

autor: W. H. Auden (York, 21.II.1907 -- Kischtetten, Áustria, 29.IX.1973)
título: O Massacre dos Inocentes
subtítulo: Uma Antologia
selecção, tradução e notas: José Alberto Oliveira
colecção: «Documenta Poética» #24
editora: Assírio & Alvim
págs.: 171
dimensões: 20,5x14,7x1 cm. (brochado)
composição: Maria da Graça Manta
impressão: Guide - Artes Gráficas

sábado, 9 de julho de 2011

LUNAR

Maior que a vastidão de areia, a solidão do deserto. O oásis é efémero, para a etérea miragem.
E o sol, que já cedeu à lua, entre as dunas ainda resplandece.

José de Matos-Cruz

sexta-feira, 8 de julho de 2011

NOITES DE MACAU (2)

Na boca da noite os minerais
disfarçam sorrisos,
gestos hábeis,
em camas de cetim.
O ouro e a prata deslizam
para lugares mais secretos,
rivalizam com o jade, o dragão,
retiram o calar da noite,
vestem-se dele,
mandarins de botão vermelho
e pena de pavão.

António Augusto Menano

quinta-feira, 7 de julho de 2011

DESGOSTOSA

O seu riso gentil que ainda me arrasta,
Como quem vai seguindo no deserto
Os raios dum clarão que julga perto,
Mas que a segui-lo toda a vida gasta;

Sua voz, seu olhar, sua alma casta,
Todo esse altivo e festival concerto
-- Brancas formas de luz que ao seio aperto
Sonhadamente, numa dor nefasta...

Esse porte de brilho e majestade,
E o seu modo de ser, doce e honesto,
Tudo a sombra da Mágoa, sem piedade,

Velou, tocando-a com seu ar funesto!
Nunca eu sonhasse, ó íntima saudade,
Seu riso, voz, olhar e alma e gesto!...

António Fogaça

A SOLIDÃO E SUA PORTA

Quando mais nada resistir que valha
a pena de viver e a dor de amar
e quando nada mais interessar
(nem o torpor do sono que se espalha).

Quando, pelo desuso da navalha
a barba livremente caminhar
e até Deus em silêncio se afastar
deixando-te sòzinho na batalha

e aquietar na sombra a despedida
do mundo que te foi contraditório,
lembra-te que afinal te resta a vida

com tudo que é solvente e provisório
e de que ainda tens uma saída:
entrar no acaso e amar o transitório.

Carlos Pena Filho

quarta-feira, 6 de julho de 2011

escreves escreves escreves escreves
nada do que dizes rompe a superfície do papel
escreves escreves escreves escreves
entre o panache a a autocomiseração
o artifício e a louvaminha
o lacrimejar e a traição
escreves escreves escreves escreves
e tudo quanto escreves escreves escreves
escreves tem o selo de validade para hoje
promoção de último modelo
gravata de saldo
embuste de tablóide
passatempo de televisão

POLÍTICA

No nosso tempo, o destino do homem propõe o seu sentido em termos de política. (Thomas Mann)

Com esta rapariga ali especada
Como posso eu atentar
Em políticas romanas
Ou russas ou espanholas?
Quem fala é homem viajado
Que há-de saber o que diz,
E muito lido político
Que tudo meditou bem.
Será verdade o que dizem
De guerras e mais desgraças.
Mas quem me dera ser jovem
Com aquela nos meus braços!

Yeats

(Jorge de Sena)

terça-feira, 5 de julho de 2011

SONNET MADRIGAL

J'ai volu des jardins pleins de roses fleuries,
J'ai rêvé de l'Éden aux vivantes féeries,
Des lacs bleus, d'horizons aux tons de pierreries;
Mais je ne veux plus rien; il suffit que tu ries.

Car roses et muguets, tes lèvres et tes dents
Plus que l'Éden, sont but de désirs imprudents
Et tes yeux sont des lacs de saphirs, et dedans
S'ouvrent des horizons sans fin, des cieux ardents.

Corps musqués sous la gaze où l'or lamé s'étale,
Nefs, haschisch... j'ai revê l'ivresse orientale,
Et mon rêve s'incarne en ta beauté fatale.

Car, plus encor qu'en mes plus fantastiques voeux,
J'ai trouvé de parfum dan's l'or de tes cheveux,
D'ivresse à m'entourer de tes beaux bras nerveux.

Charles Cros
O tempo soluça no relógio
as rugas horizontais
que não tatuam meu rosto.
Ponteiros
agulhas invisíveis
injetam o ritmo
que infecta o dia

Angela de Campos

segunda-feira, 4 de julho de 2011

jaz viva e adormece
a menina de sua mãe

os caracóis soltos na almofada
os braços a bacia os pés partidos
o corpo pousado na cama articulada
as flores murchando na jarra improvisada

sentada numa cadeira a seu lado
a mãe descose as suas camisas de dormir
o corpo danificado
inchou de dor de nada

politraumatizada
jaz viva e anoitece
a menina de sua mãe

Bénédicte Houart

TERRA

Nha Chica, conte-me
aquela história
de meus irmãos
hoje perdidos
no mundo grande...

Nha Chica, eu sei:
anos de seca,
gentes morrendo,
casas sem telhas,
de porta em porta
olhos crescendo
barriga inchando,
um dia tombam
de olhos vidrados
por qualquer canto...

Lisboa, América,
Dakar ou Rio:
-- dentro de nós
surge esta ideia
partir! partir!

Resignados,
os que ficaram
ficam esperando
que as nuvens toldem
que a chuva caia
que o chão fecunde
cobrindo os montes
cobrindo as várzeas...

Ah, anos fartos!
Milho, feijão,
pilão cohindo,
fumo no ar,
riso nos lábios,
grog, cigarros,
batuques, bailes
e casamentos...

Olho estes campos,
olho estes mares,
e sinto a Vida
prendida à terra,
feita de sonhos
que um dia esvaem-se
-- mas surgem sempre...

António Nunes

domingo, 3 de julho de 2011

MOMENTO

Tudo esqueci e tudo perdoei,
não me resta qualquer ressentimento,
dono apenas do que sei
que me escapa como o vento.

Nenhuma coisa é mais do que o momento
em que a tive e a deixei.

Torquato da Luz

sábado, 2 de julho de 2011

Rua

autor: Alberto de Serpa (Porto, 1906-1992)
título: Rua
subtítulo: Poemas
editora: Editorial Inquérito
local: Lisboa
ano: 1945
págs.: 100
dimensões: 19x15x1,9 cm. (brochado)
capa: autor não identificado
impressão: Imprensa Libânio da Silva, Lisboa
Vem a mão do vento abrir o céu, abrir
o mar. Aves partem. Minhas mãos acendem
luar. Um trovão tremendo. Um estrondo na memória.
Explodem palavras. A canção do mundo. Estrelas
iluminam risos de crianças.

Carlos Matias

sexta-feira, 1 de julho de 2011

ELEGIA

Liberdade,
sem ti nada mais sei.

Compreendi o mundo
em ti, sútil
compêndio.

Amei muito antes
de me amares,
entre surtos e sulcos.

Amei
e só a morte
de perder-te
me faz viver
multiplicando
auroras, meses.

E sou tão doido
que o risco inútil
percorri
de me perder, perdendo-te,
perdido em mim.

Carlos Nejar 

SOLITUDE

A cadeira ainda espera
no seu canto.

Há dias que é só cair
sem sentido ou movimento.

Ella em prece
Barney no lamento.

Há dias que só
desmaio de tempo.

A cadeira desespera
noite canto.

Ella em prece
Barney no lamento.

Frederico Barbosa